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NARRATIVAS IMAGÉTICAS, DIVERSIDADE E TECNOLOGIAS DIGITAIS Denis Porto Renó Marcos “Tuca” Américo Antonio Francisco Magnoni Fernando Irigaray (Orgs.) 2016 Organização Prof. Dr. Denis Porto Renó (UNESP) Prof. Dr. Antonio Francisco Magnoni (UNESP) Prof. Dr. Marcos Américo (UNESP) Prof. Ms. Fernando Irigaray (UNR) Comitê Científico Prof. Ms. Jerónimo Rivera (Universidade La Sabana - Colombia) Prof. Dr. Denis Porto Renó (UNESP - Brasil) Prof. Dr. Marcos Américo (UNESP - Brasil) Prof. Dr. Antonio Francisco Magnoni (UNESP - Brasil) Prof. Dr. Vicente Gosciola (Universidade Anhembi Morumbi - Brasil) Prof. Ms. Alfredo Caminos (Universidade Nacional de Cordoba - Argentina) Prof. Ms. Fernando Irigaray (UNR) – Direção Editorial Prof. Dr. Octavio Islas (Universidade de Los Hemisferios - Equador) Prof. Dr. Lorenzo Vilches (Universidade Autônoma de Barcelona - Espanha) Prof. Ms. Carolina Campalans (Universidade do Rosario - Colômbia) Prof. Dr. Lionel Brossi (Universidade do Chile - Chile) Prof. Dr. Francisco Rolfsen Belda (UNESP - Brasil) Prof. Dr. Juliano Maurício de Carvalho (UNESP - Brasil) Prof. Dr. Mauro Ventura (UNESP - Brasil) Profa. Dra. Angela Grossi de Carvalho (UNESP - Brasil) Profa. Dra. Elena Galán (Universidade Carlos III - Espanha) Profa. Dra. Jenny Yaguache (UTPL - Equador) Profa. Dra. Loriza Lacerda de Almeida (UNESP) Profa. Dra. Manuela Penafria (Universidade da Beira Interior - Portugal) Profa. Dra. Maria Eugenia Porém (UNESP - Brasil) Prof. Dr. Angelo Sottovia Aranha (UNESP - Brasil) Prof. Dr. José Carlos Marques (UNESP - Brasil) Comissão Editorial Prof. Dr. Denis Porto Renó (UNESP) – Direção Editorial Prof. Ms. Fernando Irigaray (UNR) – Direção Editorial Prof. Dr. Marcos “Tuca” Américo (UNESP) – Direção de Arte Janaina Leite de Azevedo – Projeto Editorial & Diagramação Danilo Leme Bressan – Projeto Gráfico Narrativas imagéticas, diversidade e tecnologias digitais / Denis Porto Renó... [et al.]. - 1a ed . – Rosario: UNR Editora. Editorial de la Universidad Nacional de Rosario, 2016. Libro digital, PDF Archivo Digital: descarga y online ISBN 978-987-702-197-4 1. Medios Audiovisuales. I. Porto Renó, Denis CDD 776 Fecha de catalogación: 22/11/2016 Queda hecho el depósito que marca la Ley 11.723. Marca y características gráficas registradas en la Oficina de Patentes y Marcas de La Nación Cátedra Latinoamericana de Narrativas Transmedia Instituto de Cooperación Latinoamericana (ICLA) Universidad Nacional de Rosario - http://catedratransmedia.com.ar/ - catedratransmedia@gmail.com - @catedratransmed Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - www.unesp.br - https://twitter.com/Unesp_Oficial Editora da Universidade Nacional de Rosário - http://www.unreditora.unr.edu.ar/ - https://www.facebook.com/UNR-Editora/ - @unrosario Red Ibero Americana de Narrativas Audiovisuales - https://www.facebook.com/Red-INAV-105388542891432/ - http://redinav.wixsite.com/2005 - https://twitter.com/red_inav Licencia:  Atribución-No Comercial-Sin Obras Derivadas 2.5 Argentina  Usted es libre de copiar, distribuir, exhibir, y ejecutar la obra Bajo las siguientes condiciones:  Atribución. Usted debe atribuir la obra en la forma especificada por el autor o el licenciante.  No Comercial. Usted no puede usar esta obra con fines comerciales.  Sin Obras Derivadas. Usted no puede alterar, transformar o crear sobre esta obra. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/ar/ ISBN 978-987-702-197-4 NARRATIVAS FOTOGRÁFICAS A Mágica entre os Fios Mariana Bento Benetti - PUC- Campinas 2 A Convergência entre o Desenho e a Fotografia na Criação do Autor-modelo em O Fotógrafo Monique dos Santos Nascimento - UNESP Eliza Bachega Casadei - ESPM 17 ETNIA, GÊNERO E DIVERSIDADE Amores enredados, el lenguaje postmoderno del amor Alfonso Vázquez Atochero - Universidade Americana de Europa / Universidade de Extremadura 32 Identidade de Gênero: O cenário Transexual e Travesti na Sociedade Amanda Costa - UNESP Isabel Silva - UNESP Isadora de Oliveira - UNESP Naiara Teixeira - UNESP Thais Viana - UNESP 48 Família Baté: contos e encantos em Tibiriçá Ana Beatriz Pereira de Andrade - UNESP Henrique Perazzi de Aquino - UNESP Maria Cristina Gobbi - UNESP 66 Quem somos, como nos vemos e como nos identificamos. As questões de identidade, cultura nacional e diversidade na TV paga no contexto da Globalização Ana Heloiza Vita Pessotto - UNESP 77 Representação da culinária tradicional no MasterChef Daira Martins Botelho - UNESP 95 La representación de las mujeres inmigrantes en el cine documental español. Estudio de casos Inmaculada Gordillo - Universidade de Sevilla Irene Liberia Vayá - Universidade de Sevilla / Universidade de Valencia 111 Exoesqueleto digital afrodescendente no enfretamento ao genocídio de jovens negros, pobres e das periferias Juarez Tadeu de Paula Xavier – UNESP 127 O cinema documentário como argumento político dos povos indígenas Juliano José de Araújo– UNIR 142 Mulheres na Disney: representações e mudanças ao longo do tempo Cecília Soares de Paiva - UNESP Daira Martins Botelho - UNESP Maria Cristina Gobbi - UNESP 160 A telenovela e o merchandising social: um estudo sobre a violência contra a mulher abordado na novela A Regra do Jogo Maria Aparecida Baccega – ESPM Maria Amélia Paiva Abrão – ESPM 176 A representação feminina do livro para o cinema: A inserção de Tauriel na trilogia “O Hobbit” Sara Moralejo da Costa - UFRGS Paula Coruja - UFRGS Graziela Bassetti de Leon - UFRGS 191 Interações entre a cultura afro-brasileira e a música popular: análise de um show de Itamar Assumpção Vinícius Becker de Souza - UNESP 207 CINEMA E ARTES VISUAIS Desenvolvimento de um protótipo de revista hipermidiática para tablet: um estudo experimental com a “UNESP Ciência” Danilo Leme Bressan - UNESP Francisco Rolfsen Belda – UNESP 217 Estudo de imersão nas narrativas dos jogos eletrônicos The Last of Us e Heavy Rain Fabiana Guerra - Universidade Anhembi Morumbi Genio Nascimento - Universidade Anhembi Morumbi 231 As astúcias enunciativas dos jogos digitais Felipe de Brito Lima - UFPE Yvana Fechine - UFPE Thiago José Moreira Lins – UFPE 246 A Comunicação Hiperlocal Como Arena Pública: Aproximações Conceituais Giovani Vieira Miranda – UNESP 263 Apontamentos sobre narrativas transmídias no portal folha.uol Rogerio Bazi – PUC Campinas 282 Linked data como plataforma auxiliadora na mediação da informação Isabela Pereira do Rego - UNESP Oswaldo Almeida Junior - UNESP Ângela Maria Grossi de Carvalho - UNESP 292 A direção de atores no processo de transmidialidade: como se dá essa relação na passagem do texto teatral à obra fílmica nele baseada? Álvaro Dyogo Pereira - UFJF 303 O audiovisual como linguagem fundamental para o jornalismo multiplataforma Luciana Renó - Universidade Complutense de Madri Denis Renó - UNESP Jesus Vivar Flores - Universidad Complutense de Madrid 316 Cenários midiáticos: a juventude tecnológica e sua cultura convergente-digital na cidade de Bauru (SP-Brasil) Juliano Ferreira de Sousa – UNESP Maria Cristina Gobbi – UNESP 332 Apontamentos sobre jornalismo de dados e a importância da transparência Lucas Vieira de Araujo - UMESP 350 Narrativas audiovisuais na reportagem digital: informar, interagir e reter a atenção Liliane de Lucena Ito – UNESP 366 Participação, deliberação online e internet: o potencial do VotenaWeb Lucas Arantes Zanetti - UNESP Caroline Kraus Luvizotto - UNESP 384 Web Colaborativa, Políticas Públicas de Informação e Mídias Sociais: um caminho para a democracia participativa no âmbito da convergência digital Jéssica Amorim do Nascimento – UNESP Ângela Maria Grossi de Carvalho – UNESP 399 Onde estão as celebridades? A (falta de) conformação entre a internet e os meios de comunicação tradicionais Marina Darcie - UNESP Maria Cristina Gobbi – UNESP 415 La influencia del streaming y la interactividad en redes sociales en los nuevos formatos radiofónicos en España Paloma López Villafranca - Universidade de Málaga / Andalucia Tech 427 O jornalismo de desacontecimentos no ambiente digital: uma análise das colunas de Eliane Brum para o portal El País Brasil no ano de 2015 Tayane Aidar Abib – UNESP 442 O Profissional da Informação e as contribuições sob o ciclo de vida políticas públicas de Informação e Tecnologia Thabyta Giraldelli Marsulo – UNESP Ângela Maria Grossi de Carvalho – UNESP 459 NARRATIVAS FOTOGRÁFICAS Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A Mágica entre os Fios Mariana Bento Benetti - PUC- Campinas Introdução Para a realização deste trabalho houve a necessidade de se fazer uma pesquisa prévia de teorias fotográficas e a demonstração de histórias através de narrativa sem palavras. O estudo das técnicas e o uso da máquina fotográfica semi profissional foram apresentados e desenvolvidos apoiados nas leituras do livro “Fotojornalismo”, de Jorge Pedro Sousa, lançado em 2002, pela editora Porto. Mais de 170 fotos foram tiradas para poder fazer uma sequência de somente 10 fotos que conseguissem transmitir o processo de criação de fios, trabalho realizado pelas fiandeiras, e não a história particular de cada uma. Mesmo assim, foi necessário um estudo da produção dos fios através da máquina de fiar e das mãos das fiandeiras, essas em questão, trabalham no Museu Histórico de Jataí – GO. Portanto, para poder compreender melhor o mundo em que as senhoras fiandeiras vivem, o artigo de 2008 “As Fiandeiras de Jataí: Uma memória se perdendo no tempo”, escrito pelos autores: Simone Aparecida Borges Dantas e Adriano Freitas Silva, foi extremamente importante para a contextualização do trabalho. As fotografias em si não tem como objetivo mostrar a vida dessas fiandeiras, mas sim, o processo de criação dos tecidos (coloridos ou não) realizados pelas mãos dessas trabalhadoras. As fotos serão demonstradas pela ordem correta de transformação do algodão em tecido para a melhor compreensão desse processo mágico e antigo que ainda existe no mundo atual tão moderno. -2- Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Realização do Trabalho A narrativa fotográfica tem como objetivo contar uma história com um número limitado de imagens e uma pequena legenda em baixo que explique o que não conseguimos ver. Foi assim que o trabalho teve início, a necessidade jornalística de transmitir informação para um público que não tem conhecimento de uma área de trabalho – o das fiandeiras. Pode parecer estranho para alguns entenderem que o fotojornalismo transmite informação por si só, sem a necessidade de uma matéria acompanhando as fotografias. Muito pelo contrário desse pensamento, o fotojornalismo está dentro dos meios de comunicação e se comunica sozinho, também. 1.1 Fotojornalismo em Histórias Fotográficas A fotografia se desenvolveu muito através dos tempos, o que antes era digno de um evento em que as famílias se arrumavam para tirar somente uma foto, com um fotógrafo especializado, agora se tornou simples. Qualquer um que tenha um celular, uma câmera tira uma foto ou faz uma sequencia delas. Mas não nos é interessante, neste momento, o processo de desenvolvimento das câmeras fotográficas e da fotografia em si, devemos somente compreender como a criação de uma sequência de fotos podem transmitir uma mensagem e contar uma história. Mais do que frequentemente, uma única foto consegue sozinha contar uma história enorme. Tirando de lado a velha ideia de que a fotografia é a verdade objetiva, podemos também encontrar muitos significados em uma única imagem, repassamos sentimentos e compreendemos culturas. Uma sequencia de fotos, portanto, pode passar ainda mais informação do que uma única – não uma sequência qualquer, porém. -3- Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 As histórias em fotografias são um gênero do fotojornalismo em que uma série de imagens se integram num conjunto que procura constituir um relato compreensivo e desenvolvido de um tema. Nesse relato, as imagens devem mostrar as diversas facetas do assunto a que se reportam. [...] As histórias em fotografias são, de alguma forma, o género nobre do fotojornalismo (SOUSA, 2002, p. 127). As “foto histórias” precisam de tempo para serem realizadas, elas pedem uma pesquisa prévia sobre o que será retratado, seja um acontecimento, uma causa, um grupo social ou até mesmo o comportamento de um animal. Logo após a escolha do tema, o fotógrafo (fotojornalista ou não) deve estar por dentro de todos os estudos feitos para esse trabalho, pesquisas, artigos, livros, entre outros. É também o momento de saber se alguma outra reportagem ou outra história em fotografia já foi feita sobre esse tema, para não haver repetições. O segundo passo é tentar estabelecer alguma relação com o objeto ou as pessoas que serão fotografadas. Conhecer o local antes de tirar as fotos é importante, se isso for possível, para poder analisar todos os pontos de luz e da falta desta. Sebastião Salgado, um fotojornalista internacionalmente renomado e conhecido, costumava passar dias e meses convivendo com o grupo social que iria fotografar antes de fazê-lo, pois somente assim as pessoas estariam a vontade para sair nas fotografias e essas seriam cada vez mais naturais. Finalmente, depois desses passos, pode-se tirar as fotos. O fotógrafo deve ficar atento para tentar não transpassar seu ponto de vista para as imagens, ou então deixa de ser uma história e passa a ser um foto ensaio. O foto-ensaio é uma história em fotografias que procura analisar a realidade e opinar sobre ela (fotografia com ponto de vista). Muitas vezes, nos foto-ensaios o texto é tão importante quanto a imagem, ocupando uma extensa superfície do espaço onde está inserida a peça. Inclusivamente, é frequente encontrar fotógrafos ensaístas que preferem as exposições e os fotolivros à imprensa como suportes de difusão para a sua obra. Uma das diferenças mais significativas e comuns entre as foto reportagens e os foto-ensaios na actualidade reside na abertura destes -4- Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 últimos a formas alternativas de expressão. Por exemplo, em alguns fotoensaios (a própria denominação do género é relevante) os fotógrafos não hesitam em recorrer à encenação fotográfica; noutros, recorrem à truncagem e à combinação de imagens (que não necessitam de ser exclusivamente fotográficas); noutros ainda, manipulam digitalmente a fotografia (SOUSA, 2002, p. 131). 