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Resumen de Der gute Mensch von Sezuan de Bertolt Brecht: análise produtiva e paratradutiva das traduções para língua portuguesa

Eduarda María Ferreira da Mota

  • Nesta dissertação estudam-se as traduções para língua portuguesa do drama Der gute Mensch von Sezuan, 1955, de Bertolt Brecht. O primeiro texto traduzido, que se investiga, é a tradução para português europeu, intitulada A Boa Alma de Sé-Chuão, por Ilse Losa, com colaboração nos poemas de Alexandre O¿Neill, publicada em 1962, pela Editora Portugália e integrada na colecção Teatro de Brecht. Estudam-se também duas traduções para português brasileiro, ambas intituladas A Alma Boa de Setsuan e assinadas por Geir de Campos e António Bulhões. A primeira foi publicada em 1959 pela Editora Antunes e o seu processo tradutivo obedeceu a dois momentos distintos; numa primeira fase, a tradução foi feita por via indirecta tendo como texto base a tradução francesa La Bonne Âme de Se-Tchouan, por Jeanne Stern e Geneviève Serreau, publicada em 1956, pela Editora L¿Arche e, numa segunda fase, o texto traduzido para português brasileiro foi confrontado com o original de Brecht, encomendado pelos tradutores directamente da Alemanha. A segunda e nova tradução também para português brasileiro foi publicada cerca de vinte anos depois, em 1977, pela Editora Civilização Brasileira e surge integrada na colecção Teatro de Bertolt Brecht I-VI.

    Desenvolve-se no presente estudo uma análise das traduções mencionadas que assenta no âmbito tradutivo e no âmbito paratradutivo. Entende-se tradutivo no sentido habitualmente atribuído a este termo, isto é, um estudo interlingual, no qual as unidades linguísticas (estruturais, semânticas e pragmáticas) do texto de chegada (TC) são comparadas com as unidades linguísticas do texto de partida (TP). A investigação paratradutiva, por seu lado, reflecte o espaço e o tempo de cada tradução (Yuste Frías 2010: 291), podendo-se definir ¿¿paratradución como a totalidade dos elementos e procesos que circundan e condicionan unha tradución.¿ (Baltrusch e Durán 2010:19).

    O conceito de paratradução, originário da Escola de Vigo, espelha a nosso ver dois processos que se complementam, o de maturação e o de unificação, isto é, por um lado, o conceito advém de um processo de maturação profunda das correntes tradutivas mais significativas das últimas décadas e, ao mesmo tempo, unifica essas mesmas correntes numa definição aglutinadora, abrangente e principalmente necessária aos estudos tradutivos.

    São várias as escolas teóricas tradutivas que principalmente a partir dos anos 70 começam a valorizar os aspectos contextuais na análise tradutiva, favorecendo o avanço dos estudos tradutivos e cujas concepções dão suporte ao presente estudo (Parte I, cap.1).

    James Holmes (1972) encorajou os linguistas a ultrapassarem o estudo da frase e a estudarem o modo como funcionam os textos traduzidos na sociedade onde são recepcionados, ao mesmo tempo, que propõe a designação Translation Studies como termo aglutinador para a disciplina, que se pretende que seja uma disciplina independente, desenhando a sua estrutura (vid. 1.1, Fig. 1 infra) e criando também uma terminologia adequada. Acaba por ser Gideon Toury (1980, 1995/2012) que ao retomar o mapa proposto por Holmes, ao reformulá-lo e ao aplicá-lo, lhe dá grande visibilidade numa corrente que fica conhecida por Descriptive Translation Studies (DTS), designação que retoma uma das subáreas cunhada por Holmes no mapa proposto, nomeadamente os estudos tradutivos puros e descritivos do produto traduzido. É esta descrição dos produtos traduzidos que é também o objectivo primordial do presente estudo, uma descrição que pretende ter em conta o produto traduzido na sua completitude contextual e co-textual.

    Para a prossecução deste objectivo toma-se o conceito de norma proposto por Toury (1980, 1995/2012), desenvolvido por influência da teoria dos polissistemas de Even-Zohar (19782, 1990), autor que a partir do estudo de traduções de textos literários, apresenta este termo como representando a agregação de sistemas literários - desde a poesia até literatura infantil - que coexistem em qualquer cultura. A partir da teoria polissistémica, Toury realça duas questões fundamentais; o facto de o polissistema influenciar e ser influenciado por outras estruturas socioeconómicas e ideológicas da sociedade e, ainda, o papel que as traduções desempenham ao entrarem no polissistema receptor. Para guiar o trabalho de análise tradutiva Toury avança com três tipos de normas: a norma inicial, que bipolariza em adequação, do texto traduzido à cultura e língua de partida, ou o seu contrário, aceitabilidade, do texto traduzido à língua e cultura de chegada -dois conceitos chave na teoria polissistémica-, normas preliminares que dizem respeito às políticas tradutivas e normas operativas, subdivididas estas últimas em matriciais (macroestrutura-estrutura e segmentação) e linguístico-textuais (selecção do material linguístico). Acrescenta-se no nosso estudo ainda a norma de recepção, proposta por Rabadán (1991), norma que estuda ainda o papel ou a influência que o público receptor tem no comportamento tradutivo.

    O texto de chegada passa assim a ser o centro do estudo tradutivo numa perspectiva descritiva e funcional não só nesta corrente tradutiva, DTS, como também noutras escolas, que se desenvolvem a par desta, nos anos 80, como é o caso da Manipulation School, (Hermans 1985), que dá particular enfoque às questões ideológicas e como estas estão reflectidas nas traduções. Também ganham importância estudos tradutivos, nomeadamente os que chamam a atenção para a relação entre tradução e cultura (Bassnett e Lefevere 1990), estudando-se os efeitos sociais e políticos das traduções e, ainda, a Skopostheorie, (Reiss e Vermeer, 1984), que, como a designação indica, dá particular enfoque ao escopo ou função da tradução na cultura receptora e que perspectiva a língua não como um sistema autónomo, mas sim como fazendo parte de uma cultura, onde o tradutor tem de ser bilingual e bicultural.

    O texto traduzido vai ganhando também autonomia relativamente ao texto de partida, questionando-se a supremacia do original, ideia defendida por Derrida (1985), que afirma que um texto é sempre uma tradução de outros textos e que uma tradução tem um estatuto igual ou superior ao original, já que o aumenta e modifica. Esta concepção está próxima ou é influenciada pela perspectiva de Walter Benjamin, que umas décadas antes, ao reflectir sobre a tarefa da tradução no seu clássico artigo Die Aufgabe des Übersetzens (1923) defende o papel primordial das traduções, que tornam possível que as obras e, através delas, a língua, perdure e reviva. As suas posições filosóficas sobre a língua e a tradução têm vindo sempre a ser retomadas, nomeadamente por Venuti (1995, 1998, 2000), que discute os conceitos de domesticação e estrangeirização na análise tradutiva, conceitos que se podem ligar às noções de aceitabilidade e adequação, mencionadas atrás.

    Desta afloração das questões que dão suporte teórico a esta investigação pode concluir-se que ganham importância questões como a descrição dos textos traduzidos, a existência de uma relação funcional e dinâmica de toda a tradução com o seu original no âmbito de uma situação sociocultural específica e a concepção da tradução como uma transferência cultural, onde se estuda a importância do texto traduzido na cultura e no polissistema receptor.

    Dão também suporte ao presente estudo questões que se consideraram de índole mais prática nos estudos tradutivos (vid. 1.2), como sejam modelos usados na análise tradutiva e, ainda, especificidades dos textos dramáticos (vid. 1.3) e que de seguida se apresentam.

    Os modelos de índole prática reflectem similarmente as dimensões que ganham importância em termos teóricos e o acto tradutivo começa a ser analisado tendo em conta a cultura, a ideologia, bem como os factores pragmáticos, comunicativos e semióticos que lhes são inerentes (Hatim e Mason 1990) (vid. 1.2, Fig. 3). No âmbito comunicativo Hatim e Mason discutem também a variação linguística (vid. 1.2, Fig.4) bipolarizada em utilizador da língua e usos da língua, interessando ao presente estudo problematizar questões aí incluídas como mode of discourse (vid. 1.2, Fig. 5), o modo como a comunicação é realizada, se escrita se falada, e as várias permutações possíveis dentro desta distinção, como é o caso no texto dramático, onde a comunicação é escrita para depois ser declamada, assumindo o ¿modo¿ particular importância neste caso. Também ganham relevo noções como: tenor of discourse, o tom ou grau de formalidade assumida pelos participantes ou variedade segundo a atitude (Mayoral 1990) e como este é vertido na tradução; idiolecto, definido como o modo distintivo e motivado no uso da língua por um indivíduo e, principalmente, os significados pragmáticos e semióticos que devem ser depreendidos de características idiolectais recorrentes; intended effects, a motivação ou grau de motivação para o uso de determinadas estratégias tanto no TP como no TC. (Hatim e Mason 1990:8).

    O trabalho dos tradutores reflectido nos respectivos textos de chegada está igualmente em análise no presente trabalho ao desenvolver-se uma comparação entre TP e textos traduzidos. Numa análise interlingual depara-se sempre com deslocamentos de vária ordem, sejam estes de índole sintáctica, semântica ou pragmática e tenham estes um carácter obrigatório (que advém das diferenças existentes entre as línguas) ou tenham estes um carácter opcional. São os deslocamentos de carácter opcional, os que derivam de escolhas da parte dos tradutores, que são analisados na presente investigação, adaptando-se para esse efeito o modelo classificatório proposto por Baltrusch (2007-2008) no âmbito da análise paratradutiva (vid. 1.2, Quadro 1).

    A presente análise apoia-se em textos dramáticos traduzidos, estando-se consonante com a posição de Raquel Merino, quando esta chama a atenção para importância do estudo do texto impresso, sem detrimento da sua representação, mas insistindo que o texto escrito e publicado, que está acessível a todos, ao leitor, ao crítico, ao literato, ao tradutor, e ao traidor é o único passível de ser estudado em profundidade, sendo a página impressa também o elemento chave utilizado pelos profissionais de teatro. (Merino 1994:39) (vid. 1.3).

    Os estudiosos do texto teatral, tanto os que estão mais ligados ao mundo teatral, como os que estão mais ligados à literatura, à sua análise e também à sua tradução, todos são unânimes ao reconhecerem neste tipo de texto uma dupla condição, o teatro como literatura e o teatro como espéctaculo, e discutindo, ainda, a existência de uma certa incompletude do texto dramático, que existirá até à sua representação, momento em que a sua dupla condição se concretiza numa união. Aliada a esta natureza dupla Santoyo (1989:97ss) aponta dois tipos de tradução neste âmbito teatral, nomeadamente a tradução para o palco ou performance-oriented e a tradução para leitura ou reader-oriented, que assentam em duas estratégias tradutivas, designadas pelo autor como estrategia de escenario e estrategia de lectura, distinções que se adoptam e também se investigam na presente análise, considerando-se também os públicos inerentes à distinção anterior, como o público espectador e o público leitor.

    A perspectiva anteriormente aludida de que só na representação é que a dupla condição deste texto se concretiza assenta, ainda, no pressuposto de que cada texto dramático terá inscrito em si uma força ou um potencial dramático, que se materializará na sua representação. (Gregory 2010:8) (vid. 1.3) define esse potencial dramático como o efeito que o texto dramático pode ter no momento em que é representado. Este autor vai mais longe afirmando que é com base nesse potencial dramático que os textos teatrais e respectivas traduções devem ser analisados e avaliados.

    Ocupando-se o presente estudo exactamente da análise de estratégias tradutivas adoptadas nos textos dramáticos aprofunda-se este conceito, tentando perceber-se a forma que este potencial dramático ou teatralidade -este último que se usa como sinonímia do anterior -está reflectido nos modos discursivos eleitos. São componentes desta teatralidade, características da linguagem teatral aludidas também pelos estudiosos do texto dramático, nomeadamente a importância de uma linguagem com um determinado ritmo, o recurso a uma linguagem actual aliada a uma significação contemporânea de uma peça (Rivière 1990:68) e ajustada a um determinado público, uma linguagem imagética e, ainda, uma linguagem corporal e gestual.

    Na comparação entre texto de partida e respectivos textos de chegada há a necessidade da existência de um tertium comparationis e este é consubstanciado no conceito de réplica avançado por Merino (1994:44ss) e definido como unidad estrutural mínima del campo dramático para descrever e comparar o texto traduzido com o original. A réplica é constituída por marco e diálogo, nas designações da autora, que traduzimos respectivamente por indicações cénicas e falas. A réplica, nas palavras de Merino, corresponde assim a uma unidade mínima de descrição e comparação a nível estrutural, menor que acto, cena ou episódio e que facilita uma aproximação ao texto traduzido e a um possível confronto com o original. A autora salienta ainda que na réplica se encontram os dois níveis de língua que caracterizam a obra dramática e lhe conferem a sua dupla natureza, escrita para ser lida e para ser representada.

    Dentro do âmbito dos trabalhos sobre traduções teatrais a presente investigação pode ser considerada como um estudo histórico-contrastivo segundo a tipologia proposta por Santoyo e que este define do seguinte modo:

    ¿de carácter predominantemente empírico, incluye aspectos relativos al momento y ocasión de la traducción, original dramático del que deriva, tipo de traducción y/o adaptación, influencia e impacto en el polisistema dramático meta, formas de adaptación o de manipulación lingüístico-textual, biografía del traductor ¿estos estudios tratan de plasmar,¿los contrastes que dos textos dramáticos original, uno original y outro traducido, ofrecen al análisis, y de estudiar el marco histórico, literario y pessoal en que se produjo la traducción. (1995:18).

    Esta definição descreve e resume os objectivos do presente estudo de forma significativa, já que também aqui se descrevem os múltiplos factores ou variantes que determinam ou influenciam os textos traduzidos.

    Parte-se do pressuposto de que não existem traduções ideais, existem sim traduções reflectoras de toda uma envolvente paratradutiva no sentido temporal e espacial. Estudam-se os textos traduzidos, dissecando-se os âmbitos tradutivo e paratradutivo para um aprofundamento da análise, da descrição e, principalmente, para chegar a uma maior compreensão do modo como os factores paratradutivos e tradutivos se cruzam e se reflectem nas estratégias tradutivas adoptadas.

    Ainda na Parte I, cap. 2, aprofunda-se o conhecimento sobre o texto de partida Der gute Mensch von Sezuan e sobre o seu autor Bertolt Brecht. Este drama foi escrito durante os anos que Brecht passou no exílio, fugindo das perseguições nazis e só regressando ao seu país no fim da Segunda Guerra Mundial. Fixa-se então em Berlim Oriental em 1949 e funda o Berliner Ensemble, grupo de teatro que fica famoso principalmente pelas encenações modelo das obras do autor.

    Os dramas de Brecht e também este em particular reflectem a teoria do teatro épico que o próprio autor concebeu: um teatro que rejeita o conceito de Einfühlung ou ilusão e que defende antes o conceito de Verfremdungseffekt, um estanhamento que deve levar o espectador a questionar o que vê e ouve e a ser participante da própria acção teatral. Influenciado pelo teatro chinês Brecht desenvolve técnicas teatrais que têm como primordial objectivo construir um teatro interventivo, que leve os indivíduos a tomarem consciência da importância do seu papel na construção de um mundo socialmente mais justo.

    A temática e a construção do drama Der gute Mensch von Sezuan consubstanciam também estes objectivos brechtianos. A intriga é de imediato apresentada no início da peça: três deuses vêm à terra verificar se ainda existem boas almas e se encontrarem uma então o mundo poderá ficar como está. Vai ser Shen Te, uma prostituta, a dar abrigo aos deuses e a ser considerada a boa pessoa que procuram. Ao longo do drama Shen Te começa a cair na miséria ao ser explorada pelos seus amigos e conhecidos a quem não consegue negar pedidos de ajuda. Em desespero, Shen Te coloca uma máscara e transforma-se no seu primo Shui Ta, o seu reverso, uma pessoa inflexível e fria que vem para salvar os negócios da prima. O espectador segue o drama de Shen Te e, no fim, assiste ao seu julgamento, onde o primo Shui Ta é acusado de ter feito desaparecer a prima. No tribunal, com os deuses no papel dos juízes, é necessário encontrar uma solução para este drama, isto é, como ser bom e mesmo assim conseguir sobreviver, mas Brecht não apresenta uma resposta e, em vez disso, devolve a pergunta ao espectador. Na última apóstrofe declamada por um actor ao público, é-lhe dito que deve ser este a encontrar a solução: Verehrtes Publikum, los, such dir selbst den Schluß! Es muß ein guter da sein, muß, muß, muß! (p.144), e indicando que Brecht acredita que essa solução tem de existir e que esta estará nas mãos do público.

    Depois de apresentado o texto de partida e o seu autor passa-se à segunda parte do presente trabalho que consiste no estudo da tradução em português europeu do texto dramático de Bertolt Brecht, começando-se por uma contextualização histórica, política e sociocultural de Portugal na década de 60 (cap.3). Pode afirmar-se que nessa década o regime ditatorial levava já quase trinta anos de existência e a repressão exercida por este estendia-se a todas as áreas da vida dos portugueses. Oliveira Salazar com o apoio das forças militares e da Igreja iniciou a criação deste novo regime, unindo várias forças em volta do governo e formando a união que ficou conhecida como a trilogia de Educação Nacional: Deus, Pátria e Família, que doravante dominaria o país. O Estado assume um papel intervencionista na vida económica e social, bem como o papel de protector, disciplinador, não se podendo esquecer que o Portugal do início dos anos 30, era um país atrasado, rural, dependente, periférico. (Rosas 1990:15).

