A etnobiologia é um campo de investigação que se ocupa de conhecimentos, atitudes, comportamentos, valores e outros aspectos culturais do homem em relação aos seres vivos e ao ambiente. Desde a época das Grandes Navegações, nos arredores do século XV, há registros sobre as interações entre nativos americanos e a biodiversidade local. Mas, apenas no século XIX ocorreram as primeiras tentativas para sistematizar dados sobre o uso de plantas e animais por comunidades indígenas, embora sem referência a termos como “etnobiologia” e/ou “etnobotânica”. Edward Franklin Castetter apresentou uma clássica revisão sobre os primeiros estudos desta área. Segundo Castetter, a expressão “botânica aborígene” foi usada em 1873 por Stephen Powers, para se referir a todas as formas de vegetais usados pelos aborígenes na alimentação, medicina, enfeites, etc. Segundo Castetter, o termo “etnozoologia” apareceu apenas em 1914 por Henderson Junius e John Peabody Harrington, quando “etnobotânica” já tinha se popularizado. No decorrer do século XX, novos ramos da etnobiologia foram se desenvolvendo, dependendo do recorte usado para o estudo cultural: etnoentomologia (insetos), etnoictiologia (peixes), etnoornitologia (aves), etnomastozoologia (mamíferos), etnomicologia (fungos), etc. O uso desta terminologia se demonstrou problemático do ponto de vista lógico. Tomemos como exemplo um hipotético estudo autoclassificado como etnoornitologia, desenvolvido junto a alunos de uma escola de área quilombola. O estudo tem por objetivo descrever os conhecimentos deste público em relação às “aves”. Note-se, porém, que é um erro etnográfico iniciar o estudo considerando a noção científica de aves: as espécies que descendem (indiretamente) de dinossauros não aviários, possuem penas, bico córneo e geralmente voam. Talvez nem exista, naquela cultura, uma categoria que seja ao menos aproximadamente correspondente à categoria científica “aves”. Se existir, é provável que estejam incluídos, neste grupo, organismos não aviários do ponto de vista da biologia, como morcegos. Em outro estudo, poder-se-ia considerar uma análise apenas das interações entre estes alunos e morcegos. Seria um estudo de etnoornitologia (morcegos considerados como aves, pelos alunos) ou etnomastozoologia (morcego considerado como mamíferos, pela biologia)? Optar pelo primeiro “centro de gravidade” seria uma incoerência se o pesquisador iniciasse o estudo com a noção científica de aves. Optar pelo segundo também seria incoerente se o pesquisador estivesse interessado nas categorias locais, afinal, os alunos não considerariam o morcego como aquilo que a biologia chama por mamífero. Uma terceira alternativa seria usar se referir à etnoornitologia, como centro de gravidade, mas desconsiderar a noção biológica de aves. Acredito, porém, que o não uso destes termos deve ser preferível em relação ao uso, pelos pesquisadores. Além das objeções aqui já comentadas, há outra ainda mais grave. Se a etnociência se refere ao estudo de conhecimentos de um grupo humano a respeito de alguma coisa (insetos, no caso da etnoentomologia), então as próprias Ciências Biológicas também são etnociências. Afinal, os entomólogos, por exemplo, compõem um grupo de pessoas que compartilham conhecimentos a respeito de algo, neste caso, insetos. Na pior das hipóteses, afirmar que as etnociências apenas se aplicam aos conhecimentos das comunidades não acadêmicas (algumas vezes ditas “tradicionais”) é explicitamente afirmar que o praticado por elas não é científico, o que pode fazer com que adquiram menos prestígio numa sociedade onde o conhecimento tratado como científico é bastante valorizado. Esta é uma postura explicitamente etnocêntrica. Além do que soaria tão estranho quanto dizer que etnobiólogos não são biólogos. As considerações aqui apresentadas são resultado de experiências próprias em pesquisas rotuladas como etnobiologia/etnozoologia, etc. São apenas rótulos, certo? É evidente que este tipo de consideração não refuta e/ou nega a validade dos achados nestas áreas de pesquisa. Porém, escrevi este texto com o objetivo de ajudar aos pesquisadores que estão interessados em iniciar na pesquisa sobre aspectos culturais humanos em relação à biodiversidade e, aos que já desenvolvem, apresentar uma visão alternativa em relação a estes tipos de trabalhos.
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