1.2 A história das Fiandeiras De acordo com o Wikipédia, “A Fiação pode ser definida como uma sucessão de operações através das quais se transforma uma massa de fibras têxteis inicialmente desordenadas (flocos) em um conjunto de grande comprimento”. Tal descrição, apesar de verídica, não podia ser mais sólida e fria para as pessoas que realmente trabalham nesse ramo, seja como hobby ou não. Treinadas desde crianças, com as mães trabalhando dia após dia na mesma área, as fiandeiras fazem mais do que somente “organizar uma massa de fibras têxteis”, também encontram a paz e a felicidade no trabalho. Sim, a maioria delas são mulheres, não porque é um tipo de ação feminina, mas porque esse conjunto social cresceu dessa forma e aprendeu assim. A arte de fiar era uma atividade praticada desde cedo pelas mulheres da família, isto é, um trabalho feminino, desenvolvido de geração em geração. Assim, as mulheres que a exerciam passavam para as suas filhas desde os primeiros anos de vida. Esta atividade era utilizada como fonte de renda para o sustento da família (DANTAS; SILVA,. 2008 p. 3). Inicialmente, as mulheres que fiavam criavam seus tecidos para consumo familiar, tecendo roupas e fronhas para camas, tudo para utilização pessoal. O máximo que era produzido para fora, era no caso de enxovais para casamentos das próprias filhas. Havia quase sempre uma reunião das fiandeiras, para todas fiarem juntas e conversarem ao mesmo tempo, como uma prática inteiramente familiar e de amigos. -5- Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Além disso, na confecção de roupas e principalmente de cobertores, as fiandeiras utilizavam além do algodão a lã, sendo que em algumas fazendas além do plantio de algodão, havia a criação de ovelhas. (DANTAS; SILVA. 2008, p. 4). A arte de fiar, portanto, não era somente tida como lazer, mas também um trabalho verdadeiro. É esse espírito antigo que as fiandeiras, senhoras de hoje em dia, pretendem resgatar quando se reúnem no Museu de História de Jataí, ao menos uma vez por semana. O que contribuiu para o quase desaparecimento dessa arte foi o processo de urbanização na cidade, mesmo assim, elas se encontram na posse de objetos próprios para ajudar a fiar e criar seus tecidos. O MHJ – Museu Histórico de Jataí Francisco Honório Campos – na tentativa de preservação desse saber, promove há dez anos a Semana das Fiandeiras. A idéia de criação deste mutirão foi fruto dos esforços do Setor de Ação Educativa do Museu juntamente com a Direção deste. Conforme a direção do Museu o Mutirão foi divulgado na mídia e teve boa aceitação entre as fiandeiras. A partir da primeira edição do evento o Museu montou um cadastro com o nome das fiandeiras da Cidade, que passaram a participar nos anos posteriores. (DANTAS; SILVA. 2008. p. 7). Assim, essa arte histórica não se perde na cidade do interior de Goiás, e as mulheres podem continuar trabalhando no que tanto amam, sem perder essa tradição no meio de um mundo tão moderno. As fotografias Depois de uma pesquisa inicial, foi necessário uma visita ao Museu Histórico de Jataí Francisco Honório Campos, para o conhecimento das máquinas e das fiandeiras que as usam. Assim, em uma segunda visita, as fotos foram tiradas e foi possível compreender o passo a passo da criação dos tecidos. As fotos a seguir estão em ordem de produção; desde o algodão até o tecido pronto algumas explicações serão feitas para compreender o passo a -6- Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 passo com mais clareza. Elas foram todas tiradas no museu em questão, com fiandeiras que estavam trabalhando no dia. Na primeira foto mostra o algodão, depois da primeira limpeza, que é colocado nos cestos. Foto 01: Descaroçador de algodão Fonte: Foto tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras A seguir, o algodão, matéria prima, é descaroçado na máquina denominada de “descaroçador”, que separa a semente do algodão. Tudo feito de forma manual. -7- Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Foto 02: Peneira e arco Fonte: Foto tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras A peneira e o arco servem para limpar e amaciar o algodão: os pedaços algodão ficam presos no fio do arco e são delicadamente tirados e separados. -8- Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Foto 03: Par de carda Fonte: Foto tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras O “Par de Carda” faz o trabalho de amaciar e alisar a fibra do algodão, formando pastas ou chumaços. Depois de esfregar uma escova na outra, continuamente, as pastas se formam sedosas e com fios alisados. -9- Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Foto 04: Formas do algodão Fonte: Foto tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras A semente, o algodão, separados e peneirados pelo arco, e o algodão com as fibras alisadas no par de carda. É a ultima vez que a matéria prima aparece antes de virar fio. Foto 05: Rodas de fiar - 10 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Fonte: tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras A pasta de algodão vai para a roda de fiar, que roda muitas vezes até que um fio rústico e fino se enrola no fuso, que fica em um lado da máquina. Foto 06: A linha Fonte: Foto tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras A linha é retirada da canelinha e enrolada, formando os novelos que servirão para tecer. A linha pode ficar branca (alvejada), natural ou colorida (tingida). - 11 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Foto: 07. Urdideira Fonte: Foto tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras A urdideira tem a função de esticar e separar os fios para serem levados para o tear. A trama do tecido é definida na urdideira. - 12 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Foto 08 : O tear Fonte: Foto tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras A ultima máquina é o Tear, que junta todos os fios para formar o tecido em si. Esse é o exemplo do Tear grande e antigo. - 13 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Foto 09: Finalização Fonte: Foto tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras Sentadas em um pequeno banco, as tecedeiras manuseiam os fios e fabricam o tecido, completando a mágica. Nesse tear, elas usam pedais e as mãos. - 14 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Foto 10: O tecido Fonte: Foto tirada pelo pesquisador, criador da matéria, com permissão das fiandeiras A tecedeira separa os fios e vai formando a trama, colorida ou não. Assim, o tecido é feito. Conclusão Seja para vender, para usar em casa ou mesmo somente para se divertir, as fiandeiras ainda fazem seu trabalho e criam tecidos maravilhosos. - 15 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Orgulhosas e respeitadas, se encontram toda semana para continuar o trabalho que era de sua mãe, e da mãe de sua mãe, e antes dessa, também. Bibliografia DANTAS, S. A. Borges; SILVA, A. Freitas. As fiandeiras de jataí: uma memória se perdendo no tempo. Publicado no congresso Internacional de História de Jataí – GO, em 2008. SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo. Publicado pela Editora Porto, em 2002. - 16 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A Convergência entre o Desenho e a Fotografia na Criação do Autor-modelo em O Fotógrafo Monique dos Santos Nascimento - UNESP Eliza Bachega Casadei - ESPM Sobra a obra O Fotógrafo: Uma História no Afeganistão, objeto desse artigo, é uma coletânea de três volumes produzida a partir das fotografias de Didier Lefèvre, com os desenhos de Emmanuel Guibert e diagramação de Frédéric Lemercier. A obra reconstitui uma viagem realizada por Lefèvre em 1986 para acompanhar uma missão humanitária da ONG Médicos Sem Fronteiras no Afeganistão durante a invasão soviética no país. Didier Lefèvre, que trabalhava como fotojornalista, viajou ao lado de médicos e enfermeiras, sendo guiado por uma caravana de mujahidin, os combatentes afegãos, desde o Paquistão, onde a viagem se iniciou rumo ao Afeganistão. No caminho, a equipe passou por caminhos perigosos e inóspitos como trilhas nas montanhas da região e planaltos onde as caravanas de viajantes constantemente sofriam ataques das forças soviéticas, fazendo o trajeto quase todo a pé e carregando os medicamentos e equipamentos no lombo de burros de cavalos. Por três meses, Didier documentou suas atividades, as da equipe de médicos e fotografou o cotidiano do povo afegão durante o conflito, capturando traços genuínos de sua cultura e costumes, tudo isso narrado em primeira pessoa. Na época, seis fotos, de quatro mil, foram publicadas no jornal francês Liberation. Idealizado no final da década de 1990, o primeiro volume foi lançado em 2003 e o terceiro, em 2006 na França. Este último foi premiado como obra essencial no tradicional Festival d'Angoulême de 2007, - 17 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 um dos maiores e mais prestigiados festivais de quadrinhos do mundo. Além disso, foi traduzido para 10 línguas: alemão, inglês, italiano, holandês, norueguês, dinamarquês, espanhol, coreano, croata e português. O primeiro volume foi lançado no Brasil em 2006. O Fotógrafo mescla a linguagem dos quadrinhos e da fotografia, utilizando os desenhos de Guibert, com a introdução de diálogos e recordatórios e reproduzindo as fotos de Lefèvre durante a narrativa. As fotografias são inseridas em meio aos traços, criando uma simbiose imagética, dando um novo ritmo à leitura e fazendo o leitor imergir no universo capturado pelas lentes da câmera fotográfica. Segundo Paim (2013) há três formas de perceber a relação entre fotografia e narrativa: temática, estilística e técnica. A temática diz respeito àquelas obras em que a fotografia ou o fotógrafo são tema principal ou tópico coadjuvante. A relação estilística se refere às obras que se apropriam de elementos da técnica fotográfica como base e a partir dela criam uma técnica narrativa correspondente. Tais apropriações de novos elementos estéticos é um fenômeno comum que sempre decorre quando uma nova técnica dá a luz a uma nova linguagem artística. A terceira relação é aquela que percebe a fotografia como recurso técnico, fazendo parte das estratégias narrativas, isto é, inserida em meio ao texto "como imagem que interrompe ou alterna a cadência do fluxo verbal" (PAIM, 2013, p.370). No caso de O Fotógrafo, uma graphic novel, ou seja, uma narrativa em quadrinhos, a obra é constituída por uma linguagem que "já tem o hibridismo como elemento intrínseco da sua composição e que vem ganhando cada vez mais complexidade com a absorção de novas técnicas e linguagens, bem como com o desenvolvimento das suas próprias características". (PAIM, 2013, p.371) Em linhas gerais, os quadrinhos são tidos como uma mistura do visual (imagens) com o textual. Apesar disso, Eisner afirma que as histórias em quadrinhos são, essencialmente, um meio visual composto de imagens. Apesar das palavras serem um componente vital, a maior - 18 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 dependência para descrição e narração está em imagens entendidas universalmente, moldadas com a intenção de imitar ou exagerar a realidade. (2005, p.5) Tendo isso em vista, o uso de fotografias nas