    Acreditamos que o fenómeno da pobreza que existia na altura e que continuaria a existir durante o Estado Novo terá sido um dos factores responsáveis pela facilidade com que este regime se instalou e pelo modo como se prolongou no tempo. Apesar de ter havido elevado crescimento económico entre os anos 50 e 70 devido ao processo de industrialização, a pobreza manteve-se e criaram-se até novos factores de pobreza, como sejam a marginalização da agricultura como actividade económica, o êxodo maciço dos campos para as cidades, a emigração e os salários muito baixos.

    Aliada a esta pobreza regista-se também uma grande taxa de analfabetismo que reflecte o atraso cultural do país; não há cumprimento da escolaridade e os filhos ajudam os pais no trabalho no campo. Apesar de um certo medo que as elites mostravam da escolarização do povo, Salazar acabou por considerar melhor estender a escolaridade a todos, mas, de forma a que o Estado controlasse o que era ensinado e o que se podia ler ou não: ¿A alfabetização seria assim um excelente veículo de propaganda político-ideológica permitindo divulgar o ideário do novo regime.¿ (Rosas e Brito 1996:46).

    Outros instrumentos que serviram também à implantação e consolidação do Estado Novo foram as reformas administrativas e financeiras, a institucionalização da censura prévia à imprensa e aos espectáculos, a criação, em 1933, do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), a reorganização das forças policiais de modo a ficarem assegurados, com eficácia, o controlo, a vigilância e a repressão da acção política dos indivíduos e das organizações que ameaçassem a ¿nova ordem¿. (Oliveira 1990:27). O governo de Salazar controlava tudo o que era ensinado, imbuindo a escola de toda uma filosofia de pensamento e ideologia veiculadoras das ideias do regime, dando ênfase ao ensino do Português ¿antes de tudo e acima de tudo, o conhecimento da nossa língua, do nosso povo, da nossa Pátria¿ (Carvalho 20013: 740ss) e da história de Portugal ¿o Estado sem se arrogar a posse exclusiva duma verdade absoluta, pode e deve definir a verdade nacional, quere dizer, a verdade que convém à Nação.¿ Apesar das reformas registadas na esfera da educação, mesmo assim, Portugal na década de 60 mantinha-se com uma das taxas das mais elevadas de analfabetismo entre os países europeus e com uma censura que se estendia aos livros, teatro, cinema, rádio, espectáculos e mais tarde televisão. Todas as concepções filosóficas políticas e religiosas que não se identificassem com as do regime, tanto nacionais como estrangeiras, não seriam aceites, seriam ostracizadas e até perseguidas.

    Nesta época em Portugal a literatura era também uma literatura empenhada, tanto socialmente como politicamente, uma ¿literatura ao serviço da emancipação do povo¿ (Rosas e Brito 1996:523) e, por isso, a maioria dos escritores portugueses eram perseguidos. Também o teatro se pretendia que fosse politicamente empenhado, mas a censura ao teatro era particularmente rigorosa, pois tinha um carácter duplo: era obrigatória a aprovação da obra e depois também a aprovação da sua representação.

    A censura estendia-se também à literatura estrangeira e também a obra de Brecht é reprovada, como se lê nas palavras de Cândido de Azevedo: ¿Proibida foi igualmente a obra Théâtre Complet-I de Bertolt Brecht ¿. Trata-se da edição francesa da obra de Brecht publicada em 10 volumes por L¿Arche Éditeur, Paris (1960). À época, os livros de autores estrangeiros eram lidos nas traduções francesas, já que era esta a língua estrangeira que os portugueses melhor dominavam. Também os volumes seguintes daquela mesma colecção de teatro foram proibidos sempre por razões políticas. Sobre o Volume VII escreve o censor que a forma literária é boa, mas ¿as tendências filosóficas e de propaganda social, que são muito más, designadamente ¿La Décision¿, de propaganda comunista sem disfarce.¿ (p.204).

    As encenações das peças de Brecht estavam igualmente proibidas, mas, em 1960, uma comitiva diplomática brasileira vem a Portugal a convite do governo português e, integrada nessa comitiva, vem a Companhia Brasileira de Teatro Maria Della Costa (cap.4). Para além de outras peças esta companhia traz A Alma boa de Setsuan de Brecht, peça que a companhia tinha acabado de encenar no Brasil com grande êxito e depois de pressões diplomáticas sobre o governo português acaba por ser concedida uma licença especial para que a peça subisse aos palcos portugueses.

    É assim que no dia 12 de Março de 1960 estréia a primeira peça de Brecht havendo, desde logo, tentativas de boicotar o espectáculo por grupos de extrema-direita, gerando-se um enorme tumulto, só muito a custo controlado pelas forças da ordem. (Carrington 1991:264). Como nas noites seguintes se repetiram os problemas com os manifestantes, ao fim de cinco representações, a peça foi proibida pelas autoridades portuguesas que consideraram que esta causava alterações ¿na ordem pública¿.

    Apesar do autor Bertolt Brecht continuar a ser um autor proibido a Portugália Editora consegue lançar dois anos mais tarde, em 1962, o 1º volume da colecção Teatro I de Bertolt Brecht, que incluía os dramas Ti Coragem e os seus filhos (Mutter Courage und ihre Kinder) e A Boa Alma de Sé-Chuão (Der gute Mensch von Sezuan), sendo estas as primeiras traduções das obras de Brecht feitas directamente dos originais em alemão. Sobre os tradutores lembra-se: Ilse Losa é escritora portuguesa de origem alemã e divulgadora da obra de Brecht em Portugal, escrevendo artigos em jornais e tendo sido também mediadora entre a Editora Suhrkamp, proprietária dos direitos da obra de Brecht e os editores e encenadores de Brecht em Portugal; Alexandre O¿Neill, poeta e tradutor, assumiu posições frontais e provocatórias contra o regime, tendo estado preso, em 1953, durante vinte e um dias. A publicação deste volume foi de imediato saudada pelo crítico Mário Vilaça que escreve que ¿Poucos livros de teatro se terão comprado entre nós com tanta avidez e poucos também terá havido que há tanto fossem esperados e tanta falta fizessem para a actualização do nosso teatro. (Vilaça 1963:90).

    Acreditamos que face à situação política e cultural portuguesa nos anos 60, vivendo uma ditadura há já três décadas, a tradução da obra de Brecht foi também uma opção política consciente. Não só se pretendia dar a conhecer o novo teatro épico, mas também usá-lo para despertar a consciência social e política do espectador. Pode afirmar-se que os tradutores optaram por uma tradução com uma função social e política, recusando ser coarctados pela censura no momento de traduzir, como se constata na análise que se elabora. Cabe aqui perguntar como foi possível que os serviços de censura deixassem passar esta publicação de Brecht em língua portuguesa e sobre isto Manuela Delille adianta uma possível explicação, afirmando ser esta uma atitude que não receava o acto de leitura dado ele ser regra geral um acto individual e solitário, mas que temia a força interventiva e sublevadora do teatro declamado, como acto por excelência de vivência colectiva, verdadeiro acto ritual comunitário. (1991:56).

    De seguida estuda-se a tradução desta obra para português europeu (cap.5) e em termos de análise segue-se a mesma metodologia em todas as traduções que se estuda, português europeu (pe), português brasileiro 1959 (pb59), francês (f) e português brasileiro 1977 (pb77); comparam-se as apóstrofes e as réplicas da figura principal e dupla Shen Te e Shui Ta do TP e respectivos TC.

    Escolheram-se as apóstrofes, pois como se constatou ao estudar o teatro épico (2.1.2) estas são um dos meios que Brecht privilegia para criar o efeito de estranhamento e, neste caso, em particular, para interpelar directamente o público/ leitor e levá-lo a ¿acordar¿ e a reagir. Elegeu-se estudar a figura principal Shen Te e Shui Ta pela importância primeira desta figura e também porque é através dela que Brecht tematiza a sua história.

    Da análise elaborada começaram a desenhar-se padrões recorrentes, padrões esses que interessou estudar mais profundamente. Com esse objectivo em mente criam-se grupos tipológicos (vid. 5.2), aos quais são afectadas as ocorrências assinaladas, que são também contabilizadas e apresentadas em quadros e gráficos. Num segundo momento da análise afectam-se as tipologias aos procedimentos tradutivos elencados no documento ¿Classificação dos Deslocamentos em Processos Tradutivos¿ (CDPT) proposto por Baltrusch (2007-2008) (vid. 1.2), mostrando-se os resultados quantitativos também em gráficos. Num documento aparte, em suporte digital, regista-se todo o corpus de análise a partir do qual se faz inferências a nível quantitativo e que juntamente com o presente volume faz parte integrante deste estudo.

    Os grupos e subgrupos tipológicos são os seguintes: Grupo A: REFORÇO SEMÂNTICO, Subgrupos: Palavras; Expressões; Idiomatismos; Grupo B: METÁFORA, Subgrupos: Substituição de imagem; Imagem mais Sentido; Imagem convertida em Sentido; Grupo C: MODULAÇÃO, Subgrupos: Explicativa; Passiva-Activa; Negativa-Afirmativa; Outras; Grupo D: REORDENAÇÃO SINTÁCTICA, Subgrupos: Pontuação; Deslocação à Esquerda; Grupo E: ACRESCENTO, Subgrupos: Especificações; Enfatizações; Grupo F: AMPLIFICAÇÃO; Grupo G: COMPORTAMENTO DE RETOMA, Subgrupos: Verbal; Nominal Passa-se a explicar o que se entende por cada uma das designações escolhidas: o grupo A, Reforço Semântico, é designado desta forma por se considerar que as escolhas da tradução são escolhas que reforçam semanticamente as unidades que lhe correspondem no TP, ora por Palavras coloquiais, diminutivos e rimas, ora por Expressões mais coloquias do que as que lhes correspondem no TP, ou ainda por Idiomatismos que correspondem a expressões típicas do idioma português que equivalem a enunciados muitas vezes estereotipados e onde frequentemente o significado do idiomatismo ultrapassa a soma das palavras que o constitui.

    No Grupo B, Metáforas, toma-se o conceito de metáfora na perspectiva de Peter Newmark (1988b:104ss), que apresenta um conceito muito alargado de metáfora, considerando que todos os sentidos figurados são potencialmente metafóricos, distinguindo cinco tipos de metáforas e apresentando, ainda, seis possíveis estratégias para as traduzir, estratégias a partir das quais se designaram os subgrupos apresentados em cima. O grupo C Modulações ou mudanças de ponto de vista segue a definição de Vinay e Darbelnet (1958/1972:11): ¿Modulation, variante obtenue en changeant de point de vue, d¿éclairage et très souvent de catégorie de pensée.¿ e os subgrupos seguem também distinções introduzidas por este autor. O grupo D, Reordenação Sintáctica, está dividido em 2 subgrupos: Pontuação e Deslocação à Esquerda. No subgrupo, Pontuação, consideram-se as alterações de sinais gráficos bem como as reorganizações frásicas decorrentes de algumas dessas modificações. No subgrupo, Deslocações à Esquerda, analisam-se os elementos da frase que são deslocados para a primeira posição na frase e que muitas vezes se tornam elementos acentuados num processo que Tschida (1995) denominou como topicalização. No grupo E, Acrescentos, há dois subgrupos, Especificações e Enfatizações. Usa-se aqui o conceito de acrescento tal como este é apresentado por Hüsgen (1999 ), Hinzufügungen (acrescentos ), que, por sua vez, engloba Zusätze (informações suplementares) e Spezifizierungen (especificações).

    Neste conceito bipartido de acrescentos temos as especificações, que se entende como um aumento de especificidade do TC relativamente ao TP e temos também Zusätze, que se entende como um processo de adição de elementos ao TC não presentes no TP. No presente estudo designamos este último subgrupo como Enfatizações, pois registamos elementos que são acrescentados ao texto unicamente para lhe dar realce; temos neste subgrupo partículas de realce, interjeições, alguns apostos entre outros.

    O grupo F, Amplificações, entende-se como um aumento do enunciado do TC para veiculação da mesma ideia do TP. No grupo G, Comportamentos de Retoma, temos dois subgrupos, a Retoma Verbal e a Retoma Nominal; no primeiro caso, na Retoma Verbal, retoma-se o verbo do interlocutor anterior para construir enunciados de resposta que no TP são frequentemente constituídos por repostas do tipo ¿sim¿ ou ¿não¿. No segundo subgrupo, Nominal, retoma-se no TC o nome em vez do pronome do TP.

    Não se pode deixar de frisar que a formação e delimitação destes grupos e subgrupos traz algumas dificuldades, já que se está a lidar aqui com vários níveis ou áreas de análise, nomeadamente a área léxico-semântica, a área morfo-sintáctica e ainda a área da estruturação de texto . Como sabemos o estilo de um texto forma-se a partir das escolhas que são feitas a todos estes níveis do discurso. Está-se, no entanto consciente que a afectação não é de modo algum uma afectação estanque, pois há flutuações entre áreas, como se verifica quando se afectam as recorrências tradutivas assinaladas aos grupos e subgrupos criados. Sendo assim a opção de afectação a determinado grupo tem de ser feita tendo em conta também aspectos contextuais e co-textuais que podem determinar a relevância de uma ou outra estratégia tradutiva elegida. Depois da constituição dos grupos faz-se então a afectação dos modos discursivos recorrentes assinalados aos respectivos grupos e subgrupos.

    Também é importante salientar que esta primeira fase de criação de tipologias se faz ainda tendo em conta um leque alargado de áreas de referência e isso está patente na origem das próprias designações que mostram que estas provêm de áreas distintas, como sejam grupo A, B, D da chamada gramática tradicional, Grupo G da linguística de texto e os grupos B (subgrupos), C, E e F da metodologia da análise tradutiva. Tem-se nesta primeira fase o objectivo de identificar e descrever os modos discursivos do TC nas suas diferenças relativamente ao TP. De seguida, na segunda fase de análise, afectam-se estes grupos tipológicos a procedimentos que provêm exclusivamente da análise tradutiva, nomeadamente a classificação dos deslocamentos em processos tradutivos, que se nomeou atrás.

    Tomam-se então no presente estudo os procedimentos tradutivos elencados em CDPT proposto por Baltrusch (2007-2008). Nesta proposta, agrupam-se os deslocamentos a duas grandes classes de deslocamentos, a classe da Mutação e a classe da Modificação com os respectivos procedimentos tradutivos, considerando-se também o ¿ Valor¿ e a ¿Intenção¿, que estes procedimentos podem assumir. Explanam-se de seguida apenas os procedimentos tradutivos que se registam na análise à tradução para português europeu: Intensificação: reforçar valores semânticos ou retóricos da LP; Explicitação/Especificação: exprimir de maneira directa o que está implícito na LP para desfazer a ambiguidade semântica; Modulação: exprimir uma ideia de um ponto de vista diferente; Equivalência: exprimir o mesmo com modalidades distintas, sobretudo quando forem de carácter idiomático; Amplificação: empregar mais elementos do que na LP para exprimir a mesma ideia. Passando à interpretação que se fez destes procedimentos afectam-se os grupos tipológicos do seguinte modo: O grupo A, Reforço Semântico é considerado na Intensificação, já que há um aumento de expressividade semântica nestas opções. O grupo B Metáforas é ligado a Equivalência, pois procura-se nas traduções efectuadas um equivalente dessas metáforas na língua de chegada. O grupo C, Modulações, ficou na categoria com o mesmo nome, Modulação. O grupo D, Reordenação Sintáctica, é afectado à Intensificação, pois o tipo de alteração introduzida pela pontuação, pela deslocação à esquerda, pela topicalização e pela reordenação frásica tornam os enunciados mais marcados, intensificam, por isso, valores retóricos. No grupo E, Acrescentos, o subgrupo Especificações afecta-se a Explicitação/Especificação, enquanto o subgrupo Enfatizações pertence à Intensificação, pois há um reforço retórico ao adicionar-se ao enunciado elementos como partículas de realce, interjeições que constituem, entre outros, este subgrupo. O grupo F, Amplificações, foi agrupado ao procedimento com a mesma designação, Amplificação. Finalmente no grupo G, Comportamentos de Retoma, afecta-se o subgrupo Retoma Nominal à Explicitação/Especificação, enquanto a Retoma Verbal é considerada na Intensificação, pois este comportamento de retoma verbal pode ser frequentemente considerado também um idiomatismo, já que é um recurso típico da língua portuguesa, pelo que o consideramos como um reforço dos valores semântico-retóricos.

    Numa primeira abordagem ao texto traduzido depara-se com um texto que segue de perto o TP, em termos de estrutura e de língua utilizadas, mas numa abordagem mais profunda a nível microestrutural leva-nos a considerar que há escolhas tradutivas recorrentes que se afastam desta opção de literalidade. Parece poder afirmar-se que há no TC uma ênfase num discurso mais coloquial e mais explícito do que no TP. As nuances de significado nem sempre são fáceis de analisar em termos de intenção, já que alguns casos são explicáveis pela simples manipulação normal ente línguas que se dá no processo tradutivo, mas acreditamos que outras são mais facilmente atribuídas a escolhas motivadas intended meaning, como o descrevem Hatim e Mason.

    Comentam-se de seguida as tipologias e respectivos procedimentos tradutivos que resultam da análise da tradução para português europeu. É de notar que todas as tipologias e correspondentemente todos os procedimentos tradutivos foram usados por todos os elementos analisados, apóstrofes e por Chen-Té e Chui-Tá, designações da figura principal na tradução para português europeu. Este facto aponta para uma homogeneidade discursiva e consequentemente também para uma homogeneidade tradutiva, registando-se até em Chen-Té e Chui Tá o mesmo número de ocorrências, 108, e nas Apóstrofes 83.

    O conjunto dos procedimentos tradutivos usados traçam um perfil do texto traduzido, sendo que a Intensificação (65%) é o ProcTrad mais representado, seguido da Explicitação/Especificação (14%), da Amplificação (10%), da Modulação (7%) e, por último, da Equivalência (4%).