histórias em quadrinhos é uma tática inteligente, especialmente se utilizada em HQ's não ficcionais e de conteúdo jornalístico. Elas são inseridas em um ambiente já criado para com base em imagens, sejam elas desenhadas ou de outra origem. A imagem, segundo Eisner, é a "memória de um objeto ou experiência gravada pelo narrador fazendo uso de um meio mecânico (fotografia) ou manual (desenho)". (2005, p.19) O autor ainda afirma que nos quadrinhos as imagens são usualmente representadas de maneira simplista na intenção de facilitar sua utilidade como uma linguagem. Os quadrinhos lidam com reproduções facilmente reconhecíveis da conduta humana. Logo, os desenhos dependem de experiências armazenadas na memória do leitor, para que este processe rapidamente a ideia e visualize o que a história está contando. A arte dos quadrinhos, portanto, torna necessária a simplificação das imagens, transformando-as em ícones que são usados como parte da linguagem narrativa. Portanto, "como a experiência precede a análise, o processo digestivo intelectual é acelerado pela imagem fornecida nos quadrinhos". (EISNER, 2005, p.19) Quanto mais simplista, ou como McCloud define, mais cartunizada é a imagem, mais fácil ela será lida: "quanto mais cartunizado é um rosto, mais pessoas ele pode descrever" (MCCLOUD , 1995, p. 31) e, portanto, mais icônico será esse rosto. Nos quadrinhos, quanto mais icônico for o desenho, mais identificação o leitor vai gerar com ele. Essa interação, esse processo de identificar-se nos desenhos, é a engrenagem fundamental do processo de leitura dos quadrinhos. É a partir dessa identificação que o leitor reconhece o que esté sendo comunicado. Um processo parecido ocorre com a leitura da fotografia. De acordo com Sontag, - 19 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 (... ) quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-la. A foto é como uma citação ou uma máxima ou provérbio. (SONTAG, 2003, p.23) Guran (1992) explica esse fenômeno, pois considera a linguagem fotográfica notavelmente sensorial, mesmo existindo em seu processo certa racionalidade em seu processo de construção e leitura. Por isso, mais do que o texto, a fotografia é rápida em levar ao leitor uma ideia ou sentimento referente à informação que foi apresentada. Ao contrário do relato escrito que se dirige a um número de leitores que varia dependendo de sua complexidade de pensamento e de vocabulário, "uma foto só tem uma língua e se destina potencialmente a todos." (SONTAG, 2003, p. 21), traço que lhe confere, até certo ponto, um caráter de universalidade. Acrescido a essa característica da fotografia, a autora reflete que nem todas as imagens de ordem técnica causam esse impacto no leitor comparando-a à televisão; fotos podem ser mais memoráveis do que imagens em movimento porque são uma nítida fatia do tempo, e não um fluxo. A televisão é um fluxo de imagens pouco selecionadas, em que cada imagem cancela a precedente. Cada foto é um momento privilegiado (...). (SONTAG, 2004, p. 29) A, talvez, mais notável diferença entre o desenho e a fotografia seja sua relação com a realidade. Enquanto o primeiro nos remete à uma noção de subjetivo mais marcante, a segunda chega até nós como um retrato do real, ou pelo menos, de um real. Sontag ilustra esse pensamento ao dizer que "imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedações dele (...)" (SONTAG, 2004, p. 15) A subjetividade da fotografia, contudo, não deve ser deixada de lado. Atrás da máquina fotográfica ainda há o olho e mão humana comandando a exposição, enquadrando e escolhendo o momento decisivo de dar o clique. - 20 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A fotografia é uma forma artística, portanto também sujeita a decisões estéticas impregnadas de subjetividade e "mesmo quando os fotógrafos estão muito mais preocupados em espelhar a realidade, ainda são assediados por imperativos de gosto e de consciência". (SONTAG, 2004, p. 17) O que Paim (2013) argumenta é que no caso do desenho, essa interferência no processo de produção da imagem é mais presente. O desenhista exerce sua imaginação ao utilizar seu repertório visual com muito mais intesidade. Mesmo tendo como base uma paisagem ou objeto real, um rascunho será feito, um traço e estilo estético serão escolhidos, ocasionalmente terá adição de cor e, por fim, será a feita a arte-final. Já as escolhas do fotógrafo são mais limitadas, passando por enquadramento, os ajustes das variáveis da câmera e obviamente, a escolha daquilo a ser fotografado, por exemplo. Apesar de ferramentas de edição de imagem serem amplamente utilizadas atualmente e poderem ser aplicadas na pós-produção modificando radicalmente uma imagem, de modo geral, os processos de decisão do fotográfo estão antes do clique e é a câmera que captura a imagem. Especialmente tratando-se do fotojornalismo e de fotografias de cunho informativo, onde o tratamento das imagens é o mínimo possível. Diante desse cenário, a consideração de Sontag parece resumir bem a questão: fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram uma foto. (... ) A foto pode distorcer, mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou existiu, e era semelhante ao que está na imagem. Quaisquer que sejam as limitações (por amadorismo) ou as pretensões (por talento artístico) do fotógrafo individual, uma foto - qualquer foto - parece ter uma relação mais inocente, e portanto mais acurada, com a realidade visível do que objetos miméticos. (SONTAG, 2004, p.16) Em O Fotógrafo, essas noções de realidade, passadas pelo desenho e pela foto, se misturam e não se mantém estáticas ou endurecidas, pois a sequencialidade dos quadrinhos ajuda a reconfigurar o conteúdo dos quadros ao passo que a leitura é feita, sendo aquela noção de realidade móvel - 21 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 e fluída. Groensteen evidencia que "o leitor de HQ, ao pressupor que existe um sentido, procura descobrir no que o quadro que ele "lê" se relaciona aos outros, e como ele é relido em função dos outros". (GROENSTEEN, 2015, p. 120) Em sua obra, O Sistema dos Quadrinhos, Thierry Groensteen traz uma consideração do pensador de histórias em quadrinhos, Fresnault Deruelle, sobre a leitura das HQ's: (... ) o fascínio que os quadrinhos podem provocar no leitor é baseado, entre outros elementos, na sua capacidade de nos fazer imaginar além de tudo o que nos é realmente mostrado: tem-se um sussurrar de sinais inaudíveis (assim como há um movimento intenso de coisas imóveis) por trás dessas caixas alinhadas com perfeição. (apud, GROENSTEEN, 2015, p. 20) Esse discurso entra em convergência com o que Sontag aponta sobre a fotografia: a sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: "Aí está a superfície. Agora, imagine - ou, antes, sinta, intua - o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem este aspecto". Fotos, que em si mesmas nada podem explicar, são convites inesgotáveis à dedução, à especulação e à fantasia. (SONTAG, 2004, p.33) A construção do leitor e do autor-modelo na narrativa. Voltemos às três formas de relação entre fotografia e narrativa descritas por Paim. Na obra O Fotógrafo é possível identificar a primeira e a terceira a primeira vista. O segundo tipo de relação descrita é um pouco mais complexa, mas também se faz presente. Para explicar de que forma isso se dá, é preciso buscar em Umberto Eco o conceito de leitor-modelo e autor-modelo. Para Eco (1993), um texto demanda o destinatário como condição indispensável não apenas dá própria capacidade efetiva da comunicação, mas também da própria potencialidade significativa. "Em outros termos, um texto é emitido por alguém que o atualize - embora não se espere que esse alguém exista concreta e empiricamente". (ECO, 1993, p.77). Ele também - 22 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 reforça que a presença do leitor no texto deve ser buscada: "prever o próprio leitor-modelo não significa somente "esperar" que exista, mas significa também mover o texto de modo a construí-lo" (ECO, 1993, p.81). Há, naturalmente, uma dependência na competência do leitor-modelo para que a cooperação textual ocorra, pois a noção de interpretação sempre envolve uma diálogo entre o autor, por meio de suas estratégias, e o leitor, por meio de sua resposta ao ler o texto. Em um processo de comunicação, tal como imaginamos em sua representação mais simples, envolve um emissor, uma mensagem e um destinatário ou receptor. O autor, a partir disso, argumenta que quando um texto é considerado texto, tanto emissor quanto destinatário se fazem presentes no texto não apenas como polos de enunciação, distantes, cada um em uma ponta do processo, mas como papéis actanciais do enunciado. Ou seja, personagens que constroem aquela mensagem: "fica claro, portanto, que, doravante, toda vez que usamos termos como autor e leitor-modelo, sempre entenderemos, em ambos os casos, tipos de estratégia textual" (1993, p.89) Eco complementa expondo as consequências do autor e do leitormodelo como duas estratégias textuais. Ele expõe duas situações: de um lado, o autor empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, formula uma hipótese de leitor-modelo e, ao traduzi-la em termos da própria estratégia, configura a si mesmo autor na qualidade de sujeito do enunciado, em termos igualmente "estratégicos", como modo de operação textual". (...) do outro lado, o leitor empírico, como sujeito concreto dos atos de cooperação, deve configurar para si uma hipótese de autor, deduzindo-a justamente dos dados de estratégia textual. (ECO, 1993, p.89) Uma das estratégias de construção do autor-modelo em O Fotógrafo se traduz, justamente, na reprodução do olhar do fotógrafo em todas as imagens presentes na obra, não apenas nas fotografias como é esperado. A obra é narrada em primeira pessoa e tem como mote justamente transportar o leitor para uma realidade distante de seu mundo. Nela, o leitor é construído - 23 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 como aquele que desconhece o país, seus costumes e sua população, aquele período histórico retratado, o que é viver em uma região sob conflito, assim como o trabalho da equipe de médicos sob condições precárias, longe dos hospitais higienizados do mundo ocidental contemporâneo, e o ofício do próprio fotojornalista inserido nesse cenário incomum. O leitor é guiado a conhecer tudo isso sob a lente de um forasteiro como ele, que está vivenciando aquela realidade pela primeira vez, com todas suas surpresas e novidades, mas que ao mesmo tempo é um jornalista e tem um compromisso com a verdade. Isso leva o leitor também a encarar a obra como um retrato fiel da realidade, não penas pela fotos inseridas nela, que servem como uma espécie de comprovação, mas pelo ethos de relato verídico estruturado em torno da graphic novel. Esse autor tanto se apresenta como estratégia narrativa nas imagens que apenas as fotos são de autoria empírica de Lefèvre, mas os desenhos de Guibert com diagramação de Lemercier são transmitidos como a tradução do olhar do fotojornalista narrando sua viagem. Composição Fotográfica Antes de tudo, é preciso esclarecer que não serão aplicadas a essa análise todas as técnicas de composição, mas especialmente aquelas que dizem respeito ao posicionamento da câmera enquanto delator da disposição do próprio fotógrafo diante da cena. Será abordada a influência dos planos de enquadramento, distância focal e tipo de objetivas, profundidade de campo e iluminação. Segundo Mascelli (2010, p. 227), "uma boa composição é a disposição de elemento visuais para formar um todo unificado e harmonioso". Mas para além disso, as regras de composição são sempre sujeitas ao efeito de sentido que o fotógrafo pretende transmitir. Comecemos pelo enquadramento. Segundo Souza (2002), ele "corresponde ao espaço da realidade visível representado na fotografia", e - 24 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 "concretiza-se no plano" (2002, p. 78). O autor considera, essencialmente, quatro tipos de planos:  Plano geral: plano aberto, de função informativa. Situa o leitor, dando visão do ambiente. Utilizado para fotografar paisagens e eventos de massa  Plano de conjunto: um plano geral "mais fechado". Nele, é possível distinguir os indivíduos de uma ação ao mesmo tempo em que se vê a cena por inteiro.  Plano médio: utilizado para aproximar-se uma visão "objetiva" da realidade, relaciona objetos e sujeitos na foto. É conhecido também como plano americano. • Grande plano: dá ênfase à expressividade, registrando elementos com mais proximidade. É mais regularmente chamado de primeiro plano e com uma versão mais fechada, chamada de plano detalhe. (SOUZA, 2002) Nos enquadramentos dos desenhos é possível, além dos planos, percerber a reprodução da distância focal de uma objetiva. Na figura 1, mais do que uma mera aproximação física do motivo da cena, no caso, uma pessoa, há uma demonstração de aproximação focal que pode ser obtida por meio de uma objetiva zoom. No primeiro quadro, uma lente de distância focal menor (de grande angular a normal) e nos próximos dois, distâncias focais maiores (de normal a teleobjetiva). Falaremos mais das objetivas adiante, o importante nesse momento é perceber que esse - 25 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 movimento pode ser produzido pelo zoom na lente. Não o zoom digital da marioria das câmeras, mas o zoom ótico. Já a escolha do ângulo plano é muito comum, especialmente na prática do fotojornalismo, pois se aproxima mais do ângulo de visão normal das pessoas. A distância focal da objetiva não penas permite aproximar-se ou afastar-se da cena, mas leva a outro elemento da fotografia que podemos perceber nas páginas da obra: a profundidade de campo. A profundidade de campo é "a zona nítida da imagem, em termos de profundidade" (SOUZA, 2002, p.92) e depende de três fatores: a abertura do diafragma, a distância focal da objetiva utilizada e a proximidade do objeto focado. Uma baixa profundidade de campo gera imagens com o "fundo embaçado". No caso da figura 2, ocorre o contrário, há nitidez em toda a imagem, indicando uma abertura pequena e a utilização de uma grande angular. Esse tipo de objetiva é utlizada, principalmente, para planos gerais e paisagens, e são inferiores a 50mm, considerada a distência focal "normal", pois é a que mais se aproxima da visão humana. Todos os detalhes dos quadros acima, a textura das folhas das árvores, a grama e os tijolos da casa representam a alta profundidade de campo, que deixa os detalhes da cena nítidos. - 26 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Já na figura 3 e 4, percebemos um fundo sem texturas ou detalhes. O foco está apenas nos personagens. A profundidade de campo aqui é baixa e "desfoca" o fundo das imagens. Na obra, esse efeito é principalmente visto em planos mais fechados e quando o cenário e a ambientação não eram uma informação relevante ao autor, apenas os personagens que participavam da ação no momento. As obetivas aqui utilizadas podem ser a normal (50mm) e a teleobjetiva, superiores a 50 mm. Esse tipo de objetiva, especialmente aquelas entre 70mm e 130mm, são muito utilizadas para retratos. (SOUZA, 2002) - 27 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Por fim, falaremos da iluminação. Nas figuras 5, 6 e 7, percebemos diversas características da iluminação ou da falta dela. A qualidade da luz, que se refere ao tipo de sombra que os objetos iluminados produzem também é percebida. Nos exemplos, nota-se uma luz dura, vinda do sol, nos dois primeiros cassos, e de um lampião no terceiro caso, produzindo sombras bem marcadas e fortes (SOUZA, 2002). Nas duas primeiras imagens, o que ocorre é algo comum quando se fotografa dentro de um ambiente sem ou com pouca iluminação durante o dia: os elementos ficam escuros se a fotometria é feita com base na iluminação de fora. Os personagens estão quase completamente engolidos pelas sombras, formando silhuetas. No desenho, tradicionalmente, isso poderia ser evitado, já que há um controle total do tipo de iluminação - 28 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 aplicada e todos os personagens poderiam estar iluminados. Na fotografia, por outro lado, o autor está à mercê da iluminação disponível, especialmente se a luz é natural e não há uso de flash. Na terceira imagem, a sombra produzida coincide com a direção da luz, criando texturas no chão e criando um contra-luz, iluminando os personagens apenas frontalmente, deixando sombras as suas costas e formas bem definidas. Considerações Finais As diferenças entre os dois tipos de imagem contidos na graphic novel, o desenho e a fotografia, são elementos relevantes que os definem, especilamente no que diz respeito à relação com o real, como exposto anteriormente. Inclusive, são essas diferenças que estabelecerem um jogo de referencialidade interessante na obra. Porém, mostramos aqui que também há pontos de convergência entre essas imagens. As fotografias, de fato, possuem um claro lugar de importância dentro da obra, ocupando um espaço na narrativa com tanto e até mais destaque que os quadrinhos, que é pertinente questionar se não é o quadrinho o "intruso em uma linguagem sequencial comandada pela fotografia" (PAIM, 2013, p. 385). Observou-se que por meio da composição fotográfica nos desenhos da obra analisada, um ponto de intersecção entre elementos distintos, delineia-se o autor-modelo da narrativa. Obviamente, essa estratégia é construída por uma gama complexa de enunciados, mais do que foi possível explorar neste artigo. Entretanto, com os efeitos de sentido transmitidos na obra e explorados aqui já é possível identificar a construção de um autormodelo específico, o mesmo que dá nome à obra: o fotógrafo. Referências Bibliográficas ECO, U. Lector in Fabula, La Cooperacion interpretativa en El texto narrativo. Trad: Ricardo Pochtor. Barcelona: Editora Lumen, 1993. - 29 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 EISNER, W. Narrativas Gráficas. Trad. Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir, 2005. GUIBERT, E.; LEFÈVRE, D.; LEMERCIER, F.. O fotógrafo: vol 1. Trad: Dorotheé de Bruchard. São Paulo: Conrad Editora do Brasil. 2006. . O fotógrafo: vol 2. Trad: Dorotheé de Bruchard. São Paulo: Conrad Editora do Brasil. 2008. . O fotógrafo: vol 3. Trad: Dorotheé de Bruchard. São Paulo: Conrad Editora do Brasil. 2010. GROENSTEEN, T. O Sistema dos Quadrinhos. Trad. Érico Assis. Nova Iguaçu, RJ: Marsupial Editora, 2015 GURAN, M. Linguagem fotográfica e informação. Rio de Janeiro: Rio Fundo. 1992. MASCELLI, J. V. Os Cinco Cs da cinematografia. São Paulo: Summus, 2010 MCCLOUD, S. Desvendando os quadrinhos. Trad. Hélio de Carvalho e Marisa do Nascimento Paro. São Paulo: M. Books, 1995. PAIM, A. M. A fotografia na história em quadrinhos. Revista Letrônica, Porto Alegre, jan/jun 2013. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/viewArticle/13391>. Acesso em: fev/2015 SONTAG, S. Diante da dor dos outros. Trad: Rubens Figueiredo. São Paulo: Compania das Letras, 2003. . Sobre Fotografia. Trad: Rubens Figueiredo. São Paulo: Compania das Letras, 2004. SOUZA, J. P. Fotojornalismo: uma introdução è história, às técnicas e à linguagem da fotografia na imprensa. Porto. 2002. Disponível : <http://www.bocc.ubi.pt/_listas/tematica.php?codtema=31>. Acesso em: fev/2016. - 30 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 ETNIA, GÊNERO E DIVERSIDADE - 31 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Amores enredados, el lenguaje postmoderno del amor Alfonso Vázquez Atochero - Universidade Americana de Europa / Universidade de Extremadura A modo de introducción y aclaración metodológica Decía Erich Fromm en 1959 que “El amor es una actividad, no un efecto pasivo; es un estar continuado, no un súbito arranque”. Si bien en aquellos tiempos ya se venía vislumbrando los inicios de una sociedad informatizada, la filosofía europea no sospechaba cómo la invasión de chips modificaría nuestra forma de relacionarnos. No perderemos tiempo en análisis semánticos ni en debatir qué es amor y qué no. Independientemente de los matices que queramos dar al vocablo, interpretaremos en este ensayo el amor como la atracción y la necesidad de contacto y afectividad entre las personas. Y como hablamos de personas, daremos prioridad en este sondeo etnográfico a la fuente primaria, al informante, al usuario al enamorado y al desenamorado. No buscaremos tanto una bibliografía extensa, si no que daremos prioridad al discurso humano. Con ello, pretendemos ofrecer una visión holística donde encuentren el equilibrio las visiones emic y etic del proceso de investigación. Por ello, en este texto veremos citas anónimas regaladas por los informantes que participaron desinteresadamente en esta investigación. Sin duda, un punto de partida para entender el amor en tiempos de Facebook. - 32 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 El amor en tiempos de Facebook El amor en tiempos de Facebook es diferente en cierta medida como este sentimiento se interpretaba a prioiri. Al menos en su dimensión estética. La gran alcahueta digital en que se convierte la red es capaz de generar contenidos (esperanzas/decepciones) en uno y otro sentido. El enamorado puede saber todo de su media naranja sin tener que preguntar nada. Y el coqueto podrá exhibir todo su potencial de manera premeditada sin la presión de la inmediatez. Así, la red, la pantalla, se convierte en la mejor celestina que podemos encontrar. El efecto interfaz, la comunicación asincrónica a salvaguardo de la pantalla, abre un nuevo espacio a tímidos y fóbicos. Pero también magnifica y abre nuevos mundos a amantes insaciables. En los últimos quince años Internet ha vivido una expansión tanto en innovaciones técnicas como en el número de usuarios. En sus inicios, era un espacio reservado a una reducida elite, y en la actualidad es posible encontrar internautas en cualquier país del mundo. Hoy en día, en Estados Unidos y algunos países con economía de mercado casi no se concibe un hogar sin ordenador ni Internet. Esta migración masiva de ciudadanos reales a ciudadanos virtuales ha hecho que también migren sus hábitos de un escenario a otro, y el amor y el sexo no podían escapar a este fenómeno. La red permite encuentros y romances entre conocidos y desconocidos, entre sinceros y entre suplantadores de identidad, entre convencidos y los que entraban a conocer. Muchas relaciones quedan en el terreno virtual, pero otras muchas traspasan la frontera del bit y, en una lógica negropontiana, llegan al átomo. Desde salas de chat, foros portales de contactos o espacios de trabajo, las relaciones personales han conocido una nueva dimensión. En estas relaciones, los interlocutores pueden llegar a un nivel de intimidad y confianza que hace que se cuenten cosas que no compartan con su propia pareja o familiares más cercanos, un compartir que no implica necesariamente compromiso afectivo, ni verdadera exposición. Personas sin presencia física real con quienes se genera o no un vínculo afectivo sostenido a través de la pantalla. La pantalla es una membrana entre nosotros y el otro, - 33 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 entre el hogar y el mundo. Una membrana osmótica que permite una interacción sosegada, sesgada y controlada con el mundo. A fin de cuentas, un interfaz con que nos ocultamos en la fiesta digital. Efecto interfaz Conducir un coche transforma al conductor. Quien en la calle es una persona tranquila y sosegada, en frecuentes ocasiones al volante se convierte en alguien irritable y violento en cierta medida. Lo mismo ocurre con Internet. El teclado y la pantalla nos permiten comunicarnos con el mundo exterior desde el confort de nuestro hogar. Podemos acceder a otros foros de comunicación sin la barrera que en algunos casos puede suponer la presencia física. Es lo que podemos denominar efecto interfaz. En algunos casos, la persona más tímida en la calle, puede convertirse en un descarado en la red. Pero, lejos de los extremos, la pantalla nos permite mostrar exactamente lo que queremos de nosotros, al tiempo que nos ayuda a encontrar una imagen idealizada de lo que estamos buscando. Todo ello, como comentábamos anteriormente, desde la tranquilidad del hogar. En el caso de una persona tímida, con dificultades para enfrentarse a gente desconocida o ante grandes auditorios, esconderse tras la pantalla puede ayudarle a dar el primer paso hacia una interacción que trascienda, o no, a la dimensión digital, porque dentro de Internet no tienes vergüenza [informante 284, chica, 14 años].