    A intensificação dá-se a nível, semântico, retórico e suprassegmental, intensificando-se valores semânticos ao introduzir palavras e expressões mais coloquiais, bem como idiomatismos, estes também presentes em muitos comportamentos de retoma verbal e ainda inserindo diminutivos: [51a] SHEN TE nach einer Pause: Ich kann Zither spielen, ein wenig , und Leute nachmachen. (...) (p.48), [51pe] CHEN-TÉ (depois de uma pausa): Sei tocar cítara, um poucochinho, e sei imitar as pessoas. (¿) (p.155); há também intensificação de valores retóricos com a inclusão de rimas em versos brancos do TP, neste caso, levando ainda a uma intensificação de valores estilísticos; a intensificação dá-se também com o acrescento de enfatizações: [13a] SHEN TE (¿) Als ich aus der Tür trat, lustig und erwartungsvoll, stand die alte Frau des Teppichhändlers auf der Straße (...) (p.81), [13pe] CHEN-TÉ: (¿) Quando saí a porta, alegre e cheia de impaciência, vi, na rua, a mulher do negociante de tapetes, tão velhinha, coitada, (¿) (p.188-189); a intensificação dá-se através de comportamentos de retoma verbal: SUN: Und den Laden, den haben dir wohl die Götter geschenkt? [49a] SHEN TE Ja. SUN: E a loja deram-ta os deuses? [49pe] CHEN-TÉ sorrindo ao de leve: Deram, sim; a intensificação está igualmente presente na acentuação que se introduz no TC através de alterações suprassegmentais a nível de sinalização gráfica e de topicalização: [154a] SHUI TA Dann laßt mich euch die furchtbare Wahrheit gestehen, ich bin euer guter Mensch! (p.138), [154pe] CHUI-TÁ: Permiti que vos confesse a verdade medonha: a vossa boa alma sou eu! (p.246-247) O TC qualifica-se ainda por ser mais explícito e específico do que o TP, acrescentando especificações e preferindo retomas nominais em vez de pronominais. O TC também se caracteriza pela amplificação, usando mais elementos do que os que lhe correspondem no TP. [126a] SHUI TA Sie wird jedoch froh sein, zuvor alles besprechen zu können mit jemand, dem sie vertrauen kann. (p.77) [126pe] CHUI-TÁ: Mas ficaria contente se, antes disso, pudesse tratar de todos os assuntos com alguém em quem pudesse confiar. (p.184). O TC é ainda mais explicativo do que o TP ao introduzir um número significativo de modulações explicativas e tentar sempre transpor todos os sentidos figurados do TP optando pela procura de enunciados equivalentes.

    Atribuimos às opções mais usadas nesta tradução principalmente à intensificação e à explicitação/especificação semântico-retóricas um valor de opcionalidade e de idiomaticidade com uma intenção pragmática e ideológico-política.

    Para se estudar e compreender as escolhas tradutivas nesta tradução portuguesa do drama de Brecht partiu-se para uma análise tanto a nível tradutivo como a nível paratradutivo. No âmbito tradutivo adoptou-se uma perspectiva descritiva de análise do texto traduzido e no segundo âmbito, o paratradutivo, pesquisou-se todo o contexto social e ideológico para aferir da sua importância na cultura receptora.

    Da análise da situação política em Portugal durante o Estado Novo pode perceber-se como a maior parte da população vivia em condições económicas precárias e sem acesso a uma escolaridade de qualidade, e, ainda, como os mecanismos da Censura limitavam o acesso à cultura tanto nacional como estrangeira, porque se vivia, enfim, de forma isolada e sem liberdade de expressão.

    Também os factos ligados à tradução portuguesa do drama e à sua publicação mostram como, estes escritores e tradutores estavam plenamente conscientes de que as pessoas em Portugal estavam ávidas de conhecimentos e de acreditar em novas formas de vivência social que não a da repressão em que viviam. Assim, a tradução desta peça de foro didáctico seria também mais um passo para uma nova consciência social, já que introduzia temas ligados às injustiças sociais, tão presentes na sociedade portuguesa. Exemplo disto é a sua mensagem principal acerca do homem que não tem condições sociais para ser homem, consubstanciada na personagem principal Chen-Té, que vive o dilema de querer ser boa, querer ajudar os outros e sucumbir por causa dessa ajuda.

    Centrando-nos de seguida na análise comparativa que se desenvolveu, relembrámos que tínhamos como objectivo no início deste trabalho determinar quais os modos discursivos escolhidos no TC para que este se tornasse, em termos gerais, um discurso de nível mais coloquial, com alteração do tom ou variando segundo a atitude e reflectindo também, deste modo, alterações ao nível das intenções e valores trazidos para o TC. Da análise feita percebemos que a coloquialidade ou registo deste texto é construído de forma variada, recorrendo-se ora à morfologia, ora à sintaxe, ora ao léxico, como é patente nas tipologias identificadas que, por sua vez, tomam valores de idiomaticidade e denotam intenções pragmáticas, estilísticas e até ideológico-políticas, como é também visível no tipo de procedimentos tradutivos identificados.

    Os procedimentos tradutivos, como vimos, recaem maioritariamente nas intensificações, constituídas por um grande número de reforços semânticos, comportamentos de retoma verbal, acrescentos na forma de enfatizações, entre outros, e nas explicitações/especificações, constituídas estas por acrescentos na forma de especificações e por comportamentos de retoma nominal. O uso destes procedimentos tradutivos no TC mostram uma variação a nível do tom ou variedade segundo a atitude que consubstancia uma intensificação desse tom ou atitude e consequentemente uma maior acentuação interpessoal dos enunciados.

    Considera-se que as escolhas tradutivas aqui usadas, denotam um valor de idiomaticidade, como mencionámos atrás, e representam uma aproximação à língua e cultura de chegada, revelando uma clara tendência da tradução para a aceitabilidade como norma inicial, como a define Toury. O TC torna-se de imediato acessível ao leitor/espectador de chegada ao usar-se uma linguagem de fácil apreensão e de uso comum. Este valor de idiomaticidade atribuído à linguagem do TC pressupõe uma intenção ideológico-política, neste caso, de domesticação da forma para veicular o conteúdo, reforçando-o, desta maneira, no TC. Cabe aqui fazer a ligação com os elementos da análise paratradutiva elencados anteriormente neste ponto e que remetem para a consciência que os tradutores/intelectuais portugueses tinham da necessidade de conseguir trazer novas ideologias aos portugueses, ansiosos por informação, e por modos alternativos de pensar a sociedade repressiva em que viviam, como se focou anteriormente. Não é também de esquecer a encenação brasileira deste drama, trazida a Lisboa em 1960, e como esta foi frustrada, proibindo-se a continuação da sua representação, apesar do interesse demonstrado pelo público, que enchia a sala do teatro todas as noites (vid. 4.1 e 4.2).

    Ainda sobre a domesticação das formas linguísticas e a sua contribuição para a acentuação dos conteúdos da obra, esta indica também que o idiolecto usado nesta tradução é, no sentido de Hatim e Mason (vid. 1.2), um modo motivado de usar a língua.

    Os ProcTrad ou escolhas tradutivas motivadas constroem um texto coloquial e estabelecem através dele um diálogo conseguido e, por vezes, até íntimo com o leitor/espectador (cf. Apóstrofes 5.3.2). Pode afirmar-se também que este TC para português europeu reforça a teatralidade ou potencial dramático (vid. 1.3), que se caracterizou como sendo composto por aspectos rítmicos, imagéticos e com recurso a uma linguagem actual. O TT acentua o ritmo através das alterações suprassegmentais e de organização discursiva, intensifica a linguagem imagética nas escolhas que faz a nível das palavras, expressões e idiomatismos e recorre ainda a uma linguagem actual na selecção de algumas expressões, alguns idiomatismos e até algumas expressões enfáticas, que se foram assinalando ao longo da análise.

    Todas estas opções estão, a nosso ver, mais próximas de estratégias típicas de uma tradução para representação, apesar de estarmos aqui no âmbito de uma tradução para publicação. Outras opções, como a amplificação e o acrescento por especificação, estão, por seu lado, mais próximas de uma tradução para publicação, onde não há preocupação com uma linguagem mais concisa. Parece não poder lançar-se mão de divisões estanques nesta matéria, optando-se antes por caracterizações menos rígidas na descrição de tipos de tradução neste âmbito da tradução do texto dramático.

    Para considerar ainda o efeito deste TT na cultura de chegada e tendo em conta as contribuições das teorias polissistémicas para a compreensão dos efeitos das traduções nas culturas receptoras, pode afirmar-se que a tradução desta obra teve um efeito primário, já que, tanto a ideologia como a nova estética de que era portadora, actuaram de forma inovadora, pois geraram, ampliaram e reestruturaram a cena teatral portuguesa, como fica evidente na exposição que se faz no capítulo quarto sobre a história e recepção desta obra em Portugal. Concorda-se neste ponto com a posição de Gentzler (1996: 119), quando este afirma que as traduções, mesmo em sistemas culturais fortes, podem influenciar o sistema literário e cultural de chegada e consideramos que as intenções e valores incrustados nesta tradução para português europeu concretizam o seu objectivo primordial que, segundo a nossa opinião, foi alcançar uma simbiose imediata com o público/leitor.

    Tanto o leitor desta tradução como o seu potencial espectador - lembrando aqui também o trabalho que Ilse Losa, a tradutora, mantinha com grupos de teatro interessados em encenar Brecht (vid. 4.3) - são, desta forma, apresentados ao conteúdo dramático através de uma linguagem que lhes é familiar e podem, assim, também ser participantes activos da própria acção teatral no sentido brechtiano, que pretende que se estabeleça uma dialéctica entre actor, personagem e espectador/leitor.

    A terceira parte deste trabalho consiste no estudo das duas traduções em português brasileiro da peça de Brecht Der gute Mensch von Sezuan, ambas intituladas A Alma Boa de Setsuan, e é constituída por quatro capítulos: o contexto da recepção de Brecht no Brasil; a história das duas traduções, encenações e publicações; a análise da primeira tradução de 1959 e a análise da segunda tradução de 1977.

    Começando pelos aspectos históricos, políticos e económicos lembra-se que no início dos anos 50, o Brasil vivia já há vinte anos sob o governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-1953) regime que teve um interregno somente entre os anos de 1945 a 1951. O poder tinha-lhe sido entregue por uma Junta Militar, que promoveu a Revolução de 1930 e que pôs fim ao período da 1ª República (1891-1930). Em 1934, procede-se a eleições e Getúlio Vargas é eleito num processo democrático, mas a restauração democrática viu-se ameaçada por uma certa agitação política e aproveitando a instabilidade Getúlio Vargas, alegando a salvaguarda dos interesses do país, deu um golpe de estado, dissolveu também o congresso, tendo para tal o apoio dos militares e proclamando deste modo o Estado Novo (1937-1945).

    Esta primeira era de governo Vargas (1930-1945) correspondeu a um regime de 15 anos, que foram ¿poderosamente transformadores¿ apesar dos últimos oito anos terem sido estritamente autoritários, segundo Pereira (2001:233), que adianta tratar-se de um estadista frio no uso do poder, mas apaixonado pela missão de mudar o país, liderando com extraordinária competência política e administrativa a transição, estabelecendo poder da União sobre os estados federados e as oligarquias locais, e dando impulso ao processo de industrialização. ¿É chamado de populista, porque percebe que o povo afinal estava a surgindo, e para ele tinha um discurso e uma prática social.¿ (op.cit: 233-234). Apesar do carácter autoritário desta governação houve a formulação de uma nova política económica, houve a tomada de medidas concretas e inovadoras e também uma sensibilidade aos interesses do proletariado, da burguesia e da classe média. Mas depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, havia insatisfação quanto à continuação de um governo saído de um golpe de estado e foram então marcadas eleições, mas antes da data marcada as forças armadas, temendo que as eleições não se realizassem, depuseram Getúlio Vargas a 29 de Outubro de 1945.

    Nos anos entre 1945-51, o Brasil vive com um governo saído de eleições democráticas, e em termos económicos segue-se uma política liberal. Em 1951, Getúlio Vargas, volta à presidência e forma o seu 2º governo (1951-54), mas desta vez eleito directamente pelo povo. Quando, em 1954, os seus guardas pessoais foram incriminados em assassinatos políticos, as forças armadas exigiram o seu afastamento e Getúlio Vargas acaba por se suicidar antes de se demitir. Depois da sua morte assumem a presidência primeiro João Café Filho e de seguida Carlos Luz até à tomada de posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek (1956-1961). Vai ser durante o seu governo que o Brasil muda a sua capital para o interior, construindo-se a cidade de Brasília com o intuito de promover o desenvolvimento do interior do Brasil e a integração do país. Há uma relativa estabilidade política e assiste-se também a um grande desenvolvimento económico.

    Esta época ficou conhecida como Os Anos Dourados, apesar do crescimento da inflação, mas conseguindo manter-se o regime democrático e, em termos culturais, implementar a consolidação dos meios de comunicação com as emissões de rádio a chegarem pela primeira vez a todo o Brasil. Há o lançamento de jornais, muitas revistas e sendo nesta época que nasce também o teatro independente (vid. 6.3), assistindo-se a uma vontade de independência cultural e uma euforia pela possibilidade de mudança, período que abrange também a presidência seguinte de João Goulart (1961-1964). Mas o medo que as suas políticas reformistas fossem longe demais e também a crise económica que se vivia, levaram a que as Forças Armadas preconizassem um golpe militar e implantassem um novo regime de base militar em 1964 e que duraria até 1985.

    Durante os anos desta ditadura assiste-se à repressão, à censura e ao estabelecimento do denominado AI-5 (Ato Institucional nº 5), 1968, que tinha como objectivo aumentar o poder dos militares. Este regime ditatorial deu à política económica um papel prioritário e a estabilidade política criada acaba por fornecer um clima de confiança aos mercados. Apesar do crescimento económico efectivo destas décadas tanto durante a ditadura de Vargas como durante a ditadura militar, o sistema das duas classes sociais perpetua-se; 95% da população pertence à camada pobre da sociedade. O Brasil conseguiu deixar de ser um país fragmentado, tornando-se uma nação unida, mas carrega ainda problemas sociais e culturais. Relativamente às duas traduções e encenação da peça de Brecht, aqui em análise, constatamos que a sua primeira encenação em 1958 e a primeira publicação em 1959 aconteceram durante a governação democrática do presidente Kubitschek (1956-61), período no qual se respira um sentimento de esperança na mudança e na abertura ao novo. Bertolt Brecht, como autor de um novo teatro, desperta o interesse nos autores e encenadores brasileiros. Ainda quanto aos aspectos culturais do Brasil, verifica-se que no período pós-revolução, entre 1930-1964, houve um processo de reestruturação que uniu o Brasil, tendo-se tomado em termos culturais duas medidas importantes: o desenvolvimento de uma política da língua e a criação de um sistema escolar nacional. Os meios de comunicação também vão ajudar ao debate sobre a construção de uma identidade nacional, pois desde a proclamação da república que se assiste à procura de definição dessa identidade. Este debate estava imbuído de preconceitos raciais e, até então, as culturas populares eram muito desvalorizadas e até perseguidas e a procura de ¿brasilidade¿, termo usado nesta busca de uma identidade brasileira, contribuiu também para que a sociedade urbano-industrial surgida após a Revolução de 1930, conseguisse integrar alguns sectores excluídos da população brasileira. Mas, ao mesmo tempo, que se procura assim aparentemente construir uma sociedade mais justa, o Estado Novo cria em 1939 o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), inspirado nos moldes fascistas, com o objectivo de atingir todas as camadas sociais com a sua propaganda governamental, e que tinha ainda como função fazer censura ao teatro, cinema, rádio literatura, imprensa, etc. Como lembram os historiadores, a censura foi sendo exercida ao longo da história do Brasil; pela Igreja durante o período colonial, pela Coroa e mais tarde pelo Estado. Apesar de mais tarde, no pós-guerra, se assistir a um certo dinamismo da sociedade brasileira, como se mencionou ao referir-se Os Anos Dourados, os seus limites em termos económicos são ainda grandes. É de destacar, no entanto, o lançamento de revistas e principalmente de jornais, como a Gazeta, O Estado de São Paulo, contendo este último, um importante Suplemento Literário, onde críticos literários como Sábato Magali, Anatol Rosenfeld e Décio de Almeida Prado, entre outros, abordam o teatro alemão, nomeadamente o teatro épico de Brecht, publicando artigos teóricos e também críticas aos espectáculos de Brecht levados à cena no Brasil, como se menciona mais adiante. Não podemos, porém, esquecer que a literatura está limitada a certos círculos de leitores, como intelectuais, professores ou estudantes.

    Lembrando o teatro brasileiro nestas décadas é de salientar que em 1937, Getúlio Vargas, dentro do espírito de fomento da ¿brasilidade¿, cria o Serviço Nacional de Teatro (SNT), cujo objectivo primordial era cortar com os modelos europeus, que tinham até então inspirado os autores e encenadores brasileiros e criar um teatro nacional brasileiro, mas este objectivo não foi alcançado, já que no fim da segunda guerra mundial, em 1945, continuavam a passar apenas peças francesas de boulevard e comédias com influências europeias. Com o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas e a breve passagem do Brasil por uma democracia, são dados os primeiros passos a nível teatral. Em 1948 cria-se o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), tendo em mente um teatro mais politizado, mas que também não se desenvolver como se esperava.