¿Sirve Internet como una nueva vía de contacto? ¿Es un complemento? El hecho es que cada vez más gente amplía sus relaciones, o incluso sale de una soledad espacial gracias a la red. Tal vez se presente como un escenario más atractivo. Tal vez la timidez no sea obstáculo en este mundo virtual. En los espacios tradicionales de contactos, los personajes que trascendían respondían a perfiles determinados. El anonimato de la pantalla permite también que esas personas “no trascendentes”, esas personas que encontraban más dificultades en el mundo real, ahora tengan a su alcance una vía que les permita relacionarse. - 34 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 El ser y el deber ser, el cómo soy y como me ven, el cómo soy y como me veo... son planteamientos presentes en el ser humano. Hemos visto que la materialización de las amistades virtuales, a día de hoy, no está generalizada, a pesar de que se produzcan. Sin embargo, gran parte de los usuarios investigados reconoce que es posible encontrar buenos amigos a través de estos canales, hasta tal punto que este verano he hecho uno de mis mejores amigos y lo conocí a través del tuenti de un amigo [CG, chica, 16 años, en grupo de discusión]. Otros dan valor a la sinceridad y a la coherencia entre el yo virtual y el yo real: depende de cada persona y si se muestra realmente como es tanto en Internet como en la vida real. Asimismo es importante tener en cuenta que cuando conocemos a alguien en la red, la pantalla se convierte en un filtro que depura los prejuicios: debiera ser por esa razón de no ver y que te lleva a "no juzgar" a no sentirse vigilado, lo virtual tiene como objetivo idealizar por eso debiera ser que se conozcan personas de forma más sencilla y por ende cuando se haga contacto cara a cara sea más sencillo. Y no podemos dejar de lado la posibilidad de reflexión que deja la atemporalidad de la que antes hablábamos. A tiempo real hay personas que tienen más problemas al mantener una conversación fluida, al menos las primeras veces, y el ágora digital diluye esta barrera, al dejar turno en la reflexión del mensaje porque es más fácil escribir que hablar. Por otro lado también hay personas que piensan que no es el canal idóneo, precisamente para evitar ese efecto interfaz que tamiza la personalidad de los interlocutores: para mí es básico conocer en persona a alguien para llegar a tener un nivel de confianza grande [NS, chica, 18 años, en grupo de discusión]. En palabras de Diego Levis “a veces, esa pantalla que comunica el mundo real con el virtual, el mundo del átomo con el del bit, es una falsa ventana, que actúa como filtro entre nosotros y la realidad, como un biombo, que en demasiadas ocasiones, nos impide percibir lo que nos rodea. Acostumbrados a ver el mundo a través de una pantalla, cada vez nos cuesta más ver a nuestro lado, mirar a nuestros semejantes. En la pantalla, como si fuera el espejo de la bruja de Blancanieves, buscamos respuestas sobre aquello que somos y deseamos ser, sin darnos cuenta que lo que nos devuelve - 35 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 es una imagen deformante que sólo nos dice lo que creemos ser. Nos conmueven los refugiados de todas las guerras y hambrunas que nos muestran las pantallas, pero le damos la espalda al sufrimiento que tenemos en nuestro entorno inmediato. Las pantallas nos asedian y nos atrapan, y hay a quienes les sirven de refugio ante una vida que les resulta poco atractiva y, a veces también, amenazante (http://diegolevis.com.ar/secciones/Articulos/adiccion_5-00.pdf)”  Barrera perceptiva  EFECTO INTERFAZ  Es posible generar diferentes identidades al resguardo de la pantalla Cómo nos vemos (Autopercepción) -Producto de nuestra autoestima (maximizados o minimizados) IMAGEN DIGITAL IMAGEN ANALÓGICA Cómo nos ven. - Absorción de los datos expuestos por el usuario - Tendencia a la idealización o degradación de la alteridad digital Cómo nos ven - Influencia de la imagen física - Impacto de la primera impresión - Importancia de la interacción inmediata  Barrera perceptiva  Cómo nos vemos (Autopercepción) posibilidad de construir la identidad a base de imágenes y pautas reflexionadas Puntos de encuentro y desencuentro Al igual que la calle, la red social es un lugar amplio y diverso. A pesar de haber espacios específicos de encuentros, estos contactos pueden surgir en entornos no diseñados con tal fin. Así, una plataforma de juegos con mensajería entre usuarios puede ser el lugar donde surja la chispa que de pie a una relación: No buscaba pareja en la red, buscaba personas para compartir o platicar, fueran hombres o mujeres [informante 15, mujer, 29 años]. El azar - 36 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 puede ser el responsable de que un contacto fortuito se convierta en una relación más o menos estable: nunca busqué pareja, fue casualidad [informante 15, mujer, 29 años] Y a veces, esta casualidad se convierte en matrimonio: no buscaba parejas, solo conocer más gente en general hombres y mujeres. A mi esposo actual lo conocí en las redes, duramos un mes escribiendo y luego nos conocimos físicamente [informante 15, mujer, 29 años]. Puede ser que el amor llegue de manera subsidiaria. Se accede por otro motivo y se encuentra pareja de improviso: la soledad me llevó a esa situación (entrar en medios sociales). Fue algo casual, no había intención de conocer a alguien en internet para mantener ese tipo de relación [informante 17, mujer, 30 años]. A veces este enamoramiento es sosegado y paulatino. Dentro de una serie de contactos virtuales, poco a poco alguno de ellos se puede ir convirtiendo en algo especial: generalmente uno anda en busca de charlar, sin embargo, sin darte cuenta ya estás hablando mucho con cierta persona y de forma un tanto improvista te das cuenta que estas sintiendo cosas por alguien que no conoces, quizá porque ese alguien te está proporcionando ese cariño que estuvo faltando, y te hace sentir bien. Por lo que fue más improvisto que premeditando, pues al charlar tras una pantalla uno piensa en algo serio, solo divertirse [informante 16, mujer, 19 años]. Al contrario, hay quien encuentra la red como un buen lugar para buscar pareja y accede con plena intención: Lo hice como un intento de buscar pareja estable [Informante 3, hombre, 43 años]: Conociendo la sintaxis propia del código digital, podemos acceder con más facilidades a comunidades concretas: (entré por) las dificultades para encontrar pareja en la vida real, pues hay menos gente homosexual. Más bien fue premeditado. En la vida real se hace muy difícil [Informante 34, hombre, 44 años]. Al igual que en otros escenarios convencionales, la red ofrece un abanico de opciones de comunicación: no sé por qué entraba, quizá el saber que allí podía establecer contacto con mujeres que no conocía de antemano [Informante 4, hombre, 37 años]. Dadas las dimensiones de la red, las opciones de encontrar lo buscado son más amplias: entré con intención de encontrar el amor porque en mi entorno no me gustaba nadie desde hacía muchísimo tiempo. Fue premeditado - 37 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 el buscar el amor a través de la red [Informante 5, hombre, 35 años]. También entra en juego el efecto interfaz que hemos descrito anteriormente: Entraba a buscar pareja por la soledad y quizá también la comodidad. A mi edad, me da pereza comenzar a alternar con alguien en un bar o discoteca. Podría decirse que sí fue premeditado... busqué y surgió [Informante 8, hombre, 43 años]. El encuentro físico a veces es rápido, pero otras veces se demora en el tiempo: Aunque no conozco en persona a mi pareja... sí hemos chateado muchísimo, pero como digo aún no nos conocemos físicamente. Imagino que será igual de satisfactorio. Llevamos 3 meses de "noviazgo virtual" [Informante 8, hombre, 43 años]. La cautela es una de las razones que mantiene la distancia: estuve 3 meses en contacto por internet pues no me gusta precipitarme ni ilusionarme [Informante 5, hombre, 35 años]. Una vez pasado el periodo de noviazgo virtual, el encuentro suele ser satisfactorio: pasó un mes desde que empecé a hablar con él hasta que lo conocí en persona. Fue mucho más satisfactorio de lo que esperaba [Informante 7, mujer, 29 años]. Pero no siempre se llega a tener un encuentro físico. Unas veces porque simplemente no prospera, sin que ello sea un inconveniente para seguir conociendo personas en la red: nunca busqué y no creía que fuera posible enamorarse de alguien de esta manera hasta que me pasó a mí misma. Sí conocí a otros chicos, un par, por facebook. Y con alguno tuve un affair [Informante 7, mujer, 29 años]. El hecho de localizar un amor en la red hace que el uso del ordenador sea algo compulsivo: se convirtió en algo obsesivo. No puedo vivir sin estar conectado y saber de esta persona. Aún no nos hemos conocido físicamente [Informante 8, hombre, 43 años]. Sin embargo, cuando se consigue pareja, se suele abandonar este tipo de páginas: Cuando conocí a mi pareja dejé de usar ese tipo de páginas [Informante 12, mujer, 29 años]. Una vez que empezamos a salir, el uso de dichas plataformas disminuyó drásticamente [Informante 10, mujer, 29 años]. En otros casos, la red se nos presenta como un lugar hostil para conocer nuevas personas, pero idóneo para mantener el contacto con quien - 38 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 ya conocemos: se me hacen relaciones medio vacías, pero probablemente sea un buen medio para continuar relaciones que han surgido personalmente [Informante 18, hombre, 32 años]. Pero en un escenario desterritorializado ¿dónde se establecen estos contactos? Los portales específicos para hacer amigos cambian y evolucionan. Los clásicos Hi5 y Tagged se han unido bajo una misma entidad e imagen, centrando su actividad como buscador de personas (Millones de personas se están divirtiendo y conociendo nuevos amigos en Tagged/Hi5 todos los días. ¡Tú también puedes!, es el lema de entrada en ambas web). Con un funcionamiento similar encontramos Badoo (Haz contactos nuevos. Con más de 299 millones de usuarios, Badoo es el mejor lugar para chatear, hacer nuevos contactos, compartir intereses y tener una cita.), un portal fremium en el que se ofrece un servicio inicialmente gratuito pero con ciertos servicios de pago si se desea tener una navegabilidad más eficaz. En esta categoría, también encontramos el Planazo. El funcionamiento es similar en todos ellos: tras un alta en el que se crea una ficha de usuario y se pueden colocar una o varias fotos, la descripción y las aficiones, se pueden realizar búsquedas entre el resto de usuarios siguiendo una serie de criterios. Se establece los parámetros de búsqueda (chico busca chica, chica busca chico y todas sus combinaciones), el rango de edad, la demarcación geográfica y la web ofrece perfiles que podemos valorar para intentar establecer un posterior contacto. Sin embargo, a pesar de la publicidad y de los elementos de pago, estos espacios no dejan de ser plataformas más o menos horizontales, con usuarios reales con sus intereses determinados. Una nueva forma de entender las relaciones personales, donde se cambia el ruido y el humo de la discoteca por la comodidad del propio hogar. Se busca, se ofrece, se anhela… Y esto no deja de ser un apetitoso mercado que ha hecho que proliferen una nada despreciable cantidad de páginas que vienen a ser la continuidad en el ciberespacio de las clásicas agencias matrimoniales Agencias matrimoniales en internet - 39 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A veces el encuentro no es fortuito. Hay lugares específicos para encontrar contactos. Numerosos portales ofrecen contactos sentimentales. A veces son empresas, agencias matrimoniales al uso, que han sabido ver el potencial de la red para extender su negocio, aunque en la mayoría de los casos no es una agencia física que abre una agencia virtual, sino una empresa que nace en el seno de Internet desde el primer momento. Como norma general juegan con la inscripción gratuita, limitada a una serie de servicios recortados, para una vez registrado ofrecer el coste de sus servicios. Normalmente, el usuario no registrado no puede realizar peticiones para conocer a otros miembros de la comunidad, aunque sí que puede “recibir solicitudes” de contactos por parte de miembros registrados. Las condiciones de pago suelen ser asimétricas: como la habitual práctica de las discotecas, los hombres pagan las mujeres entran gratis. Y con esta premisa de partida, la mujer se convierte en mercancía es estos espacios Pantalla de inicio de Meetic. Una ”agencia” donde el hombre es un cliente al que sacar dinero y la mujer un objeto de consumo, un elemento más de su mercado - 40 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Se suele pensar que la mayoría de los usuarios son masculinos, pero según los datos de Parship, el 51% de sus usuarios son hombre y el 49% mujeres. Y es que la soledad o la búsqueda de nuevas vías sentimentales no es cosa de hombre exclusivamente. No obstante, las empresas punteras, distribuidas internacionalmente, suelen ofrecer cebos para captar al público masculino. Casi todas las publicidades suelen mostrar fotos de parejas felices. En cambio, Meetic muestra exclusivamente fotos de modelos femeninas y jóvenes, con reclamos como ¿no nos hemos visto antes en meetic? o ¿cuál es tu excusa para no venir a buscarme? Cada una intenta llamar la atención a su manera: Match saca pecho y exhibe sus cifras, 15.000.000 millones de usuarios y medio millón de parejas formadas al año. Parship coloca en su web historias de amor de usuarios que afirman haber encontrado pareja estable a través del portal y el asesoramiento de una single coatching, que viene a ser una entrenadora de solteros (mejor dicho, para dejar de ser solteros). Además, son los únicos que se atreven con imágenes de usuarios no “tan jóvenes y guapos”. B2, que se acerca a los 370.000 usuarios, permite hacer un test online gratuito, que arroja un posible abanico de candidatas. También cuenta con su rincón de historias felices. En este portal la relación es 57% de mujeres / 43 % de hombres. - 41 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Vemos como este tipo de empresas se basan en modelo de negocio orientado al público masculino. El mensaje subliminal que subyace bajo todo el código visual y escrito es que se ofrecen chicas y el hombre elige. Pero la realidad no es tan sencilla y el harén digital no es una apartada orilla donde la luna más pura brilla. En muchas ocasiones, las chicas no existen, y si el usuario masculino no pica el cebo o ni siquiera comienza a generar actividad, el sistema actúa de manera automatizada y le ofrece los flechazos ofrecidos por las usuarias. Incluso si no ha completado el perfil y no ha añadido ni fotos ni intereses. Cuando el usuario paraliza su inscripción o, habiendo hecho una cuenta gratuita, no comienza a comprar servicios adicionales, como el de mensajería, el sistema envía mensajes cebo para recuperarlo. A medida que la demanda aumenta y que todos los espacios ofrecen aproximadamente lo mismo, es necesario ir más allá, diferenciarse de la competencia, eliminar sutilizas y exhibir un lenguaje visual explicito, con el - 42 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 fin de captar a aquellos usuarios que no ha triunfado en el nivel soft (meetic, be2, match o parship) o que aún permanecen indecisos. Los mensajes comienzan a tener un lenguaje y una iconografía más directos, como ocurre con easyflirt, y las páginas de encuentros comienzan a parecer un burdel digital. Los burdeles digitales El siguiente nivel son los espacios que sin prolegómenos ni cortejos ofertan sexo rápido y sencillo. SecondLove, Ashley Madison, Flirtafair, AdulFriendFinder funcionan igual que las páginas comentadas en el apartado anterior: exponen mercancía femenina, anuncian registro gratuito y una vez registrado, antes de poder realizar cualquier contacto se abre la lanzadera de pago para poder enviar mensajes a las supuestas usuarias. - 43 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Para atraer a los digital lovers, los portales vuelven a recurrir a los mensajes de las usuarias satisfechas, como este de SecondLove Totalmente asombroso, gracias! Me fue muy bien, tuve muy buenos contactos y seguiré teniendo más jajaja...Muy bueno, ya se lo recomendé a mis amigas!. Mariana, 32 años - Córdoba Capital Por otra parte, no podemos soslayar la oferta de la red como elemento sustitutorio: la industria pornográfica en la red mueve millones. Adolescentes, solitarios y un público de lo más variopinto rastrea la red en busca de pornografía. Esto podría quedar fuera de nuestro estudio si nos limitáramos a su consumo en entornos digitales como simple proceso de migración de soportes analógicos, sin embargo queremos incidir en ello por la aparición de “herbívoros" (soshoku-kei danshi), un concepto popularizado en Japón en los últimos años y que designa a "jóvenes que no tienen una actitud positiva para el amor y para el sexo", según el sociólogo nipón Masahiro Morioka. Con este concepto se describe a un cuarto de la población japonesa que prescinde de las relaciones cara a cara y exclusiviza el consumo - 44 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 de pornográfica como elemento sustitutorio. Y es un fenómeno social preocupante en un país con un alto porcentaje de adultos solitarios y una tasa de natalidad excesivamente baja. Apps Generation, cuando el móvil es una forma de vida Y si hemos comenzado hablando de páginas web, hay que destacar el papel imprescindible de las apps. En la época de la hiperconectividad ubicua, donde los dispositivos móviles permanecen conectados en todo momento, la aplicaciones nos ponen en alerta constante: recibimos avisos a tiempo real cuando entra un correo electrónico en nuestra bandeja, nos llegan ofertas del super, mensajes de WhatsApp… Las páginas citadas anteriormente también tienen su presencia en forma de aplicación. Sin embargo, queremos hacer referencia a aplicaciones puras, es decir, que no proceden de una página web de la era pc Grinder y Tinder son quizás las más populares, el último peldaño de lo que comenzaron a ofrecer los chats y que continuaron desarrollando Hi5 o Tagged. El coqueteo se reduce a una serie de interacciones digitales y a la elección/clasificación de las artes amatorias de los candidatos en unas pocas categorías con las que los algoritmos de emparejamiento harán su trabajo. La app se ocupará del resto y nos ofrecerá perfiles que estén cerca para que, como era habitual, se puedan valorar y poner en contacto a usuarios. Grinder llega más lejos y, teniendo en cuenta nuestras preferencias de búsqueda, nos avisará cuando se aproxime a nosotros - o a nuestro dispositivo móvil- otro usuario cuyo perfil se aproxime a lo que nosotros establecimos como elementos de interés. Es decir, ya no sólo se elimina el coqueteo sino que el teléfono móvil actúa como secretario sentimental ocupándose de localizar a nuestro objetivo y avisándonos cuando se encuentre a pocos metros El amor llega al libro, el libro llega a la red - 45 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Las comunicaciones en la Red han creado modos insospechados de relaciones afectivas y contactos entre las personas. El ciberespacio se ha transformado en una dimensión más de nuestra vida social. Diego Levis es un autor que se ha ocupado desde hace tiempo de este fenómeno. Si La Pantalla Ubicua (1999) nos permitía adentrarnos en la aventura de las comunidades virtuales en general, Amores en Red. Relaciones afectivas en la era Internet (2005) y Amor nada [en la ciberpantalla] (2007) son obras que pueden ayudarnos a comprender mejor este mundo de las relaciones a través del ordenador. ¿Qué nos lleva a franquear estas nuevas fronteras para convertir la barrera de la distancia en la posibilidad del contacto a través del anonimato de la pantalla? ¿Dónde se deja de ser un nick en una sala de chat para entrar a formar parte de la vida de la otra persona? Del primero, el autor nos dice que “la Red del amor recorre de un modo lúdico diferentes tipos de relaciones afectivas y sexuales que se establecen y se desarrollan a través de la Red y en sus alrededores, ofreciendo al mismo tiempo una mirada analítica de las características fundamentales de estas relaciones y de su significación en la vida privada y social contemporánea (http://www.diegolevis.com.ar)”. El segundo es un intercambio de emails ordenados cronológicamente que va mostrando como una relación a través de la pantalla puede ir armando un complejo entramado de sentimientos al igual que ocurre fuera de esta. Otro texto que se ocupa de como la red ha cambiado nuestros hábitos es Lovebook, de Simona Sparaco. En el texto, una joven recuerda como de niña estaba enamorada de un adolescente. Decide buscar su nombre en Facebook y allí lo encuentra. La pantalla le da fuerzas para iniciar la relación que no pudo conseguir en su infancia Por su parte, y cambiando de temática, la psiquiatra Esther Gwinnell nos ofrece El amor en Internet: intimar con desconocidos a través del ciberespacio. Un libro para comprender los procesos que se produce en nuestros comportamiento y que nos llevan a intimar por alguien a quien ni vemos ni conocemos. - 46 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A modo de conclusión Internet nos ha facilitado una serie de herramientas que nos han cambiado la vida. Hemos cambiado la manera de comprar, de trabajar, de estudiar, de disfrutar, de vivir… Una parcela tan humana y cotidiana como es el amor no podría quedar excluida de este nuevo paradigma que nos acecha y espera. La red nos ofrece nuevos canales de comunicación que han hecho que el planeta nos quede pequeño. Las distancias cada día se hacen más cortas y ponen el mundo al alcance de nuestro teclado. Conocer nuevas personas o establecer nuevos vínculos con viejos conocidos es algo que de manera fortuita puede ocurrir en nuestras vidas. En este aspecto, la máquina se hace más humana y nos acerca. - 47 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Identidade de Gênero: O cenário Transexual e Travesti na Sociedade Amanda Costa - UNESP Isabel Silva - UNESP Isadora de Oliveira - UNESP Naiara Teixeira - UNESP Thais Viana - UNESP Introdução Os termos transexuais, transgêneros e travestis serão recorrentes neste artigo. Transgênero se resigna alguém que sente pertencer ao sexo oposto, a ambos ou nenhum dos gêneros tradicionais binários. Logo transexual e travestis se enquadram nessa categoria, a principal diferença entre os dois termos está no estereótipo social e na estigmatização, maior detalhada ao longo do artigo. O Movimento Social LGBTTT tem contribuído na reflexão sobre as vivências da sexualidade nos âmbitos privado e público, tanto como prática individual, como prática social e política, questionando e desconstruindo binarismos rígidos presentes nas categorias de gênero tradicionais: homem/mulher, masculino/feminino, heterossexual/homossexual (Bourcier e Moliner, 2008; Newton, 2008; Steinberg, 2006; Butler, 2006; Rebreyend, 2005; Preciado, 2004; Pellegrin e Bard, 1999) e, entre suas ações, denunciam a violência e a violação dos direitos humanos desses grupos sociais, reivindicando a igualdade de direitos, tanto na cena mundial como no Brasil (ÁVILA,2010) As discussões geradas pelo movimento LGBTT são trazidas para o documentário Transexuais e Travestis: Uma análise da vida (2014), - 48 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 desenvolvido como produto de pesquisa, onde retratamos os entrevistados nas esferas sociais mais críticas e influenciadoras da formação pessoal: família, trabalho, vida pública e individual. Para a produção do documentário, todas as transexuais e travestis se tornaram protagonistas de uma pesquisa participante, fundamentando uma perspectiva humana e não somente caracterizadas como objetos de pesquisa. Desvendar o cenário brasileiro do preconceito e transfobia é o ponto central do artigo que emprega de maneira didática os aspectos que formam a teia de preconceito que recai sobre a comunidade trans e travesti. Descontruindo Generalizações Um dos objetivos principais do documentário é desmitificar alguns conceitos e definições acerca do tema da transexualidade. Logo no começo da coleta de informações, para iniciar a produção do trabalho, pessoas comuns foram questionadas sobre a diferença entre travesti e transexual. A grande maioria não sabia como distinguir as duas definições. Esse fato preocupa e escancara a realidade para a falta de informações que permeiam a sociedade. A escassez de informações e a forma como o assunto é abordado, principalmente, pela mídia tradicional, resulta no preconceito e discriminação. A abordagem e esclarecimento de conceitos essenciais para a compreensão do tema deve ser o primeiro passo para a desconstrução de pensamentos preconceituosos. Antes de compreender o que é ser travesti ou transexual, é essencial entender conceitos que criem subsídios para a total compreensão. Primeiramente, vamos tratar dos termos orientação sexual e identidade de gênero. A orientação sexual pode ser definida como a forma como nos sentimos em relação a nossa afetividade e sexualidade. Ou seja, é a orientação afetivo-sexual. Existem quatro tipos de orientações afetivo-sexuais predefinidas socialmente: os heterossexuais (atraídos pelo gênero oposto), os homossexuais (atraídos pelo mesmo gênero), bissexuais (atraídos por ambos - 49 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 os gêneros) e os assexuados (não possuem atração sexual e/ou afetiva por nenhum gênero). Ao contrário do que é abordado pelo senso comum, o termo identidade de gênero pode ou não ter relação com a orientação sexual. A identidade de gênero faz menção à forma como nos reconhecemos em relação aos padrões de gênero preestabelecidos socialmente. A identidade pode ou não ter relação com o sexo biológico da pessoa. Por exemplo, alguém que nasceu com o sexo biológico masculino pode se reconhecer como parte do gênero feminino e se sentir atraído por mulheres. Ou seja, seria, portanto, uma mulher transexual lésbica. Por conclusão, os conceitos de orientação sexual e identidade de gênero são termologias completamente independentes. A confusão que se estabeleceu devido à comparação entre os papeis sociais, de gênero, orientação sexual e identidade de gênero, é justificada devido, infelizmente, ao padrão binário de classificação típico de nossa sociedade. Biologicamente falando, o principal fator que classifica o sexo de uma pessoa