    Antes de mencionarmos os três grupos teatrais brasileiros (vid. 6.3), que criaram o teatro independente brasileiro, relembra-se o Teatro Popular de Arte (TAP) criado em 1948 e que encenou a obra aqui em estudo A Alma Boa de Setsuan (1958) (nessa altura, já com a designação de Teatro Maria Della Costa), considerada na história do teatro brasileiro como a primeira encenação profissional do teatro de Brecht no Brasil. Esta companhia fundada pela actriz Maria Della Costa e pelo empresário Sandro Polloni ¿anuncia uma companhia que prioriza a linguagem cénica e os espetáculos inquietantes em detrimento do teatro de estrelas que caracteriza seu tempo.¿ (Teatro Popular Arte 2008), considerando que se inicia um teatro com valor cultural relevante. Esta companhia duraria até 1974 e como grandes êxitos ficariam na memória teatral as peças A Alma Boa de Setzuan (1958), já mencionada, Gimba (1958) e Depois da Queda (1964) de Arthur Miller, entre outras.

    A partir de 1955 assiste-se ao nascimento de três grupos de teatro: o Teatro Arena, o Teatro Oficina e o Teatro Opinião, que pretendiam reformar e teorizar o teatro brasileiro e cujos encenadores, muitos italianos seguem as correntes neo-realistas. Nasce assim o teatro independente brasileiro neste tempo de democracia, altura em que se sente necessidade de uma autonomia cultural. Desoladamente estes tempos de liberdade acabariam logo em 1964 com o golpe militar, já descrito anteriormente. No entanto, durante a censura, estes grupos encontrariam novas formas de expressão, começando a encenar autores brasileiros e autores estrangeiros, sobretudo Brecht, como a investigação de Sartingen (1994) dá conta, fazendo-o ¿abrasileiradamente¿, com o objectivo de veicular valores próprios do povo brasileiro e também como forma de tornar os conteúdos mais acessíveis aos espectadores.

    Estes grupos de teatro abriram o caminho para os anos 70 e 80, onde devido à repressão, os grupos que se formavam não eram profissionais, mas eram sim constituídos por pessoas com os seus empregos, que se juntavam para fazer teatro e que oficialmente não existiam. Ainda sobre o público brasileiro Sartingen relata as impressões pessoais de idas ao teatro , lembrando que no Brasil o cinema, o concerto e o teatro são denominados ¿espectáculo¿, e este é entendido como uma festa, que é muitas vezes interrompida pelos actores com pausas para conversar, comer e beber e onde se assiste a muita improvisação.

    Esta proximidade entre público e actores no Brasil é em parte semelhante ao que Brecht defende no seu teatro, nomeadamente, as apóstrofes ao público, como se menciona atrás. Talvez fosse este mais um motivo para que o autor fosse tão escolhido pelos encenadores brasileiros, como se constata pelas reacções do público ao teatro de Bertolt Brecht, bem como às formas que as suas peças tomaram no Brasil, que se mencionam de seguida (vid. 6.4). Da obra do autor Brecht o público brasileiro selecionou principalmente o teatro e ¿¿buscou a realização dessa preferência no evento social e imediato que é a encenação pública.¿ (Bader 1987:18), tornando-se um dos autores estrangeiros mais encenados no Brasil desde a década de 50 e interessa perceber o porquê desse interesse em Brecht e no seu teatro e, principalmente, perceber o modo como este foi recepcionado neste país. Como lembra Bader, quando se importa um elemento este pode servir à alienação, quando é tomado como modelo aceitando-se uma supremacia do estrangeiro ou, em vez disso, este elemento estrangeiro poder servir à identidade, que apropria, mas ao mesmo tempo altera esse modelo adaptando-o aos valores culturais próprios, adiantando que cada trabalho sobre Brecht se tornou ¿fruto de um encontro intercultural, contaminado inevitavelmente e das mais variadas formas por características nacionais cuja totalidade seria a essência brasileira de Brecht. (Bader 1987:14).

    Brecht é recepcionado no Brasil primeiro pelos intelectuais ligados ao movimento modernista, depois também por alemães exilados no Brasil, pertencendo alguns a grupos teatrais que encenaram de forma ainda amadora peças deste autor e foi ainda recepcionado por dramaturgos brasileiros, que nas suas deslocações à Europa assistem às suas peças, principalmente encenadas pelo Berliner Ensemble, na década de 50.

    Como se mencionou anteriormente vai ser em 1958 a apresentação da peça A Alma Boa de Setsuan, pelo Teatro Maria Della Costa em São Paulo, sob a direcção do italiano Flaminio Bollini Cerri, que vai ficar como marco do início do teatro de Brecht no Brasil, tendo o público recebido a peça com entusiasmo e a crítica julgado-a segundo critérios que foi procurar ao próprio Brecht, ¿procurava-se o Brecht ortodoxamente brechtiano.¿ (Bader 1987:16). Segundo Bader há dois momentos distintos na recepção das peças de Brecht no Brasil; um primeiro momento, em que o autor é seguido de forma ortodoxa, fiel (num processo de alienação (vid. Bader supra) e um segundo momento em que se procura o Brecht adaptado ao contexto brasileiro (num processo de apropriação vid. Bader supra). A encenação A Alma Boa de Setsuan, aqui em estudo, pertence segundo os críticos à primeira fase de recepção do autor, em que se procura seguir fielmente o estilo do autor, no entanto, da análise que se faz no capítulo oitavo pode-se afirmar que também nesta tradução/recepção há abrasileiramento, assunto que se retoma mais adiante.

    É assim que, nos anos 60, o teatro de Brecht é encenado pelos três principais centros de produção do teatro político brasileiro, já mencionados anteriormente, tendo ficado célebres encenações como Galileu Galilei, Na Selva das Cidades ou A Ópera do Malandro: em Galileu Galilei (Leben des Galilei, 1939) pelo Teatro Oficina (1968) a censura proibiu os actores de se dirigirem ao público, impedindo assim o efeito de estranhamento e o director do grupo introduziu dançarinos de samba, feiticeiros de macumba e elementos do culto afro de candomblé como modo de interromper acção. É também o Teatro Oficina que encena em 1969 a obra Na Selva das Cidades (Im Dickicht der Städte 1924) e a acção é transposta para a cidade de São Paulo ; ¿¿o espaço cénico era destruído todos os dias com algum perigo até para os actores, sendo uma proposta política que pretendia chocar e o conseguia. (Peixoto: 237).

    Magaldi (1987:224) considerou ser este um ¿espectáculo de rara poesia¿ e que a partir dele os directores brasileiros deixaram de se preocupar tanto com a exegese ortodoxa de Brecht. Também em A Ópera do Malandro (1978), escrita por Chico Buarque e inspirada nas obras Die Dreigroschenopera (1928) de Brecht e de The beggar¿s Opera de John Gay (1728) se satiriza a alta ¿malandragem¿, termo português brasileiro para a corrupção institucionalizada de ¿gravata e capital¿ e o grande êxito que alcança fica a dever-se a um conjunto de factores como a crítica social e a acessibilidade, pois Chico Buarque ¿abrasileira as obras anteriores, criando um vocabulário, uma estrutura de pensamento, uma gestualidade brasileiras.¿ (Rodrigues 1987:106). Sobre os caminhos de Brecht no Brasil, Bader (1987) resume que o sucesso de Brecht nos anos pós-64 se deve, sobretudo, à sua capacidade de corresponder à politização do teatro brasileiro e à capacidade dos grupos teatrais de adaptá-lo com sucesso à situação brasileira.

    Evoca-se no cap. 7 a história da primeira encenação de A Alma Boa de Setsuan (1958) no Brasil, a publicação da primeira tradução para português brasileiro (1959), bem como a história da publicação da segunda tradução (1977) desta obra no Brasil, apoiando-nos principalmente nos relatos de Geir de Campos, que juntamente com António Bulhões assina a tradução desta obra para português brasileiro.

    Como vimos A Alma Boa de Setsuan é sempre indicada pelos estudiosos do teatro brechtiano no Brasil como sendo a primeira encenação profissional de uma peça de Brecht neste país. É a partir de dois depoimentos de Geir de Campos que se fica a conhecer a história destas traduções; o primeiro depoimento intitulado ¿A Alma Boa de Setsuan¿ (1982) é publicado no livro A Tradução da Grande Obra Literária (depoimentos) (1982) e o segundo ¿Traduzindo poesia e teatro de Brecht¿ (1987) é publicado no livro Brecht no Brasil¿, Experiências e Influências, organização e introdução de Wolfgang Bader. Geir de Campos começa por narrar que os fundadores do Teatro Popular de Arte tinham lido a obra a partir da versão francesa, publicada pela editora L¿Arche, de Paris, ¿cuja leitura (os) deixara encantados¿ e convidam António Bulhões para fazer a tradução a partir dessa mesma versão francesa. Este, por seu lado, como amigo de Geir de Campos convida-o para que, quando chegasse o original encomendado à Editora Suhrkamp ¿¿ o texto alemão foi encomendado às pressas, por via aérea¿, este fizesse uma revisão se necessário. A tradução foi feita assim a quatro mãos, onde o tradutor Geir de Campos dispunha de uma tradução directa em francês e de uma tradução indirecta em português do Brasil e o seu trabalho era confrontar esta última feita por António Bulhões, com o original alemão. Geir de Campos salienta como é importante para um tradutor conhecer toda a obra e informação sobre o autor, mas como neste caso não foi possível, já que havia grande pressa: os actores já estavam contratados, o local de ensaio alugado, a estréia com data marcada e ¿até um diretor estrangeiro, Flamínio Bolinni, que faria a mise en scéne com as credenciais que para isso lhe dera a viúva de Brecht, a actriz Helene Weigel, então ainda viva.¿ (Campos: 1982b:35). O tradutor lembra ainda que não tiveram tempo para fazer uma contra-tradução e acrescenta que ele e Bulhões puderam assistir à maior parte dos ensaios da peça, e fazer uma ou outra mudança, exigida então pelas facilidades de leitura e interpretação pelos vários atores. (campos: 1987:220).

    Também relevantes são as opiniões dos críticos de teatro, principalmente a opinião de Décio de Almeida Prado, já mencionado atrás, que se tornou como que um porta-voz da sua época: ¿Não é fácil fazer restrições, quaisquer que sejam, a um espetaculo tão corajoso, tão inteligente, tão serio, tão trabalhado, tão limpo e honesto, tão novo entre nós, como o que acaba de estrear no Teatro Maria Della Costa. (1964:104-105).

    Ao êxito desta encenação seguiram-se outras e também o convite para acompanhar a comitiva governamental brasileira a Portugal, onde encenam várias peças, incluindo esta peça, como se relatou anteriormente.

    Geir de Campos conta-nos que depois de muitas vezes ensaiada e levada à cena o drama A Alma Boa de Setsuan foi publicado em 1959. A publicação de uma tradução de uma obra de Brecht no Brasil foi nesta época um caso isolado, mas muito significativo. Desde esta publicação em 1959 passar-se-iam quase vinte anos até que a obra teatral completa de Brecht fosse editada no Brasil, apesar de a partir desta década de 50 o teatro de Brecht ter sido sempre retomado, muito encenado, ¿deglutido¿ como refere Sartingen. Só em 1976 a Editora Civilização Brasileira começou a editar toda a obra teatral de Brecht e convida Geir de Campos para dirigir a colecção intitulada Teatro de Bertolt Brecht I-VI. Sobre esta tradução Campos afirma que fez uma nova tradução sem interferência do francês, ¿¿posso dizer que refiz em boa parte a tradução anterior, agora sem o compromisso com qualquer montagem e sem pressa nenhuma.¿, adiantando ainda que optou ¿¿por uma tradução literária, já que o fim imediatamente visado era a publicação em livros.¿ (1982b:44) Esta colecção torna-se um êxito comercial, ultrapassando as expectativas dos próprios editores e Brecht entra agora através do livro nas instituições de ensino ¿como objecto privilegiado de estudo¿. (Bader 1987:18).

    Sobre os tradutores pode acrescentar-se que se trata de dois escritores premiados e muito considerados no Brasil, tendo Geir de Campos sido também um investigador na área dos estudos da comunicação e da tradução. Nos ensaios ¿Tradução e Ruído na Comunicação Teatral¿ (1982), ¿O Ato Criador na Tradução (1983) e ¿Literalidade e Criatividade na Tradução¿ (1985) Geir de Campos reflecte sobre a tradução em geral, e no livro ¿Tradução e Ruído na Comunicação Teatral¿ aborda a tradução teatral em particular em temas como definição de tradução, a questão da tradução fiel versus tradução livre e, ainda, a questão da criatividade do tradutor. Apresenta a definição de tradução de Heidegger, onde se defende que na tradução há sempre uma ¿transfiguração fecunda¿ e onde esta noção de criatividade é discutida por Geir de Campos em paralelo com a questão da tradução fiel versus livre, sendo esta associação a que mais interessou ao autor/tradutor que, apesar de defender a tradução fiel sempre que esta seja possível, acaba por advogar que há sempre criatividade no acto tradutivo. Sobre o autor teatral adianta que ¿embora deva ter sempre presentes na imaginação as condições materiais do palco, por exemplo, há de escrever suas cenas como se as estivesse vendo desenrolar-se em espaço e tempos reais.¿ (Campos 1982a:7). Campos vai ainda realçar o papel do público/leitor, afirmando que em qualquer cadeia de comunicação é o destinatário quem determina a qualificação da mensagem, importante para estabelecer a forma que deverá tomar a tradução teatral, ¿se literária, para consumo do leitor comum, ou se propriamente voltada para as finalidades da encenação ou irradiação¿ (1982a:17). É este caminho que ele próprio põe em prática, na primeira tradução de A Alma Boa de Setsuan (1959) e na segunda tradução de A Alma Boa de Setsuan (1977) (vid. 7.2 supra) analisadas de seguida.

    Sobre a primeira tradução de 1959 relatou-se já que esta foi feita num primeiro momento com o objectivo da encenação e só mais tarde se deu a publicação. Analisando o TC pode afirmar-se que existe em termos gerais a preocupação de se seguir o TP de forma a que não haja perdas semânticas, mas nota-se, por um lado, um aumento de marcas de oralidade e, por outro lado, uma redução no número de elementos dos enunciados em certos momentos do drama. Acresce ainda que a partir da análise a nível microestrutural que se desenvolve parece poder afirmar-se que as escolhas operativas a nível linguistico-textual seguem uma norma inicial de aceitabilidade, privilegiando-se escolhas semânticas e sintácticas que favorecem essa aproximação à língua e cultura de chegada e que, em muitos casos parecem também ter como objectivo inerente a preparação do TT para a encenação. A teatralidade ou potencial dramático conceito, onde se englobou aspectos de ritmo, de imagética e da actualidade da linguagem escolhida assumem nesta tradução um papel preponderante.

    A tradução francesa a partir da qual se iniciou a tradução de 1959 mantém a macroestrutura do texto alemão e todas as suas estruturas, como prólogo, quadros, intermédios, canções, entre outros. A preferência pela manutenção dos nomes em chinês tem sido uma constante em todas as traduções analisadas e, também aqui, se respeita esta opção de Brecht naturalizando-se tanto graficamente como foneticamente alguns nomes das figuras para francês. Adiantou-se já que a tradução francesa influenciou algumas escolhas desta tradução para português brasileiro de 1959, mesmo tendo esta tradução sido num segundo momento comparada com o original alemão e revista de acordo com este. Estas influências são principalmente a nível de escolhas semânticas e sintácticas, nomeadamente através de reforços semânticos, de reordenações sintácticas a nível de pontuação e de deslocação de elementos do enunciado. Outra influência por este modo tradutivo indirecto é visível na redução de elementos, mas também no acrescento de elementos, opções que só aparentemente são contraditórias, como se evidencia mais adinate.

    A metodologia de análise é aqui a mesma seguida na Parte II deste trabalho, onde se analisou a tradução em português europeu. Estudam-se todas as apóstrofes ao público e todas as réplicas da figura principal e dupla Chen Tê e Chui Ta, identificando-se os padrões tradutivos recorrentes. Usou-se já na Parte II, capítulo 5, um conjunto de tipologias e de procedimentos tradutivos, que na sua maioria vão ser retomados também agora na análise da tradução em português brasileiro, mas acrescentando-se um grupo e um subgrupo, a saber o Grupo F, Reduções, e o subgrupo Substituição de Imagem mais Sentido do Grupo Metáforas. O grupo F, Reduções, foi criado e aplicado aqui na análise efectuada à tradução pb59 e consiste na eliminação ou omissão de elementos do TP, que na nossa análise correspondem a palavras simples, expressões, frases ou a combinações de mais do que um destes elementos. As reduções têm sido estudadas no âmbito tradutivo, nomeadamente por Hüsgen (1999: 332ss) que apresenta uma subdivisão deste conceito, 'semantische Straffungen' e Auslassungen'. As restrições semânticas são aqui restrições simplificadoras do discurso que, para além de o encurtarem, o tornam menos complexo, enquanto as omissões são como a própria palavra implica eliminações de elementos do TP. No nosso caso, porém, a grande maioria das reduções analisadas não são restrições semânticas, mas sim reduções ao nível da `quantidade¿ de segmentos discursivos, entendendo-se quantidade no sentido de uma das quatro máximas da conversação referidas por Grice. Há encurtamento do discurso, dizendo-se o mesmo, mas utilizando-se menos palavras, sendo que os elementos eliminados permanecem quase sempre implícitos na mensagem do TT. No Grupo Metáforas, para além dos subgrupos já tipificados, regista-se ainda uma estratégia tradutiva que consiste em substituir a imagem do TP por uma imagem nova no TC e ainda lhe acrescentar sentido.

    Passando agora aos resultados da análise microestrutural pode verificar-se que todas as tipologias e respectivos procedimentos tradutivos foram usadas por todos os elementos em análise (com excepção do Comportamento de Retoma que não se verificou no elemento Apóstrofes), apontando esta tradução também uma homogeneidade tradutiva e discursiva, registando-se as seguintes ocorrências de procedimentos tradutivos (ProcTrad): ChenTê (295), Chui Ta (201) e Apóstrofes (125).

    As percentagens dos procedimentos tradutivos totais usados pelos três elementos projectam um perfil do TT; Intensificação (69%), Redução (17%), Explicitação/Especificação (7%), Modulação (4%) e Equivalência (3%). Nestas percentagens estão também contabilizadas as ocorrências por influência da tradução francesa, que seguem, em termos gerais, a mesma tendência percentual.

    Pode afirmar-se que há uma intensificação do TT, primeiramente a nível dos valores suprassegmentais, reorganizando-se os enunciados de modo a que estes adquiram uma acentuação suplementar que, como se mencionou anteriormente, se atribui aqui a uma preparação do TT para a encenação: [158a] SHEN TE: Sie fürchten vielleicht, daß ich jetzt nein sage. Sie sind arm. (...) (p.20), [158pb59] CHEN TÊ - Talvez estejam com medo de que hoje eu lhes diga ¿não¿. Êles estão pobres. (¿) (p.16). Há inúmeras topicalizações e também por via indirecta: [288a] SHEN TE Gut. Wie haben Ihre Kinder die Nacht zugebracht? (p.18), [288f] CHEN-TÉ. - Très. Vos enfants ont passé une bonne nuit? (p.19), [288pb59] CHEN TÊ Muito bem. E seus filhinhos, como passaram a noite? (p.15) Há ao mesmo tempo uma intensificação dos valores semânticos ao reforçar-se o TT com valores rimáticos, coloquiais, enfáticos e até emocionais: [347a] SHUI TA schnell: Ich sehe, Sie brauchen eine Schlinge für den Arm. (p.75), [347pb59] CHUI TA - Já vi, e precisa uma tipóia para o braço. (p.83) ou por via francesa: [398a] SHUI TA Gestatten Sie, daß ich mit dem Verlobten meiner Kusine etwas bespreche. (p.71), [398f] CHOUI TA. - Permettez-moi de dire deux mots au fiancé de ma cousine. (p.59) [398pb59] CHUI TA - Permita-me dizer duas palavras ao noivo de minha prima.(p.77) O procedimento tradutivo que reduz o TT relativamente ao TP é só aparentemente contraditório, pois as reduções têm como objectivo não o eliminar de informação, mas sim o tornar os enunciados mais concisos e mais depressa apreensíveis e consequentemente mais depressa absorvidos pelo público/leitor. [363a] SHUI TA jämerlich: Es ist alles nur für das Kind, Frau Shin. (p.119), [363pb59] CHUI TA (miserável) - Tudo pela criança. (p.136) ou por via francesa: [298a] SHEN TE Ja, das ist ein Jammer. (...) (p.58), [298f] CHEN-TÉ. - C¿est bien dommage! (¿) (p.50), [298pb59] CHEN TÊ- É pena! (¿) (p.62) A Explicitação/Especificação na próxima réplica tem o objectivo de impedir ambiguidades: [318a] SHUI TA Shui Ta. Sie lächeln einander an. Angenehmes Wetter heute! (p.36), [318pb59] CHUI TA - Chui Ta, é o meu nome. (Sorriem um para o outro) O tempo hoje está bonito! (p. 35) As estratégias modulatórias e de procura de equivalências pretendem também, que todos os sentidos sejam bem explicados e também bem conservados no TC.

    Interessa fazer um comentário final destacando e relacionando os aspectos mais caracterizadores desta tradução tanto a nível paratradutivo como a nível tradutivo para poder chegar a uma compreensão sobre os valores e intenções que subjazem às escolhas tradutivas e principalmente a uma percepção global do texto traduzido.

    Retornando ao fenómeno paratradutivo da incorporação de elementos novos nas literaturas receptoras através da tradução o caso do teatro épico de Brecht é um caso paradigmático, já que o seu teatro marcará e inovará o teatro mundial. A literatura brasileira pelo exposto nos capítulos anteriores pode ser considerada à época uma literatura jovem e a tradução continua a assumir um papel forte, isto é, continua a contribuir para a criação de novos géneros ou tendências. No caso específico do teatro de Brecht este foi traduzido, adaptado, ¿abrasileirado¿, no sentido de veiculação de valores próprios brasileiros e contribuindo, deste modo, para a criação de um teatro brasileiro independente. Convém, no entanto, lembrar que na primeira fase de entrada de Brecht no Brasil, a tradução destinava-se principalmente à encenação, já que a publicação sistemática da obra de Brecht só aconteceria mais tarde na década de 70 (vid 7.2 supra). Ainda sobre o ¿abrasileiramento¿ ou apropriação do teatro de Brecht viu-se como os críticos brasileiros consideram este como um segundo momento na recepção deste autor, considerando que num primeiro momento houve alienação ou um caminho ¿ortodoxamente brechtiano¿, ao qual pertenceria a tradução aqui em estudo, arrumação que, no entanto, não nos parece ser totalmente estanque, já que também a nossa análise mostra que os tradutores fazem escolhas que se afastam desta ortodoxia, como se viu pelos procedimentos tradutivos escolhidos.

    Começando pelas normas preliminares ou directrizes políticas e editoriais sabemos que a publicação desta tradução em 1959, um ano depois da sua encenação, foi um caso isolado e até casuístico. Também o pedido para tradução desta obra aconteceu de forma isolada, pois a companhia depois de ler a obra em francês pretendeu encená-la e precisou da tradução para português brasileiro. Relativamente à norma de recepção esta assume, na nossa opinião, nesta tradução um papel muito preponderante, sabendo-se que há uma grande expectativa relativamente à estréia que está a ser preparada para ser ¿um espectáculo em grande estilo¿. A questão da expectativa criada antecipadamente leva-nos à questão da norma inicial, isto é, das opções que o tradutor faz antes de começar o seu trabalho tradutivo, isto é, se vai seguir o caminho da adequação numa aproximação ao TP ou se ao contrário optar vai optar por uma aceitabilidade ao TC.

    Pelo estudo paratradutivo considera-se que os tradutores teriam a adequação como objectivo, mas que, no entanto, o próprio processo tradutivo, a proximidade da encenação em termos temporais, também a proximidade com o trabalho de representação dos actores e ainda a expectativa criada, que se nomeou atrás, levou os tradutores a um trabalho final que está mais perto da aceitabilidade à língua e cultura de chegada. Também sobre a tradução teatral Campos acentua a importância do público receptor, já que este será decisivo para que o tradutor opte por uma tradução literária para consumo do leitor comum ou, ao contrário, opte por uma tradução adaptada à finalidade da encenação e é essa opção que nos parece estar na génese dos procedimentos tradutivos eleitos na presente tradução.

    Os elementos paratradutivos como que guiam a análise tradutiva a nível microestrutural ajudando ou favorecendo a sua interpretação. A análise tradutiva elaborada evidencia uma recorrência aos procedimentos tradutivos usados, que mostra homogeneidade não só no tipo de procedimentos a que se lança mão, como também na utilização destes pelos três elementos analisados: as apóstrofes, elemento caracterizador do teatro épico e Chen Tê/Chui Ta, figura central, dupla e temática que apresenta, consubstancia e dramatiza a dialéctica brechtiana.

    Os procedimentos tradutivos eleitos nesta tradução recaem, como se constatou, sobretudo nas intensificações, nas reduções, nas explicitações/especificações, nas modulações e nas equivalências, registando-se pequenas oscilações em termos de número no uso que delas fazem os três elementos analisados e ainda pequenas flutuações conforme estes procedimentos chegam por via directa ou por via indirecta.

    A intensificação dos enunciados dá-se primeiramente por questões de alteração supra-segmental intensificando retoricamente certos elementos do enunciado que, embora sejam opcionais, têm a nosso ver uma intenção pragmática e também estilística, promovendo o aumento de valores de teatralidade no que diz respeito a valores rítmicos e que parecem ter a sua justificação pela proximidade da encenação.

    O procedimento tradutivo intensificação engloba também o reforço semântico rimático, coloquial, idiomático e até por formação de diminutivos não presentes no TP. Na presente tradução, as rimas, vindas maioritariamente da tradução francesa, contribuem para introdução de melodia no TT, acentuando valores rítmicos de teatralidade. Os diminutivos, por seu lado, introduzem emoções e, neste caso, as emoções são sentidas quase sempre por Chen Tê, cuja bondade é reforçada no TT como que vincando a caracterização desta figura. Os coloquialismos e idiomatismos (em parte brasileirismos) e, muitas vezes, com cargas imagéticas são usados por pertencerem a uma linguagem actual e rapidamente compreensível pelo público/leitor e que reforçam também valores de teatralidade através da idiomaticidade, tendo ainda uma intenção ideológico-política ao domesticarem o TT. A intensificação de valores semânticos e retóricos acontece ainda através de inúmeras enfatizações que marcam a oralidade e a intensificação está ainda patente no comportamento de retoma verbal, um recurso típico da língua portuguesa, e que nesta tradução ajuda mais uma vez a reforçar a caracterização de Chen Tê, tendo um valor de idiomaticidade e, por consequência, de domesticação. O segundo grande grupo de procedimentos tradutivos em termos quantitativos é a redução numa preferência por enunciados concisos e rápidos.

    Por todo o estudo paratradutivo e tradutivo elaborado parece-nos poder afirmar que se trata aqui de uma opção consciente da parte dos tradutores e que tem como finalidade tornar as réplicas eficazes em termos de dizibilidade, de representação e que tem como objectivo uma percepção imediata por parte do público. Em termos de estratégia tradutiva a redução dos enunciados tem assim aqui um valor de opcionalidade e uma intenção principalmente pragmática que se valoriza em termos de teatralidade.

    Os três procedimentos restantes a explicitação/especificação, a modulação e a equivalência têm representação menor em termos quantitativos, mas similarmente aos procedimentos tradutivos anteriores distribuem-se de forma quase uniforme pelos três elementos analisados. Também as modulações, na sua maioria de teor explicativo, pressupõem a mesma intenção pragmática de eficácia dos enunciados. Por último, o processo tradutivo equivalências, que se restringiu nesta análise ao estudo dos sentidos metafóricos do TP, mostrou que se recorreu a variadas formas para manter ou converter as referências imagéticas e de sentido no TT.

    Lembrando ainda a influência da tradução francesa parece poder afirmar-se que os tradutores brasileiros tinham uma estratégia tradutiva em mente e sempre que esta era consonante com as estratégias da tradução francesa optou-se pelo mesmo caminho, como é muito patente no caso da tradução da poesia. Os versos brancos alemães são vertidos para francês e para português brasileiro com rima, acrescentando-se assim melodia às palavras ditas/lidas.

    A importância da palavra dita, do teatro no Brasil à época ficou bem patente na análise contextual que se fez anteriormente e a tradução ao acentuar uma teatralidade que se entende aqui como um modo de usar a língua acentuando-se aspectos rítmicos, imagéticos e actuais patenteia toda uma preparação para a encenação.

    Pode tomar-se a encenação em termos gerais como um trabalho intralinguístico, tradutivo, no sentido lato que Jakobson atribui à tradução (vid. 1.1) e ainda paratextual, já que este trabalho de verter um texto, quase sempre escrito, para a encenação num palco consiste num modo particular de o apresentar, de o interpretar. Assim, também a tradução para encenação, um trabalho interlinguístico, pode ser descrito como um trabalho paratradutivo, pois é a encenação ela própria que ¿¿ introduit et présente la traduction proprement dite en assurant sa présence au monde, sa réception et sa consommation ¿¿ (Yuste Frías 2010: 291-292).

    O caminho que se percorreu de análise no âmbito da paratradução, estudando a tradução e o seu contexto, numa perpectiva holística do TT, leva-nos a acreditar que este drama, apesar de se apresentar como texto para publicação, acaba por estar pleno de elementos caracterizadores do texto para representação.

    Analisa-se no capítulo nono a tradução para português brasileiro A Alma Boa de Setsuan (1977/1992) incluída no volume sete do Teatro Completo. Apesar das peças de Bertolt Brecht serem já encenadas no Brasil há duas décadas é através desta colecção que a sua obra escrita fica disponível ao leitor brasileiro. O período da década de 60 foi considerado a consagração do teatro de Brecht no Brasil com inúmeras encenações, apesar do Golpe Militar de 1964 e do Ato Institucional em 1968, seguindo-se em 1978 uma abertura do regime e também a possibilidade para as publicações das traduções deste autor.

    Geir de Campos está assim num primeiro momento junto com António Bulhões e num segundo momento sozinho, (apesar da assinatura da tradução em conjunto) na génese da aproximação de Brecht ao público e ao leitor brasileiro. Sobre a tradução deste texto dramático em particular Geir de Campos afirma ter tido em mente uma tradução mais literária e sem compromisso com uma encenação imediata. Apesar destas afirmações constata-se na tradução que a preocupação com o público e com aquilo que se definiu anteriormente como teatralidade está presente no texto de várias formas, como se retoma mais adiante. Analisando a tradução do ponto de vista das normas operativas constata-se que a nível matricial há a manutenção da macroestrutura, das indicações cénico-espaciais e das indicações aos actores. A tradução dos nomes, topónimos e antropónimos, mostra que também nesta tradução se optou por manter as designações chinesas naturalizando-se graficamente alguns antropónimos, como sejam a título exemplificativo: Shen Te que passa a Chen Te, Shui Ta a Chui Ta, Mi Tzü a Mi Tsu, mantendo-se, no entanto, outros na sua forma original a saber, Yang Sun e Wang. É a nível linguístico-textual no que concerne a selecção do material específico para formular o TC que se constatam diferenças entre os dois textos. Há principalmente alterações a nível supra-segmental, que resultam em alteração nas pausas e na própria melodia do texto, há também escolhas semânticas, que afectam o tom do texto, tornando-o mais expressivo ou idiomático e há ainda amplificações, enfatizações e especificações, entre outros, como fica patente na análise microestrutural.

    Também nesta tradução se constata que todas as tipologias foram usadas pelos três elementos da obra, o que aponta desde logo para uma certa homogeneidade nas estratégias tradutivas, registando Chen Ta 309 ocorrências, Chui Ta 235 e as apóstrofes 109. Somando todas as ocorrências tipológicas e afectando-as aos procedimentos tradutivos temos o seguinte resultado: 71% de Intensificações, 13% de Explicitações/Especificações, 12% de Amplificações, 2% de Modulações e também 2% de Equivalências.

    Pode afirmar-se que o TC apresenta uma intensificação semântica e retórica relativamente ao TP e que esta intensificação se consubstancia primeiro numa maior acentuação supra-segmental, alterando pontuação e deslocando elementos à esquerda, muitas vezes topicalizando esses elementos: [541a] SHUI TA Sie sind zu teuer für mich. (p.34), [541pb77] CHUI TA - Para mim, são caras demais. (p.84).

    As intensificações dão-se também por reforços semânticos, que são frequentemente opções por coloquialismos, rimas, expressões idiomáticas: [488a] SHEN TE Wollen Sie wirklich einer so leichtsinnigen Person Geld leihen? (p.59), [488pb77] CHEN TE - Vocês estão mesmo dispostos a emprestar dinheiro a uma pessoa como eu, sem eira nem beira? (p.107) Também se intensifica o TC por acrescentos enfáticos: [490a] SHEN TE zu Wang, ihr Kuvert hochhebend: (...) Und was sagst du zu meinem neuen Shawl, Wang? (p.59), [490pb77] CHEN TE a Wang, levantando a mão com um envelope - (...) E que me diz do meu xale novo: que tal, hein,WANG? (p. 108) Constata-se ainda que o TT é mais explícito/específico do que o TP pelos acrescentos que introduz com esse valor: [538a] SHUI TA Ich bin der Vetter. (p.32), [538pb77] CHUI TA - Eu sou o primo da senhorita Chen Te! (p.82) Também é mais explícito/específico pelas preferências por retomas nominais em vez das retomas pronominais do TP: 554a] SHUI TA 200 Silberdollar! Das ist halsabschneiderisch! Wie soll ich das aufbringen? (...) (p.39), [554pb77] CHUI TA - Duzentos dólares! Isso é extorsão de usurário! Onde é que eu vou buscar tanto dinheiro? (¿) (p. 89) O TC é ainda mais amplificado do que o TP: [632a] SHUI TA Dann laßt mich euch die furchtbare Wahrheit gestehen, ich bin euer guter Mensch! (p.138), [632pb77] CHUI TA - Deixai que eu vos revele a terrível verdade: a alma boa, de quem falais, sou eu! (p.180) Por fim, o TT apresenta também preocupações com a preservação de sentidos quando exprime ideias mudando de ponto de vista ou ainda quando procura equivalentes para sentidos referenciais ou imagéticos na língua e cultura de chegada ou, quando esses não existem, convertendo essas imagens em sentido: [437a] SUN zum Publikum, wie verwandelt: »Pack deinen Koffer und verschwind, bevor der Vater des Kindes davon Wind bekommt! (...) (p.122-123), [437pb77] SUN ao público - Arrume as malas e desapareça, antes que o pai da criança chegue a desconfiar de alguma coisa! (p. 164-165) Considera-se que estas opções tradutivas têm em geral um caracter opcional e de idiomaticidade e uma intenção, por vezes, pragmática, outras vezes, estética e ainda ideológico-política, assunto que se retoma de seguida.

    No comentário final a esta tradução para português brasileiro de 1977 interessa salientar os pontos mais relevantes tanto em termos de caracterização tradutiva como de caracterização paratradutiva e, ainda, relacioná-los entre si para chegar a uma percepão global de valores e intenções das escolhas do TT. Começando pelo contexto paratradutivo, nos seus aspectos históricos e sociais (vid. 6 supra) importa reter que em 1977, ano da publicação desta tradução, o Brasil continuava a viver há mais de uma década sob uma ditadura militar e com censura instituída. Mas, apesar de tudo, a política editorial era agora um pouco mais favorável do que nos anos 50 aquando da primeira tradução editada em 1959 e é lançada a publicação da colecção do teatro de Brecht em português brasileiro, esgotando-se todas as edições. A obra dramática traduzida passa, a partir desta publicação, não só a ser lida pelo público brasileiro, mas também a ser estudada, principalmente a nível universitário onde Bertolt Brecht passa a ser um autor muito investigado em termos de trabalhos científicos.