são suas células reprodutivas. Espermatozoides determinam machos e óvulos determinam fêmeas. Porém, diante dessa concepção, deixa de ser considerado que não são apenas os cromossomos ou a formação da genitália característica que delimita o sexo de uma pessoa. É importante não esquecer que a auto percepção, seja ela compatível ou não com o que é socialmente esperado, deve ser respeitada e é dessa forma que o indivíduo deve ser tratado socialmente. "Este núcleo de nossa identidade de gênero se constrói em nossa socialização a partir do momento da rotulação do bebê como menina ou menino. Isto se dá no momento de nascer ou mesmo antes, com as novas tecnologias de detectar o sexo do bebê, quando se atribui um nome à criança e esta passa a ser tratada imediatamente como menino ou menina." (GROSSI, 1998, p.8) A partir da exposição de importantes conceitos, podemos então compreender as termologias travestis e transexuais. - 50 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 De inicio, vamos tratar das considerações diante dos termos transexualismo e transexualidade. No primeiro termo, o sufixo "ismo" é referente à caracterização de patologias. Sendo transexualidade a nomenclatura mais condizente com e mais respeitosa. Contudo, infelizmente, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o transexualismo ainda é considerado uma patologia psíquica. O dia 28 de outubro ficou marcado como o dia da luta contra a despatoligização da transexualidade. Em 2010, a França foi o primeiro país a não mais considerar transexualidade como uma doença de ordem psíquica. Após a compreensão de considerações primordiais, para a produção do documentário, entrevistamos travestis e mulheres transexuais. Como foi abordado anteriormente, uma pesquisa simples, realizada mostrou que a maioria das pessoas não sabe distinguir uma travesti de uma mulher transexual. Bem, tecnicamente falando, as travestis são pessoas que passam a vivenciar papéis de gênero feminino, predeterminados socialmente. Contudo, não se identificam como integrante do gênero masculino ou feminino. São como membros de um terceiro gênero ou de um não gênero. Quando abordamos o termo travesti, devemos sempre utilizar o artigo a como forma de tratamento. Diferentemente do termo travesti, a questão da transexualidade é um pouco mais complexa e faz referência diretamente ao conceito de identidade de gênero. A palavra transexual remete à pessoa que de alguma maneira não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído biologicamente. Ou seja, a pessoa possui uma identidade de gênero diferente do gênero que nasceu. Logo, a transexualidade é uma questão de identidade de cada individuo. "Cada pessoa transexual age de acordo com o que reconhece como próprio de seu gênero: mulheres transexuais adotam nome, aparência e comportamentos femininos, querem e precisam ser tratadas como quaisquer outras mulheres. Homens transexuais adotam nome, aparência e comportamentos masculinos, querem e precisam ser tratados como quaisquer outros homens. Pessoas transexuais geralmente sentem que seu - 51 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 corpo não está adequado à forma como pensam e se sentem, e querem "corrigir" isso adequando seu corpo à imagem de gênero que têm de si. Isso pode se dar de várias formas, desde uso de roupas, passando por tratamentos hormonais e até procedimentos cirúrgicos." (JESUS,2012,p.15) Transexuais são, portanto, indivíduos que não encontram compatibilidade entre seus corpos e a sua auto definição de gênero. Assim, a mulher transexual reivindica ser reconhecida socialmente e legalmente como uma mulher, independente de fatores predefinidos biologicamente. Da mesma forma, um homem transexual também reivindica ser reconhecido socialmente e legalmente como um homem. É essencial, para um individuo transexual, expor tanto interiormente como exteriormente a forma como se identifica no convívio social. Esse fator é extremamente importante para a consolidação de sua identidade e até mesmo auto aceitação. Legislação a favor da causa Trans e Travesti A legislação que protege a comunidade transexual e travesti ainda é escassa e precária. As maiores conquistas recentes estão ligadas ao Projeto de Lei João Nery, ao decreto em função da utilização do nome social em instituições de ensino e a promoção de políticas públicas de incentivo ao mercado de trabalho. Devidamente justificada a causa transexual e travesti deu-se início na Europa e América do Norte com maior atuação a partir da década de 70 de 80. Os movimentos em prol de políticas públicas e reconhecimento social traçaram as atuais conquistas legislativas. As organizações transexuais fundadas no final dos anos 1970 e 1980 foram mais focadas no apoio pessoal e socialização do que em protesto e ativismo militante. Porém, desde a década de 1990, particularmente, a organização política das comunidades transgêneros tem se expandido e diversificado. A proliferação de grupos locais em todo os Estados Unidos levou ao - 52 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 desenvolvimento de diversas organizações nacionais, ao crescimento dos movimentos pelos direitos dos transexuais e pelo fim da violência contra pessoas transgêneros (Beemyn, 2008). (ÁVILA,2010) Tratar de questões ligadas à igualdade de gênero perante a lei é ainda assunto de pouca difusão social. As bases que garantem segundo a constituição brasileira direito a todos em igualdades estão fundamentadas no Art.5° da Lei. Considerando o Art.5° da Constituição Federal que estabelece a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza- entendendose aqui inclusive as diferenças quanto a sexo, orientação sexual e identidade de gênero. (RESOLUÇÃO 12, 2015) Utilizando de base a própria constituição federal, atualizações e inclusões tem sido feitas para a garantia dos direitos a comunidade trans e travesti. O decreto N. 55.588 de 2010, do Estado de São Paulo, implantado em 15 de Janeiro de 2015, estabelece o respeito e uso do nome social em instituições, o respeito à identidade de gênero nesses locais e a autonomia de solicitação do nome por menores de idade. Estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais - e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais - nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operalização. (RESOLUÇÃO 12, 2015) Os avanços e mudanças na lei têm alcançados grandes resultados, aumentou em 172% o número de participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que solicitaram nome social em 2015, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Medidas contra a violência de gênero também agregam transexuais e travestis. A Lei Maria da Pena, n° 11.340, passou a proteger mulheres transexuais vítimas de violência domésticas. O Tribunal, pautado nos Art.2 - 53 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 e 5 da Lei, entende que a identidade de gênero da mulher trans em nada se distingue da identidade de gênero de uma mulher cis . Declaradas como mulheres, são protegidas pela Lei, destinada a toda e qualquer mulher. Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. [...] Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. (LEI MARIA DA PENHA, 2010 - grifos meus) Outra medida essencial para a garantia da igualdade em questões de identidade de gênero é o projeto de Lei João Nery, que facilita os trâmites legais para a troca de documentos oficiais e reconhecimento legítimo do gênero pretendido. Propõe uma alteração no artigo 58 da Lei 6.015 de 1973, incluindo de maneira clara o respeito à identidade de gênero e a definição do termo. Artigo 1° - Toda pessoa tem direito: I- ao reconhecimento de sua identidade de gênero; - ao livre desenvolvimento de sua pessoa conforme sua identidade de gênero; - a ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, a ser identificada dessa maneira nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal a respeito do/s prenome/s, da imagem e do sexo com que é registrada neles. Artigo 2° - Entende-se por identidade de gênero a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode - 54 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo. (LEI JOÃO W. NERY, 2013) O projeto de lei ainda aguarda aprovação nas instâncias legislativas desde sua criação e perpassa por diversos vetos de caráter conservador ou religioso. Quanto à segurança e proteção contra a transfobia - entende-se transfobia como constrangimento, discriminação ou qualquer caráter de violência a uma pessoa por ser julgada transexual, transgênero ou travesti; não importando se condiz ou não com sua identificação de gênero - as leis que são aplicadas nesses casos são derivadas das políticas e legislações da comunidade LGBT, porém faltam centralizações que de fato tratem trans e travestis por perspectivas diferentes dos gays e lésbicas , entendendo-se a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual, não necessariamente correlatas. Preconceito: A transexualidade ainda está inclusa no CID como transtorno de identidade Por consequência do preconceito que transexuais e travestis sofrem, elas acabam sempre a margem da sociedade porque não conseguem ter acesso a educação, a oportunidades dignas no mercado de trabalho e, portanto, ficam marginalizadas. Essa marginalização as deixam vulneráveis para serem alvos de violências como assédio sexual, assédio moral, agressões verbais, físicas e até a morte. A transfobia é decorrente do preconceito e dos estereótipos que a sociedade desenvolve pela população LGBT, por eles não estarem dentro da normativa heterossexual estabelecida pela sociedade, por infringir diretamente leis de algumas religiões que condenam a prática homossexual e o ato de se travestir pelo sexo oposto e algumas pessoas entenderem a transexualidade como uma doença. - 55 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Transexuais, desde 1993, pela Classificação Internacional de Doenças (CID-10), apresentam um transtorno de Identidade Sexual. Atualmente existem mais 100 organizações e quatro redes internacionais na África, Ásia, Europa, América do Norte e do Sul que pedem a retirada da transexualidade do DSM e do CID. As mobilizações se organizam em torno de cinco pontos: 1) retirada do Transtorno de Identidade de Gênero (TIG) do DSM-V e do CID- 11; 2) retirada da menção de sexo dos documentos oficiais; 3) abolição dos tratamentos de normalização binária para pessoas intersexo; 4) livre acesso aos tratamentos hormonais e às cirurgias (sem a tutela psiquiátrica); e 5) luta contra a transfobia, propiciando a educação e a inserção social e laboral das pessoas transexuais. (BENTO E PELÚCIO, 2012, p.537) No entanto, neste pedido há algo a se considerar. No Brasil, o tratamento hormonal e cirúrgico é garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e com a retirada do Transtorno de Identidade de Gênero do DSM-V e do CID, isso poderia dificultar o acesso de transexuais aos procedimentos necessários para a sua transição. É necessário, portanto, uma legislação que contemple os direitos das transexuais sem feri-las com termos desrespeitosos quanto a sua sexualidade. Em pesquisas realizadas por Sampaio e Coelho em 2012, uma pessoa transexual definiu essa situação, "não é nem um pouco confortável saber que, para poder fazer as cirurgias e ter um alívio quanto ao seu desconforto, terá que ser considerado como um "transtornado; isso é desrespeitoso" (SAMPAIO E COELHO, 2012a, p.980). " Violência: O Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo A ONG Transgender Europe (TGEU), uma rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgêneros, divulgou em novembro de 2015 que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais - 56 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 no mundo. Foram registradas 604 mortes no país entre janeiro de 2008 e março de 2014. Com isso o país é responsável por 40% dos assassinatos de transexuais e travestis no mundo. Segundo o Relatório sobre Violência Homotóbica no Brasil: ano de 2012, o número de denúncias de violência aumentou 166,09% em relação ao ano de 2011 que registrou 1.159 denúncias. Em 2012, foram 3.084 denúncias e 4.851 vítimas. 