    Ao analisar-se a norma inicial ou o ponto de partida desta tradução, o caminho da adequação ou o da aceitabilidade, é necessário nesta tradução, em particular, associar ainda uma outra dicotomia aqui intimamente ligada à primeira que é a tradução para publicação versus tradução para encenação (vid. 1.3 supra).

    Pelo relato do tradutor sobre o processo tradutivo que teve em mente nesta segunda tradução pb77 e, também, pelas posições teóricas expostas atrás pode concluir-se que o tradutor teria a adequação como ponto de partida e iria assim seguir as normas do texto de partida. Não se pode esquecer que o autor Brecht era na década de 70 um autor plenamente consagrado a nível mundial e que os tradutores, em geral, teriam também a percepção da importância de manter a palavra de Brecht, monstro sagrado, nas palavras de Lima (1987:90), principalmente num texto para publicação.

    A norma inicial de adequação foi, no entanto, ao longo do processo tradutivo dando muitas vezes lugar à norma da aceitabilidade, aproximando-se o TC frequentemente da língua e cultura de chegada e a tradução, que se pretendia para publicação, foi também frequentemente absorvendo características de uma tradução para encenação, como a análise das normas operativas no âmbito da análise tradutiva acaba por apontar.

    Lembrando os resultados globais da análise microestrutural verificou-se que os procedimentos tradutivos mais recorrentes são em primeiro lugar as intensificações, seguido das explicitações, das amplificações, das modulações e, por último, das equivalências. Começando pelos ProcTrad menos abundantes temos as equivalências que neste estudo se confinam aos sentidos metafóricos e à análise das soluções tradutivas escolhidas. As opções tradutivas de substituição de imagem ou de conversão em sentido são estratégias típicas do processo tradutivo comum a qualquer tipo de tradução, mas, mesmo assim, considerou-se a sua análise importante, já que os sentidos metafóricos no texto literário e inclusivamente no texto dramático são relevantes do ponto de vista da expressão estilística e, por isso, também, da análise tradutiva. No caso das Modulações, a opção do tradutor pela mudança de ponto de vista, serve aqui também um intuito explicativo, isto é, interessa que tudo seja apresentado de forma acessível, o que se compreende pelo objectivo que se considera estar latente nestas opções, que é a teatralização do texto, apesar desta tradução visar a publicação.

    Quanto às Amplificações, estas caracterizam esta tradução de uma forma muito particular e provam a intenção do tradutor de fazer aqui uma tradução para publicação, ao contrário da tradução pb59 que, como se analisou no capítulo precedente, opta pela estratégia tradutiva oposta ao recorrer com abundância ao ProcTrad Redução. Em termos de norma inicial pode-se também concluir que a amplificação se aproxima do intuito da aceitabilidade, pois esta estratégia denota o objectivo do tradutor de verter todos os conteúdos semânticos do TP usando-se, para isso, um maior número de palavras no TC, frequentemente em momentos chave da intriga, como a análise evidenciou. Parece poder atribuir-se a este ProcTrad um valor de opcionalidade e uma intenção pragmática.

    Um comportamento similar se atribui ao ProcTrad Explicitação/Especificação composto por especificações relativamente ao TP e por comportamentos de retoma nominal. Estes recursos tradutivos tendem a tornar o TC mais acessível, menos ambíguo, seguindo-se os pressupostos já enunciados anteriormente que têm em vista tornar o texto dramático perceptível de forma instantânea. O ProcTrad que se destaca em número de ocorrências é, como a análise apontou, a intensificação, que inclui em ordem descendente a reordenação sintáctica, os reforços semânticos, os acrescentos enfáticos e os comportamentos de retoma verbal.

    Começando pelos CRv focou-se já anteriormente que esta é uma opção de aproximação ao TC ao preferir-se fórmulas de resposta típicas da língua de chegada e insere-se assim no conceito de aceitabilidade tendo, no entanto, um valor de opcionalidade e de idiomaticidade e uma intenção pragmática e também ideológico-política no sentido em que há um processo de domesticação. As Enfatizações, aqui acrescentos em forma de advérbios, partículas de realce, interjeições, algumas com valor de estruturantes de discurso que iniciam uma réplica, têm como função chamar a atenção do interlocutor para o que vai ser dito. Estas opções são a nosso ver opções de teatralidade, pois estas enfatizações são acrescentadas pelo tradutor funcionando como instruções aos actores tratando-se aqui de uma estratégia de representação ou performance-oriented, preconizando ao mesmo tempo uma opção de adequação. Para a intensificação dos enunciados do TC contribuem também o grande número de reforços semânticos consubstanciados na introdução de rimas, palavras e expressões coloquiais (às vezes brasileirismos), idiomatismos, diminutivos, como se mostrou na análise. Estes reforços semânticos são uma opção de aceitabilidade havendo aproximação à língua e cultura de chegada, por isso, também ao leitor/espectador do TC, numa estratégia mais próxima da representação, lembrando-se ainda que a intensificação semântica tem nas rimas também uma intensificação retórica e que no seu conjunto este ProcTrad tem um valor de opcionalidade, idiomaticidade e ainda uma intenção estética (rimas), mas também ideológico-política ao recorrer à domesticação.

    A domesticação como opção tradutiva de Geir de Campos parece estar em consonância com o que o autor defende sobre o texto teatral: ¿E para que a obra teatral resulte perfeita, o texto há de ser adequadamente inteligível pelas pessoas às quais se destina, tanto no palco quanto na plateia. ¿ (Campos 1982a:7).

    Ainda sobre o procedimento tradutivo intensificação este é constituído em primeiro lugar por um grande número de reordenações sintácticas consubstanciadas em alterações de pontuação e em deslocações à esquerda, que introduzem uma nova prosódia nos enunciados, conferindo-lhes valores melódicos numa nítida estratégia de representação como que introduzindo indicação aos actores de como declamar certas réplicas. Está-se aqui no âmbito da linguagem e ritmo que se considerou como uma das componentes da noção de teatralidade. Também as deslocações à esquerda têm como objectivo o acentuar de determinados conteúdos do texto, sendo que nas topicalizações esta acentuação é ainda mais relevante, pois os elementos deslocados tornam-se tópicos da frase e o acento supra-segmental recai sobre eles. A ordem das palavras é aqui instrumento do jogo teatral, (Déprats 1990:76). O próprio Geir de Campos ao falar sobre a presença do autor ou do tradutor durante os ensaios e sobre as reformulações do texto para conveniência do espectáculo afirma ¿Às vezes é um esclarecimento sobre um ponto menos claro do texto, outras vezes é um simples toque na ordem das palavras, tudo contribuindo para melhor comunicação dramática. (Campos 1982b:42). Ainda sobre o ProcTrad mais recorrente a intensificação cabe relembrar que as intensificações a nível supra-segmental têm um valor de opcionalidade e uma intenção pragmática, estilística e que consubstanciam ainda uma estratégia de representação e uma opção de aceitabilidade.

    Pela análise feita pode concluir-se que nesta tradução se recorre a estratégias de representação bem como a estratégias de leitura e que tanto esta dicotomia como a dicotomia adequação/aceitabilidade não devem ser encaradas a nosso ver como divisões estanques, como se defendeu atrás. Ao concluir-se o estudo desta tradução e retomando as palavras de Geir de Campos citadas em cima sobre a sua presença nos ensaios e sobre a construção da melhor comunicação dramática cabe lembrar, a este propósito, as afirmações de William Gregory (2010:18ss), que aconselha o tradutor de teatro a envolver-se no mundo teatral para que as suas traduções possam ser construídas baseadas no potencial dramático. O potencial dos textos dramáticos reside no efeito que estes podem ter no momento da sua representação, acrescentando ainda Gregory que o tradutor deve deixar no texto as características que estimularão o actor na sua própria criatividade. Consideramos que foi este também o caminho seguido por Geir de Campos, que trabalhou em conjunto com actores e encenadores e que reflectiu sobre a tradução em geral e sobre a tradução teatral em particular. O texto traduzido unifica assim os dois paradigmas que Geir de Campos aprofundou, tanto em termos teóricos como em termos práticos, o teatro e a tradução.

    Nas conclusões a este estudo - não muito extensas, dado que se optou já por rematar os capítulos de análise com subcapítulos de índole conclusiva - importa recolocar as questões teóricas formuladas no capítulo primeiro e tirar inferências da sua aplicação no presente trabalho de investigação.

    Procurou-se nos ET, tanto nos seus preceitos teóricos como nas suas metodologias de cariz mais prático, as bases para, a partir da comparação entre cultura/texto de partida e respectivas culturas/textos de chegada, descrever e valorar os modos discursivos registados nos textos traduzidos analisados. Tendo este objectivo em vista, considerou-se que o presente estudo, como se tinha já mencionado anteriormente, se inscreve no mapa dos ET proposto por Holmes (1972) como um estudo tradutivo puro, descritivo e de análise do produto traduzido.

    Para a descrição dos produtos traduzidos, ou seja, das traduções aqui em análise, partiu-se do princípio orientador inscrito na paratradução de que uma tradução não provém de um trabalho puramente interlingual, mas antes tem inscrita na sua génese e identidade o tempo e o espaço de onde provém, desenvolvendo-se, assim, este estudo tendo em conta as traduções e respectivos contextos espaciais e temporais.

    Começando por separar, num primeiro momento, questões de ordem paratradutiva contextual de questões de ordem tradutiva (mais adiante, de novo, consideradas em interligação), interessou dar resposta a preceitos teóricos estudados nos ET, ponderando-se de seguida, primeiro, os pertencentes ao âmbito paratradutivo e que abaixo se explanam.

    Seguindo as normas de Toury (1980, 1995/2012) e também de Rabádan (1991) entendidas como categorias para a análise descritiva dos fenómenos tradutivos, importou analisar as normas preliminares e as normas de recepção, as primeiras concernando as políticas editoriais e a sua possível influência nos TT e as segundas questionando até que ponto o tipo de público receptor expectável pode ou não determinar estratégias tradutivas a adoptar. Igualmente conveio investigar qual a norma inicial eleita pelos tradutores antes de começar o seu processo tradutivo, ou seja, se estes vão optar pela adequação, seguindo as normas do texto de partida, ou se, pelo contrário, vão optar pela aceitabilidade e reger-se, conformemente às normas da língua e cultura de chegada. Ainda a partir do conceito de literatura como entidade polissistémica, pesquisou-se se as traduções analisadas tiveram uma função primária, criadora de novos géneros e estilos na língua e cultura de chegada ou se tiveram antes uma função secundária, perpetuadora de géneros e estilos existentes.

    Principiando pela tradução para português europeu e por rever as questões das normas preliminares, ou seja, das políticas editoriais e de todo o contexto político, social e cultural, que as sustentam, conclui-se que, aquando da primeira encenação e, mais tarde, publicação de A Boa Alma de Setsuan, se viviam em Portugal tempos de ditadura e censura e que aliada a esta situação ou, como consequência implícita desta, existia uma alta taxa de analfabetismo. As obras de Brecht eram, entre muitas outras obras de autores estrangeiros e portugueses, proibidas em Portugal.

    Não deixa de ser de assinalar que a primeira encenação de uma peça de Brecht em Portugal, oficialmente autorizada, tenha sido a encenação de A Alma Boa de Setsuan pela Companhia de Maria Della Costa, na tradução de Geir de Campos e António Bulhões, que se estuda na Parte III do presente estudo. A autorização deu-se por questões de ordem política (o desejo de uma melhoria das relações políticas entre Portugal e o Brasil) e a sua proibição, logo cinco dias após a estréia, deu-se também por razões de ordem politico-ideológica, já que se considerou que a encenação desta peça de Brecht causava ¿distúrbios na ordem pública¿.

    Para além das obras de Bertolt Brecht visarem ¿uma derrotista propaganda comunista¿ (nas palavras do censor), há principalmente a mensagem explícita desta obra: O homem é bom, mas as circunstâncias em que vive, isto é, o modelo de sociedade existente, não lhe permite sê-lo. Esta mensagem é ainda apresentada num modelo de teatro épico, dialéctico, que impõe ou que transforma o público/espectador em participante na acção. O mundo deve ser modificado e essa mudança tem de ser feita pelo público consubstanciando este, todos os membros da sociedade.

    A tradução e publicação do texto A Boa Alma de Sezuan pelos também escritores Ilse Losa e Alexandre O¿Neill foi acolhida com um enorme interesse da parte do público e com louvores da parte da crítica, como se leu nas palavras de Mário Vilaça (vid 4.3), que salienta a recepção imediata do público.

    Tendo em conta todo este contexto e, particularmente, pensando no público receptor desta tradução, é natural que se questione até que ponto o TT reflecte preocupações com esse mesmo público, isto é, até que ponto a norma de recepção (Rabadan 1991 vid 1.1) determina as estratégias tradutivas a adoptar. Os tradutores deste drama, Ilse Losa e Alexandre O¿Neill, a primeira, grande conhecedora da obra de Brecht e uma das primeiras a escrever na imprensa portuguesa sobre este autor e, o segundo, muito ligado à contestação à política da ditadura portuguesa tinham, a nosso ver, um duplo objectivo a alcançar através desta tradução; por um lado, dar a conhecer o autor Brecht, o seu modelo estético e a mensagem implícita neste drama de que o homem não consegue simultaneamente ser bom e sobreviver no tipo de sociedade em que vive e, por outro lado, contribuir para uma transformação dessa mesma sociedade, no caso, a sociedade portuguesa, mostrando que existem soluções de mudança e que estas estão ao alcance do público, ou melhor, que as mesmas podem e devem ser implementadas pelo próprio público. Este duplo objectivo da parte dos tradutores está reflectido na própria linguagem escolhida, análise que se retoma mais adiante.

    Relativamente à norma inicial ou escolha inicial que o tradutor faz antes de principiar a tradução, isto é, se vai optar por uma tradução adequada, próxima ao TP ou, ao contrário, se escolhe a norma inicial da aceitabilidade, numa aproximação ao TC, não se encontrou na investigação feita uma declaração explícita da parte dos tradutores sobre esta matéria. No entanto, pela análise que se fez do TT chega-se à conclusão, como se disse anteriormente, que este se aproxima da aceitabilidade em muitas opções tradutivas e que se acredita, neste estudo, que essas opções são opções conscientes e ideologicamente marcadas. Usa-se aqui o termo ideologia no sentido que lhe atribuem Hatim e Mason, quando afirmam que o tradutor actua num determinado contexto social, do qual também faz parte e é, neste sentido, que a tradução é em si mesma uma actividade ideológica (1997:146 vid. 1.2).

    Ainda reflectindo no âmbito paratradutivo sobre a incorporação ou não de elementos novos nas culturas e línguas receptoras afirmou-se já, previamente, que esta tradução tem na literatura portuguesa uma função primária, pois contribui para que se agregue não só uma nova estética teatral na literatura portuguesa como também uma nova ideologia. Os modos motivados como se constrói o TT consubstanciam estas opções de nível paratradutivo e estão reflectidos nas opções tradutivas, como se retoma mais adiante.

    Passa-se de seguida à reflexão sobre estes mesmos elementos paratradutivos no que concerne a tradução em português brasileiro A Alma Boa de Setuan (1959) por Geir de Campos e António Bulhões. O contexto brasileiro foi já caracterizado anteriormente e interessa aqui reter que relativamente às normas preliminares o campo económico-editorial no Brasil, nesta década de 50, era ainda pouco desenvolvido e, à semelhança de Portugal, também neste país o número de analfabetos era ainda muito grande. No entanto, durante os Anos Dourados (1956-1964), em que tudo parecia possível, a companhia Teatro Maria Della Costa alcança as condições para num curto espaço de tempo ter na mão uma tradução de A Alma Boa de Setsuan, feita do francês para o português e da comparação posterior com o alemão e, também, ensaiar e estrear, inaugurando uma nova sala de espectáculos, e tornando esta encenação na primeira encenação profissional do teatro de Brecht no Brasil, conseguindo ainda um grande sucesso junto do público.

    Relativamente à influência do público/receptor na obra a ser traduzida/encenada, designada norma de recepção (Rabadan 1991), sabe-se que, neste caso, a expectativa do público era grande (vid. 7. 1.1) e, também, que Geir de Campos, como investigador na área da Comunicação, da Direcção Teatral e da Tradução de Teatro, entre outras áreas, realça a importância do destinatário e a ponderação que sobre este deve ser feita na cadeia de comunicação. Ligada também a esta norma de recepção está a norma inicial, que se bipolariza em adequação e aceitabilidade. Pelo estudo que se fez, nomeadamente também, sobre as teorias e práticas tradutivas de Geir de Campos (vid. 7.3.2) acredita-se que o tradutor (de António Bulhões não se tem depoimentos próprios) teria a adequação como objectivo, dado as suas posições teóricas sobre a questão da procura da equivalência tradutiva e da fidelidade ao autor. No entanto, o próprio processo tradutivo, um trabalho conjunto de proximidade com o trabalho dos encenadores e actores, e a preocupação com o destinatário, o público brasileiro, fez com que muitas das opções tradutivas estejam mais próximo da norma de aceitabilidade, como se mencionou já anteriormente e como se retoma mais adiante.

    O êxito desta encenação e posterior publicação desta obra brechtiana abriu caminho para a entrada do teatro de Brecht no Brasil e teve uma função primária no sentido em que implementou uma literatuta dita ¿jovem¿, pensando em termos polissistémicos, a libertar-se dos cânones europeus e a procurar uma identidade própria. Na história do teatro de Brecht no Brasil (vid. 6.4), os historiadores literários integram a presente encenação na primeira fase de Brecht no Brasil, que designam como uma fase ortodoxa ¿ arrumação com a qual não se concorda totalmente, como se mencionou já e que se aborda mais adiante. Na segunda fase de Brecht no Brasil, a fase da apropriação, adapta-se Brecht ao contexto brasileiro, seguindo um pensamento defendido já há umas décadas no pensamento brasileiro (vid 1.1) que, como se relatou, teve iníco com o Movimento Antropofágico Brasileiro (1920) e que sustenta a libertação da cultura brasileira dos cânones europeus. A apropriação brechtiana alcançou, nesta segunda fase do teatro de Brecht no Brasil, a sua realização plena, como fica também patente no estudo de Sartingen e da sua classificação de abrasileiramentos.

    A segunda publicação deste drama de Brecht no Brasil em 1977, quase vinte anos depois da primeira publicação, corresponde a um momento diferente da história brasileira, ainda a viver num regime ditatorial, mas a investir agora mais no mercado editorial. Depois do autor Brecht ter sido muito encenado, mesmo que por vezes clandestinamente (vid. 6.3 e 6.4), dá-se agora a publicação dos seus dramas numa colecção que pretende reunir toda a sua obra dramática. Relatou-se que Geir de Campos foi convidado a dirigir esta colecção tendo ele próprio traduzido várias obras e feito também uma nova tradução de A Alma Boa de Setsuan.

    A norma da recepção teve um papel relevante, já que o próprio tradutor Geir de Campos assume que, na segunda tradução, teve em mente o público receptor que, neste caso, eram os leitores desta coleção e ¿sem o compromisso com qualquer montagem e sem pressa nenhuma¿ (1982b:44), ao contrário, do que tinha acontecido aquando da primeira tradução (vid 7.2).

    Esta declaração introduz simultaneamente a questão da dualidade entre tradução para leitura ou tradução para publicação que Campos também aborda, como se expôs anteriormente (vid 7.3.2), e que nos remete também para a norma inicial adoptada. As suas posições teóricas, designadamente quando afirma que opta por uma tradução literária quando o fim visado é a publicação em livro, leva a crer que Campos retraduziu esta obra em 1977, tendo em vista a adequação, ou seja, a conformidade do texto de chegada ao texto de partida, assunto que se retoma mais adiante.

    Ainda no âmbito paratradutivo relativamente à questão da função desta tradução na cultura receptora, constata-se que esta continuou a ter uma função primária, processo que se tinha iniciado com a tradução, encenação e publicação nos anos 1958-1959. A partir daí sucederam-se múltiplas encenações das peças de Brecht nos anos 60, o que propiciou também um grande desenvolvimento do teatro no Brasil, escrevendo-se e encenando-se dramas também escritas por autores brasileiros. Relativamente ainda à função primária, tanto do teatro escrito como do teatro encenado brechtiano, a publicação da coleção do Teatro de Brecht veio consolidar essa mesma função, já que a palavra de Brecht dita e encenada passa também a ser uma palavra escrita.

    No atinente à recolocação das questões teóricas enunciadas, cabe ainda a lembrar que da investigação às especificidades do texto dramático se tomou no presente estudo três abordagens, que se explorou na parte prática e que se relembram, de seguida, antes de se prosseguir as explanações conclusivas. A primeira é a questão da dupla natureza do texto dramático, que representa simultaneamente o teatro como literatura e o teatro como espectáculo. Aliada a esta dupla condição surgem outras dualidades como tipo de receptor, que no primeiro caso é o público/leitor e no segundo é o público/espectador e ainda a questão do tipo de tradução a seguir. A teoria tradutiva responde com o conceito bipartido de tradução dramática; reader oriented ou performance-oriented, sendo que, no primeiro caso, se opta por estratégias tradutivas de leitura e, no segundo caso, se prefere estratégias tradutivas de representação.

    A segunda abordagem que se toma neste estudo é a noção de teatralidade ou potencial dramático, entendida como o efeito que o texto dramático pode ter no momento da sua representação, noção que se operacionalizou e aplicou subdividida do seguinte modo: linguagem e ritmo, linguagem e imagem, linguagem e actualidade e linguagem e gestualidade/corporalidade, esta última não analisada no presente estudo. A terceira abordagem é o conceito de réplica (Merino 1994: 44ss, vid 1.3) no texto dramático definida como unidade mínima de descrição e comparação a nível estrutural, composta por indicação cénica e por fala e que nos serviu de base de análise e cotejo nas quatro traduções investigadas (contabilizando-se aqui também a tradução francesa).

    Avalia-se de seguida a metodologia e os instrumentos de análise usados antes de se passar às conclusões sobre a análise tradutiva.

    Quanto à metodologia e instrumentos de análise optou-se por registar os modos discursivos recorrentes, ao mesmo tempo, que estes iam sendo identificados e tipificados de modo que, numa primeira fase de análise, esses modos discursivos se plasmaram em tipologias provenientes de diferentes áreas dos estudos da linguagem, como sejam a gramática tradicional, a linguística de texto e a metodologia da análise tradutiva. Somente numa segunda fase se afectaram os grupos e subgrupos tipológicos registados aos procedimentos tradutivos e se trabalhou, assim, exclusivamente com categorias originárias do âmbito tradutivo. O registo da análise foi assim sendo feito de forma exaustiva em paralelo e também em sequência ao trabalho de análise efectuado.

    Concluída esta investigação, poder-se-á em estudos futuros optar por uma análise em que se afectem os modos discursivos directamente aos procedimentos tradutivos, mas introduzindo-se novos grupos e também novos subgrupos, ambos fundamentados nas tipologias e subtipologias criadas no presente estudo na primeira fase de análise e seguindo-se, assim, a premissa proposta por Baltrusch de que o seu modelo deve ser considerado um modelo em construção e a ser sempre adaptado às constelações concretas de cada texto e respectivo contexto (vid. 1.2).

    O modelo a ser considerado para a análise das traduções do presente texto dramático teria o seguinte conteúdo: a integração do ProcTrad ¿Redução¿, que se aduziu neste estudo e ainda divisões dentro dos seguintes ProcTrad: Intensificação, dividido em Intensificação Semântica, Sintáctica, Enfática e por Comportamento de Retoma Verbal. As Intensificações Sintácticas e as Intensificações Semânticas foram ainda subdivididas, a ReSint em Pontuação e Deslocação à Esquerda e o RefSem em Palavras (coloquiais, rimáticas), Expressões (coloquiais) e Idiomatismos.

    Continuando a referir subdivisões a aduzir aos Proctrad segue-se a Explicitação/Especificação, subdividida em Acrescento por Especificação e Comportamento de Retoma Nominal. Quanto à Modulação, esta, proposta originalmente por Vinay e Darbelnet, segue parcialmente a subdivisão já avançada por estes autores, nomeadamente: Explicativa; Passiva-Activa (e vice versa); Negativa-Afirmativa (vice versa); Outras. Na Equivalência, adopta-se as subcategorias indicadas por Newmark para a tradução de sentidos metafóricos, já que se usa este ProcTrad aqui exclusivamente nessa acepção, designadamente Substituição de Imagem, Imagem convertida em Sentido, Substituição de Imagem mais Sentido e Imagem mais Sentido, podendo-se passar a designar este ProcTrad como Equivalência Metafórica.

    A Amplificação e a Redução mostraram ser procedimentos tradutivos que dificilmente se deixam subdividir de forma rigorosa, tendo-se neste estudo ensaiado uma subdivisão em Frase, Expressão e Palavra, subdivisão essa que a análise mostra não representar realmente os modos de Amplificação e de Redução aplicados; as traduções analisadas ampliam e reduzem recorrendo antes a uma variedade de combinações dos três elementos entre si, combinações essas dificilmente categorizáveis e consequentemente quantificáveis, como se refere em 5.2e, por esse motivo, não se exprimiram as subdivisões de forma numérica, optando-se antes por inferir certas tendências dentro dessas subdivisões.

    A tipificação e classificação das estratégias tradutivas em geral nem sempre é um processo linear, já que estas recaem por vezes em mais do que uma categoria. Nas dificuldades de afectação contam-se a título de exemplo, os vários modos de que as traduções se servem para aumentar o TC, como a amplificação, a explicitação/ especificação (acrescentos especificadores) e a Intensificação (acrescentos enfáticos e comportamentos de retoma verbal), sendo que a introdução de elementos se faz muitas vezes recorrendo a modos caracterizados noutros grupos ou subgrupos, como é o caso dos idiomatismos, entre outros, sendo necessário antes de cada escolha ponderar também os aspectos contextuais e co-textuais, como se referiu antes (vid. 5.2).

    De qualquer forma, o modelo proposto em cima e respectivos procedimentos tradutivos é pensado para esta análise, em particular, e teria de ser adaptado para cada novo estudo neste âmbito da análise tradutiva, tendo também em conta as classes de deslocamento e ainda o valor e a intenção que integram o mencionado modelo.

    A comparação entre texto dramático brechtiano Der gute Mensch von Sezuan (1955/1974) e as traduções para português europeu (1962) e português brasileiro (1959 e 1977) salientou modos discursivos recorrentes e que espelham em muitos aspectos todo o âmbito paratradutivo sobre o qual se reflectiu antes.

    As três traduções estudadas usam procedimentos tradutivos que, por serem recorrentes, foram contabilizados e tratados qualitativamente e quantificadamente. Partindo da comparação entre as traduções verifica-se que os cinco procedimentos tradutivos foram usados em todas as traduções e também pelos três elementos estudados, designadamente as Apóstrofes, Shen Te e Shui Ta . A tradução pe e a tradução pb77 registam a mesma sequência decrescente no recurso aos procedimentos tradutivos; em primeiro lugar a Intensificação, em segundo lugar a Explicitação/Especificação, em terceiro lugar a Amplificação, em quarto lugar a Modulação e em quinto lugar a Equivalência.

    A tradução pb59 também regista em primeiro lugar a Intensificação, mas seguida pela Redução, depois pela Explicitação/Especificação e em quarto e quinto lugares similarmente às traduções anteriores seguem-se também a Modulação e a Equivalência.

    Começando por comentar a Intensificação constata-se que, para além de ser este o ProcTrad mais usado nas três traduções, este mostra em todas as traduções valores próximos: pe (65%), pb59 (69%) e pb77 (71%).

    Para este ProcTrad contribuem intensificações de ordem semântica, sintáctica, enfática e de comportamento de retoma verbal, sendo que na tradução pe são as intensificações semânticas que sobressaem, enquanto nas traduções pb59 e pb77 há uma predominância de intensificações sintácticas.

    Começando por considerar estas últimas, registou-se em pb59 - tanto por via directa como por via indirecta - e em pb77, neste âmbito da intensificação sintáctica, alterações de pontuação e uma preferência por deslocações de elementos para a esquerda, frequentemente resultando estes últimos em processos de topicalização. É interessante verificar que nas três traduções é nas falas da figura de Shen Te que as alterações de pontuação são mais evidentes nas três traduções e é em Shui Ta que se verificam mais deslocações à esquerda, correspondendo muitas dessas deslocações à esquerda a processos de topicalização. Constatou-se que as alterações de pontuação correspondem a uma preferência por uma pontuação que marca sobretudo a melodia (Cunha e Cintra 199713:639ss vid. 8.4.3.1.1); inúmeros pontos finais e vírgulas, elementos que marcam as pausas, são substituídos por pontos de exclamação (acentuação de sentimentos), de interrogação (tónica no aspecto interpessoal dos enunciados), reticências (inflexões de natureza emocional) e concorrem no seu conjunto para a construção de uma dizibilidade no palco. Ademais introduzem-se aspas em determinadas palavras como que a destacá-las num processo de preparação para a encenação (vid. réplica 158pb59).

    Também as deslocações à esquerda e, entre estas, o elevado número de topicalizações, contribuem para acentuação de determinados elementos. No processo de topicalização as unidades linguísticas topicalizadas passam a ocupar a primeira posição no enunciado e ganham desse modo um novo peso comunicativo; a não manutenção da linearidade do TP pressupõe uma opção pragmática que está dependente de factores contextuais e é caracterizador da subjectividade do falante relativamente aos factos narrados (vid réplicas 378pb59, 8.4.5.1.1 ou 541pb77, 9.2.3.1).

    Estas modificações colaboram, a nosso ver, para uma potencialização da teatralidade no que diz respeito ao ritmo e à entoação. Em vez de se falar aqui em relação intertextual entre TP e TC - ou norma inicial - parece-nos que se trata aqui antes de uma relação intratextual entre TC e objectivo da tradução ou relação adequada, na acepção da Skopostheorie, preconizada por Reiss e Vermeer (1984 vid.1.1), onde os autores defendem que o tradutor estabeleça o objectivo da tradução e, de seguida, traduza tendo sempre este objectivo em mente. Terá sido esta também a opção de António Bulhões e Geir de Campos na tradução pb59, onde a expectativa do público acaba por determinar uma tradução onde predomina esta estratégia tradutiva que se pode considerar uma estratégia de representação.

    A tradução pb77, apesar de ter como objectivo a publicação, acaba por recorrer no âmbito da intensificação sintáctica também a esta estratégia, o que se compreende pelo percurso feito pelo tradutor, homem muito ligado ao mundo teatral, e que valoriza, como o próprio enfatiza, uma ¿leitura teatralizada¿ (Campos 1982a:77) do texto dramático a ser traduzido.

    A tradução pe recorre também às intensificações sintácticas, mas em quarto lugar em número de ocorrências tipológicas, sendo que o ProcTrad Intensificação se subdivide também em alterações de Pontuação e Deslocações à Esquerda (vid respectivamente réplicas 26pe ou 29pe, 5.3.3.3 e réplicas 151pe ou 152pe, 5.3.4.2).

    O reforço supra-segmental introduzido tem o mesmo valor e intenção das traduções pb59 e pb77 e consubstancia também uma estratégia de representação. Acredita-se no presente estudo que os tradutores portugueses teriam também em mente uma possível representação e acentuaram, desde logo, durante o processo tradutivo determinados elementos.

    A intensificação semântica é patente nas três traduções, tendo na tradução pe uma predominância já referida. Nas três traduções esta intensificação é construída através de reforços semânticos, optando-se pela inclusão no TC, por ordem decrescente e em todas as traduções analisadas, de palavras, idiomatismos e expressões. Dentro do grupo Palavras distinguiram-se a opção por rimas, as escolhas coloquiais e os diminutivos, todos patentes também nas traduções analisadas.

    Sobre as rimas cabe notar que há em pb59, por via da tradução francesa, uma predominância desta escolha, que depois se mantém na segunda tradução pb77, mas a tradução pe também recorre à inserção de rimas, talvez pelo facto do tradutor dos poemas, Alexandre O¿Neill, ser ele próprio também poeta. Os coloquialismos sobressaem principalmente em pe apesar de também presentes em pb59 e pb77, realçando-se aqui a inclusão de brasileirismos, principalmente na figura de Shui Ta (vid réplica 347pb59, 8.4.5.1.4). Os diminutivos têm igualmente predominância em pe e caracterizam a figura de Shen Te, acentuando a sua bondade através da linguagem afectiva que usa ao dirigir-se aos outros (vid réplica 51pe, 5.3.3.4).

    A intensificação semântica nas traduções acontece também pelo recurso aos idiomatismos e na tradução pb59 alguns vêm por influência do francês e pela semelhança que esta língua tem com o português (vid réplica 188pb59, 8.4.3.2.1, réplica 293pb59, 8.4.4.2.1, réplica 398pb59, 8.4.5.2.3), mas nas restantes traduções os idiomatismos são também uma constante.

    Tendo em conta a noção de teatralidade pode afirmar-se que as intensificações semânticas reforçam o potencial dramático a vários níveis: a nível do ritmo através da inclusão das rimas que conferem ritmo e melodia ao TC; a nível de uma língua actual há o contributo das palavras e expressões coloquiais e ainda dos idiomatismos; a nível da carga imagética temos os idiomatismos já que muitos carregam em si imagens metafóricas, sendo construídos recorrendo-se a sentidos figurados e imagéticos, como é patente nas réplicas mencionadas atrás.

    Há assim uma opção muito nítida por estratégias de representação no que concerne as escolhas semânticas, sendo que é na tradução para português europeu que esta estratégia é predominante. Afirmou-se já que se acredita que se pretendia construir um diálogo próximo com o leitor/espectador, que assenta numa vontade de passar a mensagem brechtiana a um público ansioso por mudança e ao mesmo tempo envolver esse mesmo público para que este possa participar activamente nessa mesma mudança ¿¿der die Welt nicht mehr nur hinnimmt, sondern sie meistert.¿ (Brecht 19673:302-303).

    Também as traduções para português brasileiro, a primeira de 1959, feita num primeiro momento para a encenação, e a segunda de 1977, para publicação, recorrem à intensificação semântica na construção de um texto pleno de teatralidade, tendo inscrito em si muitas marcas de potencial dramático, opção que atribuímos principalmente a Geir de Campos e sustentada na sua ligação ao mundo teatral.

    Pode afirmar-se que as escolhas de intensificação semântica e também as intensificações enfáticas, estas últimas que se mencionam de seguida, se constroem numa aproximação à língua falada: ¿ uma linguagem livre, salpicada aqui e ali de termos populares de forte expressividade ou ainda ¿¿a linguagem viva, trepidante, afectiva como a conversação. Empregam-se termos da gíria popular, locuções da linguagem corrente¿¿ (Lapa 198411: 65-66).

    Esta aproximação à oralidade, como se concluiu já anteriormente neste estudo, assenta num modo motivado de usar a língua, no sentido de Hatim e Mason, optando-se pela construção de um idiolecto, que tem uma intenção de idiomaticidade e pressupõe, ao mesmo tempo, uma opção ideológico-política ao domesticar a forma e ao aproximar-se, deste modo, à língua e cultura de chegada, optando pela aceitabilidade como norma inicial, como a definiu Toury.

    Passando a comentar as intensificações enfáticas cabe lembrar que todas as traduções introduzem esta forma de acrescento enfático, menos representado nas Apóstrofes e mais nas réplicas de Shen e Shui Ta, o que se compreende pelo carácter mais dialógico destas últimas. Na tradução pb59 cerca de 1/5 das enfatizações vêm por influência da tradução francesa, o que mostra que também aí se lançou mão desta estratégia tradutiva.

    A partir da análise efectuada caracterizou-se estas enfatizações e concluiu-se que estas são compostas maioritariamente por partículas de realce, interjeições, apostos e advérbios de intensidade, entre outros, e ainda, em muitos casos, marcadas pela inclusão de pontos de exclamação. Acresce ainda que muitas destas enfatizações têm a função de início das falas, tomando o valor de estruturantes do discurso, que chamam a atenção para o que vai ser dito Pode afirmar-se assim que estas escolhas focam ou acentuam determinados elementos do enunciado e conferem ao texto um tom mais coloquial.

    As enfatizações adicionam ainda efeitos tanto de ritmo como de quase musicalidade em alguns casos (vid réplicas 490pb77 e 461pb77, ambas em 9.2.2.3), ajudando a exprimir sentimentos de um modo mais vivo indo ao encontro das palavras de Lapa sobre as características da linguagem falada citadas atrás.

    Os acrescentos enfatizadores estão também ligados intimamente à questão temporal, enfatizando-se o enunciado com elementos de linguagem contemporânea, pois como afirma Heinz Schwarzinger (1990:64 vid.1.3) a rítmica de uma língua contemporânea é o elemento essencial em tradução para se poder atingir um público, para se conseguir verdadeiramente fazer passar um texto.

    É tendo estes aspectos em consideração que se acredita que as enfatizações estão intimamente ligadas à questão da recepção e preconizam uma estratégia tradutiva de representação em todas as traduções analisadas.

    A intensificação semântico-retórica faz-se ainda por comportamentos de retoma verbal em todas as traduções, mas principalmente na tradução para português europeu. Sendo esta uma construção típica da língua portuguesa não se podem registar ocorrências por via francesa e, também, sendo esta uma conduta de resposta, tão pouco se registam casos no elemento Apóstrofes que tem por natureza um carácter monológico.

    A figura que recorre abundantemente a esta tipologia é Shen Te em pe e também em pb59 e pb77, mas nestas duas últimas traduções com uma ocorrência mais baixa. Os CRv têm, como se descreveu anteriormente, uma função de estruturantes do discurso que reforçam o conteúdo e preparam a interacção. Este CRv caracteriza principalmente Shen Te, que retoma frequentemente as falas do seu interlocutor para construir as suas respostas, intensificando, deste modo, a atenção ao outro e em momentos chave da intriga, portadores de maior intensidade emocional (vid réplicas 49pe a 50pe e 72pe a 74pe, 5.3.3.1). A acentuação do aspecto interpessoal dos diálogos constrói-se, assim, recorrendo a formas típicas do idioma português num processo de domesticação e de aceitabilidade.

    Em termos de teatralidade as reformulações das falas do interlocutor anterior trazem alterações de ritmo, já que prolongam a resposta e podem ter como função uma melhor compreensão da parte do público espectador. Considera-se, no entanto, que esta estratégia tradutiva pode servir tanto a tradução para representação como a tradução para leitura.

    O procedimento tradutivo que em pe e pb77 surge em segundo lugar é a Explicitação/Especificação e com percentagens semelhantes pe (14%) e pb77 (13%). Em pb59 este ProcTrad surge em terceiro lugar com uma percentagem de 7%, sendo que nesta tradução pb59 é a Redução que ocupa o segundo lugar nos procedimentos tradutivos usados e que se trata mais adiante.

    O ProcTrad Explicitação/Especificação incorpora os acrescentos por especificação e os comportamentos de retoma nominal, sendo que em todas as traduções o Acesp está mais representado do que o CRn. As especificações analisadas nas três traduções e usadas pelos três elementos têm como objectivo especificar conteúdos e desfazer possíveis ambiguidades (vid réplicas 118pe, 5.3.4.1, 318pb59, 8.4.5.1.3 e 538pb77, 9.2.3.2). Ao aduzir esclarecimentos ao que é dito salientam-se, por vezes, também os próprios elementos especificados (vid réplica 56pe, 5.3.3.2). Esta estratégia tradutiva dá particular atenção ao leitor/ouvinte a quem tudo é explicado assumindo-se uma clara intenção pragmática. Pode afirmar-se que os Acesp servem a nosso ver as duas estratégias tradutivas, a da leitura e a da representação, sendo que, nesta última, esta toma uma maior relevância, já que tudo o que é dito tem de ser compreendido de imediato, pois não há lugar à possibilidade de repetições como é o caso na leitura.

    Quanto ao comportamento de retoma nominal que se considerou também como um ProcTrad de Explicitação/Especificação, este está também presente em todas as traduções, principalmente nos elementos Shen Te e Shui Ta. Nos CRn preferem-se no TC formas nominais que correspondem a formas pronominais do TP e que contribuem para uma especificação do que é nomeado e também para a evitação de ambiguidades sobre as pessoas e coisas de que se fala (vid. réplicas 107pe, 5.3.4.3, 554pb77 e 628pb77, ambas em 9.2.3.5). Acresce ainda que em vários casos se usam formas de tratamento nominais em vez de pronominais contribuindo-se para um tom mais formal no TC. Note-se ainda que em Shui Ta, principalmente em pb77, a adopção abundante de formas de tratamento formais contribui para a caracterização desta figura, mostrando-a como uma pessoa fria e distante em oposição à pessoa bondosa que é Shen Te.

    Este comportamento de retoma nominal especificador do que é dito pode servir as duas estratégias tradutivas, leitura e representação, mas similarmente aos Acesp descritos anteriormente, mostra-se mais relevantes na representação.

    A ampliação do TC faz-se também através da Amplificação que se entendeu neste estudo como um procedimento tradutivo, no qual se aumenta o TT usando-se mais elementos do que no TP para expressão dos mesmos conteúdos. Esta amplificação deu-se nas traduções para português europeu e na segunda tradução para português brasileiro, 1977, e registando ambas percentagens semelhantes, respectivamenre 10% e 12%. Em pb77 amplia-se através de mais expressões seguidas por ordem descendente de frases e palavras, enquanto em pe se prefere primeiramente a inclusão de frases depois palavras e, de seguida, expressões. Note-se que nas duas traduções os três elementos estudados optam por esta estratégia, sendo esta opção muito relevante nas Apóstrofes em pe e também muito evidente em Shen Te em pb77.

    Esta estratégia tradutiva amplificadora denota uma intenção de verter todos os conteúdos semânticos, o que é ainda mais notório em momentos chave da intriga (vid. réplica 632pb77, 9.2.3.4). O objectivo de preservação de todos os sentidos contidos no TP regista-se também na tradução das poesias, onde se aumenta frequentemente o número de versos, como é o caso na tradução em pe (vid. réplica 15pe, 5.3.2.2).

    Este propósito de transmitir todas as nuances de significado acarreta por vezes uma certa iteração e também aproxima frequentemente estas traduções da tradução recriativa no sentido que Newmark (1988b) lhe atribui, uma tradução, onde o tradutor como que exprime o pensamento por detrás das palavras.

    Esta opção tradutiva liga-se a nosso ver à norma da aceitabilidade trazendo ao leitor um texto de mais fácil acesso, sendo esta uma estratégia com valor opcional e com uma intenção pragmática. Considera-se ainda que a amplificação preconiza claramente uma estratégia de leitura e que tem como fim a publicação.

    Em oposição ao grupo Amplificação surge o grupo Redução, o procedimento tradutivo, que ocorre somente na primeira tradução para português brasileiro de 1959 e que ocupa aí o segundo lugar no número de procedimentos tradutivos com uma percentagem de 17%. Entende-se este procedimento tradutivo como o uso de menos elementos na LC para expressão da mesma ideia da LP.

    A Redução foi uma estratégia usada pelos três elementos analisados registando-se em Shen Te a percentagem maior (20%) seguida de Shui Ta e Apóstrofes com a mesma percentagem (15%). Acresce ainda que esta estratégia ocorre também por influência da tradução francesa, via indirecta, mas em menor grau se comparado com a via directa.

    Da análise feita pode concluir-se que se reduz primeiramente a nível frásico, depois a nível das expressões - nos dois elementos Shen Te e Apóstrofes, enquanto em Shui Ta ocorrem mais reduções a nível das expressões seguidas das reduções frásicas - preferindo-se, neste estudo, falar em tendências e não em números exactos, como se mencionou antes. De qualquer forma, a estratégia da redução é a característica mais marcante desta tradução pb59 depois do ProcTrad Intensificação, já descrito previamente.

    As reduções são assim um recurso constante desta tradução, introduzindo modificações no TC sem que, no entanto, estas acarretem mutações de conteúdos, já que estes permanecem implícitos (vid. réplica 363pb59, 8.4.5.1.2).

    Ainda sobre a influência da tradução francesa, a partir da qual se iniciou esta tradução para português brasileiro, aludiu-se já que da análise feita se parece poder depreender que os tradutores teriam um Skopos e sempre que este coincidia com as estratégias da tradução indirecta, estas eram como que ¿aproveitadas¿ e seguidas na tradução pb59 (vid réplica 298pb59, 8.4.4.2.4). Perseguiu-se assim o objectivo de construir enunciados concisos e dizíveis, passíveis ainda de serem enfatizados pela declamação (vid réplica anterior 298pb59 e ainda a opção supra-segmental inserida na tradução).

    A proximidade da encenação teve um papel decisivo na tradução aqui em análise e considera-se que os tradutores, envolvidos que estavam até nos próprios ensaios da peça, lançaram mão desta estratégia tradutiva de forma consciente. Não é de esquecer a importância da palavra ¿dita¿ no Brasil em detrimento da palavra lida e ainda o modo como os espectadores participavam activamente nos espectáculos (vid. Sartingen 1994:47ss).

    Pode concluir-se que a norma da recepção ou expectativa latente do público determinou a eleição desta estratégia tradutiva da redução, assumindo esta um valor opcional assente ainda numa intenção pragmática de percepção imediata do que é dito.

    O procedimento tradutivo da redução reforça também a teatralidade a nível rítmico e aponta claramente para uma estratégia de representação escorada no público leitor e intensificando deste modo o potencial dramático Por fim, os dois procedimentos tradutivos a Modulação e a Equivalência ocupam ambos o quarto e quinto lugares respectivamente em todas as traduções analisadas. Começa-se por considerar a Modulação, cunhada por Vinay e Darbelnet, como uma estratégia tradutiva, que corresponde a uma mudança de ponto de vista e que é um recurso escolhido por todas as traduções, com um número de ocorrências semelhante, a saber pe (21), pb59 (23, das quais 8 por via indirecta) e pb77 (17) e ainda usada pelos três elementos.

    Dos subgrupos tipológicos ressalta a modulação explicativa com o maior número de casos, onde o tradutor adopta um ponto de vista de maior aclaração relativamente ao TP, explicando a acção (vid. réplica 145pe, 5.3.4.5), o que está consonante com a intenção comum às traduções estudadas e que é a tradução de todos os sentidos do texto de partida aqui também através das modulações explicativas, intenção que já anteriormente se ligou à definição de Newmark (1988b:76 vid. 5.3.2.1 supra) de tradução recriativa ou interpretativa dos pensamentos por detrás das palavras.

    Considera-se que este procedimento tradutivo tem um valor opcional e uma intenção pragmática, já que actua por vezes de forma desambiguadora, mas, no entanto, não nos parece ser uma estratégia relevante em termos de teatralidade, tendo em consideração o escasso número de casos assinalados, Também quanto às estratégias de representação versus publicação atribui-se aqui à modulação uma posição um pouco neutra, podendo, em termos gerais, servir as duas estratégias.

    Por fim, temos o procedimento tradutivo Equivalência, que nesta análise se considerou para as traduções dos sentidos figurados, adoptando-se aqui a definição muito abrangente de metáfora apresentada por Newmark (1988b:104 vid 5.2 supra). A Equivalência é o ProcTrad com mais baixa representatividade nas traduções analisadas, nomeadamente com 4% em pe, 3% em pb59 e 2% em pb77, mas com uma distribuição uniforme nos três elementos analisados e também registando casos por influência da tradução francesa (vid. réplica 296pb59, 8.4.4.2.5).

    Distinguiram-se quatro tipos de estratégias na procura da equivalência, sendo a substituição de imagem na LC e a imagem convertida em sentido as mais representadas. A tradução tenta veicular todos os sentidos imagéticos e referenciais da LP, procurando uma imagem aliada a um sentido referencial equivalente na língua e cultura de chegada (vid. réplicas 17pe, 5.3.2.6 e 430pb77, 9.2.1.5) ou, quando isso não é conseguido, acrescentando sentido à metáfora ou convertendo mesmo a imagem referencial em sentido (vid. réplica 437pb77, 9.2.1.5).

    Apesar do valor de algum modo residual do ProcTrad Equivalência nestas traduções e, não obstante, o recurso a esta estratégia não ser específico destas traduções, mas sim, de algum modo, comum às traduções em geral, mesmo assim, optou-se por manter a análise da estratégia Equivalência, já que esta espelha o objectivo comum a todas as traduções analisadas, que é a manutenção sempre que possível de todas as imagens e todos os sentidos da língua e cultura de partida. Acresce ainda a relevância dos sentidos metafóricos no texto literário e assim também no texto dramático e que nos parece ser importante tanto em termos de público/leitor como de público/ouvinte. O valor desta estratégia é nalguns casos de obrigatoriedade (escolha de imagem padrão na LC e CC) e noutros casos de opcionalidade, mas tendo em ambos uma intenção pragmática e estilística. Em termos de teatralidade não se pode falar em reforço, mas sim em manutenção ou procura de equivalências imagéticas e referenciais.

    Passando de seguida a apreciações de carácter mais geral retoma-se a ideia da divisão entre tradução para publicação e tradução para representação (vid. 1.3 supra), que sustenta respectivamente as estratégias tradutivas de leitura e as estratégias tradutivas de representação (Santoyo 1989 vid. 1.3), divisão que se considerou já anteriormente como muito relevante tanto como princípio orientador para o tradutor teatral como para a análise tradutiva, como foi o caso na presente investigação. Ao termos esta dualidade sempre presente durante a análise chegamos também à conclusão de que os processos tradutivos mais recorrentes em cada tradução estudada espelham essa dualidade, prefigurando uns estratégias de leitura e afigurando outros estratégias de representação, coexistindo pois as duas estratégias durante o processo tradutivo.

    Ligado a estas estratégias está a noção de teatralidade, que se operacionalizou no presente estudo e que considerou aspectos de linguagem imagética, rítmica e actualidade da língua. Todos estas vertentes se mostraram relevantes na análise elaborada parecendo, no entanto, que é na questão do ritmo ou na introdução de uma rítmica mais marcada que os textos traduzidos evidenciam diferenças mais assinaláveis com o texto de partida (vid. principalmente pb59 e pb77, mas também pe).

    O ritmo faz parte da entoação que é o ¿resultado da conjugação de quatro actividades articulatórias: variação da altura do som (Tonhöhe), formação de unidades tonais (Tongruppen), ritmo, e acentuação (Betonnung). (Pheby 1980:858 apud Lopes 2001:92). ¿Estas actividades articulatórias estão por um lado relacionadas entre si, por outro lado, relacionam-se com a sintaxe, mas esta relação tem um carácter flexível, cabendo à sintaxe, e não à entoação, o papel determinante.¿ (ibid.) Partindo desta premissa, de que os aspectos sintácticos têm um papel relevante na entoação e, dada a importância que esta assume no texto dramático escrito/traduzido para ser lido/representado, seria interessante em trabalhos futuros aprofundar o estudo sintáctico que, no presente caso, se cingiu às questões de pontuação e deslocação de elementos (topicalização), alargando-o a questões de tema-rema e de formas de retoma (Harweg em preparação, Lopes 2001), nomeadamente, formas de retoma por identidade e formas de retoma por contiguidade, estudando-se o modo como as duas questões mencionadas atrás, tema-rema e retomas, contribuem para a acentuação dos elementos do enunciado e consequentemente para a sua relevância em termos comunicativo-pragmáticos, respectivos valores e intenções.

    Tínhamos como o objectivo neste trabalho aprofundar o conhecimento das duas línguas aqui em comparação, a língua portuguesa e a língua alemã, e fizemo-lo através da obra Der Gute Mensch von Sezuan, escrita por Bertolt Brecht, obra que alia tanto a estética como a humanidade (ou compaixão Arendt:1991:274 vid. 2.2.2.3.1 supra) do autor e fizemo-lo também através das traduções para língua portuguesa, estudando les résidus, que menciona Yuste Frías (2010), quando afirma que é impossível não deixar marcas ¿¿traces de la présence humaine ni du sujet traduisant ni d¿autres agentes intermédiaires dans une traduction¿ (p.310), e fizemo-lo ainda alicerçados na convicção avançada por Baltrusch (2006:16) sobre a construção de uma teoria holística da paratradução, já antes citada neste trabalho, de que a tarefa da tradução consiste em transcrear de xeito crítico e eticamente comprometido as tradicións e as memorias colectivas.

    Alargamos aqui o sentido atribuído à tarefa da tradução incluindo nela a análise tradutiva, como a concebemos neste estudo, uma análise que nos instiga, também ela, a uma interpretação mais profunda da língua e das formas que esta toma nos diferentes mundos onde habita.


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