61,16% das vítimas tinham entre 15 e 29 anos. As violências que ocorrem em casa contabilizaram 38, 63% dos casos, em seguida está a rua, que corresponde a 30,89% dos casos. Em 83,20% dos casos, os ataques possuem teor psicológico, seguidos por casos de discriminação (74,1%) e violência física (32,68%). Em 0,61% dos casos as violações partem da própria polícia militar. O relatório identificou dentro desta relação que 1,47% das vítimas eram travestis e 0,49% transexuais. No entanto, afirma que este número aparentemente pequeno se deve a falta de um entendimento amplo sobre identidade de gênero e orientação sexual que dificultam a identificação da vítima e a crescente invisibilidade de um dos segmentos populacionais mais vulneráveis às violências e homicídios da sociedade brasileira. Além disso, a violência pode vir de qualquer um. O estudo afirma que os vizinhos são responsáveis por 20,6% das violências sofridas, seguido de familiares com 17,72%, empregador 1,4%, ex-companheiros 1,07%, professor 0,77% e empregado 0,5%. Em 2012, a mídia divulgou 511 violações contra a população LGBT, sendo que 310 foram homicídios. Neste levantamento as travestis aparecem como as maiores vítimas de violência homofóbica, representando 51,68% do total, seguidas por gays (36,79%), lésbicas (9,78%), heterossexuais e bissexuais (1,17% e 0,39% respectivamente). Apesar desses altos índices de violência no país, o portal de pornografia RedTube revelou, em fevereiro de 2016, que o Brasil é o que mais procura por pornografia transexual. O site afirma que o tema é o quarto item mais popular no país. O interesse por pornografia envolvendo transexuais é 89% maior que a média mundial. - 57 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Esses números tão contraditórios podem ser explicados pela cultura machista predominante no país, em que as mulheres são objetificadas e sexualizadas o tempo todo. A transfobia, assim como outras manifestações de ódio relativas ao gênero e sexualidade, relaciona-se com o machismo, sendo que a maioria dos casos de violência contra pessoas trans é protagonizada por homens cisgêneros. Tal intolerância dá-se pela não aceitação da expressão do feminino em pessoas que foram designadas ao gênero masculino (no caso de mulheres trans), bem como não se aceita a expressão do masculino em pessoas designadas ao gênero feminino (no caso de homens trans). [...] A intolerância à expressão do feminino em pessoas designadas ao gênero masculino, revela o machismo quando não se aceita que um homem (gênero designado no momento do nascimento em razão da genitália) seja, verdadeiramente, uma mulher (real identidade de gênero da pessoa), uma vez que tal comportamento seria uma afronta à masculinidade em geral, uma espécie de traição do sexo masculino, considerado superior. (ZINI, 2015) Atual contexto do Mercado de Trabalho e Politicas Públicas de Inclusão Social A produção do documentário Transexuais e Travestis: Uma análise da vida (2014) procurou discutir sobre a posição social marginalizada, a qual, transexuais e travestis são impostas a permanecer, devido ao preconceito que sofrem, já discutido anteriormente. Transexuais e travestis sofrem preconceito imediato ao entrarem no mercado de trabalho, o que dificulta sua atuação no mercado formal. Todavia o preconceito contra esse grupo populacional se inicia muito cedo em sua vida, durante todo o período de sua formação, tanto pessoal quanto profissional. A garantia dos direitos de transexuais e travestis é negligenciada a partir do momento que elas decidem assumir sua identidade de gênero. A formação educacional possui grande importância na desconstrução de preconceitos estruturais carregados historicamente através do cenário social. - 58 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Conceitos excludentes são carregados do âmbito familiar e aumentam durante o processo de escolarização. Se não há uma problematização da questão durante o processo de aprendizagem, esses conceitos se estendem para a vida adulta refletindo em casos de violência e violação dos direitos humanos contra essa parcela da população, um dos âmbitos sociais em que as consequências provenientes da discriminação se refletem é o mercado de trabalho. A discriminação dificulta a inclusão e a permanência desses grupos populacionais, levando à marginalização social de transexuais e travestis, uma vez que, elas só conseguem trabalhos informais, sem garantias de direitos trabalhistas e que estão ligados ao estereótipo imposto pelo preconceito social. Hoje, a maioria dos trabalhos destinados à população LGBT são de cargos esporádicos e sem registro em carteira. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), apenas um pequeno percentual da comunidade trans e travesti consegue a inserção no mercado formal. Estima-se que 90% das transexuais e travestis trabalham com prostituição e em salões de beleza. No Estado de São Paulo, de acordo com Wemerson Lima, Conselheiro Estadual do Segmento de Transexuais e Travestis, da Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual, a cada mil pessoas pertencentes à população LGBT, o preconceito atinge o percentual de 90%. O Conselho Estadual dos Direitos da População LGBT busca implantar a inclusão no mercado de trabalho e regularizar as condições trabalhistas através da efetivação de políticas públicas que asseguram os direitos da população LGBT no mercado profissional. O Transcidadania é um projeto da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) em parceria com a Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo (SDTE), desenvolvido na cidade de São Paulo. O programa, voltado para a comunidade trans e travesti, capacita e aciona empresas com cargos na área de atuação das pessoas inscritas na Coordenadoria da Diversidade Sexual (CADS). A primeira - 59 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 edição do Transcidadania foi realizada no primeiro semestre de 2015, e das 100 participantes, apenas 10% desistiram. Na edição de 2016, a Prefeitura ampliou o número de vagas oferecidas para 200 vagas, a bolsa para quem cumprir as 30 horas semanais obrigatórias também sofreu reajuste, passando de R$ 827,40 para R$ 910,00. Programa da Prefeitura de São Paulo destinado a promover os direitos humanos e a cidadania e oferecer condições e trajetórias de recuperação de oportunidades de vida para travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade social. O programa possui como dimensão estruturante a oferta de condições de autonomia financeira, por meio da transferência de renda condicionada à execução de atividades relacionadas à conclusão da escolaridade básica, preparação para o mundo do trabalho e formação profissional, formação cidadã. A essas ações soma-se um exercício de aperfeiçoamento institucional, no que tange à preparação de serviços e equipamentos públicos para atendimento qualificado e humanizado. (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2016) Outro projeto de inserção da população trans e travesti no mercado de trabalho formal é o site TransEmpregos, uma iniciativa não governamental, criada por um grupo de transexuais. De acordo com a descrição no site "essa população ainda se encontra grande parte das vezes desempregada, precisando negar a própria identidade de gênero para encontrar um emprego ou mesmo, sendo obrigadas a trabalhar em empregos informais onde, via de regra, não são valorizadas", para isso a iniciativa funciona como mediador entre o empregador e o público travesti, transexual e crossdresser que estão a procura de emprego, mas não conseguem espaço no mercado devido aos estereótipos e preconceitos presentes na sociedade. Para diminuir o preconceito e assegurar o cumprimento dos direitos da população LGBT, o Escritório Brasileiro da Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou o guia da Promoção dos Direitos Humanos as Pessoas LGBT no Mundo do Trabalho. O manual apresenta casos e sugestões de ações inspiradas em histórias reais, e tem como objetivo - 60 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 promover a igualdade de oportunidades e de tratamento no âmbito trabalhista. Um trabalho decente é direito de todos os trabalhadores e trabalhadoras, bem como daqueles ou daquelas que estão em busca de trabalho, representando a garantia de uma atividade laboral em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana. (GUIA DA PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS AS PESSOAS LGBT NO MUNDO DO TRABALHO, 2014) Um dos apontamentos trazidos pelo guia é a obrigação da empresa de criar politicas de não discriminação que sejam explicitadas em suas normas de trabalho. Tal compromisso que já é previsto nas normas que regem as condutas empresariais na legislação brasileira e na legislação internacional de direitos humanos. Art. 1 - Para os fins da presente convenção o termo "discriminação" compreende: a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados. [..] Art. 2 - Qualquer Membro para o qual a presente convenção se encontre em vigor compromete-se a - 61 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais a) b) c) d) e) f) 2016 formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria. Art. 3 - Qualquer Membro para o qual a presente convenção se encontre em vigor deve por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais: esforçar-se por obter a colaboração das organizações de empregadores e trabalhadores e de outros organismos apropriados, com o fim de favorecer a aceitação e aplicação desta política; promulgar leis e encorajar os programas de educação próprios a assegurar esta aceitação e esta aplicação; revogar todas as disposições legislativas e modificar todas as disposições ou práticas administrativas que sejam incompatíveis com a referida política; seguir a referida política no que diz respeito a empregos dependentes do controle direto de uma autoridade nacional; assegurar a aplicação da referida política nas atividades dos serviços de orientação profissional, formação profissional e colocação dependentes do controle de uma autoridade nacional; indicar, nos seus relatórios anuais sobre a aplicação da convenção, as medidas tomadas em conformidade com esta política e os resultados obtidos. (DISCRIMINAÇÃO EM MATÉRIA DE EMPREGO E OCUPAÇÃO, CONVENÇÃO N.111) - 62 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Apesar do desenvolvimento de medidas públicas de inclusão de transexuais e travestis na sociedade, os dados apurados apontam que Brasil ainda está distante do ideal de políticas públicas efetivas de inclusão e informação da população a respeito da identidade de gênero. Conclusão A transfobia ainda é o maior obstáculo na luta transexual e travesti. As discussões sobre gênero estão cada vez mais presentes na sociedade, mas ainda é preciso avançar muito para romper com a discriminação. É necessário ressaltar a importância dos movimentos sociais e ativistas que lutam pelos direitos da comunidade trans e travestis. O pressionamento da população trans e travestis diante dos órgãos públicos já lhe garantiram alguns avanços na conquista por direitos básicos, que são assegurados a todos os cidadãos pela normativa internacional dos direitos humanos, mas que em prática não são efetivados quando aplicados a grupos marginalizados. Apesar dos direitos civis conquistados pelas trans e travestis, como, por exemplo, o direito de optar por um nome social, muito ainda precisa ser feito em relação à legislação brasileira, para garantir a segurança e o bemestar dessa parcela da sociedade. Medidas públicas de inclusão de transexuais e -travestis na sociedade estão sendo desenvolvidas, podemos observar resultados positivos provenientes dos programas do governo de incentivo à inclusão da população trans e travestis no mercado de trabalho. Todavia, os dados apurados durante a produção do trabalho apontam que a falta de informação da população e até mesmo de órgãos do Estado a respeito da questão da identidade de gênero e a diferenciação entre está e a orientação sexual ainda é um problema agravante para o reconhecimento da comunidade trans e travestis. Referências bibliográficas - 63 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 ANAIS DA CONFERENCIA NACIONAL GAYS, LÉSBICAS, BISEXUAIS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS - GLBT. 2008. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cncdlgbt/conferencias/anais-1a-conferencia-nacional-lgbt-2>. Acessado em: 25/02/2016. ARILHA, M.; LAPA, T.S.; PISANESCHI, T.C. (orgs.). Transexualidade, travestilidade e direito à Saúde. São Paulo, Oficina Editorial, 2010. Disponível em: <http://www.ccr.org.br/uploads/ciclodedebates/volume 3 Transexualidade travestilidade e direito a saude.pdf>. Acessado em: 25/02/2016. ÁVILA, S. 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Assim, padrinhos e madrinhas ‘batizavam’ as crianças. Desta forma, alguns recebiam um nome que para outros virava sobrenome. Trata-se (...) de vivenciar a experiência imediata da dificuldade de pretender escrever uma ‘história da memória’, objetivo que se furta constantemente a toda definição simples e clara. (ROUSSO, 2000, p. 93) Assim, começa a trajetória da família Cosmo, conhecida como Baté, no distrito de Tibiriçá. Trata-se de um local com cerca de mil habitantes, distante 20 km da cidade de Bauru. O patriarca José Cosmo conta que o nome do padrinho era ‘Cosminho’, um cearense por quem o pai tinha muito apreço. Por que Baté? Um dos irmãos, ao longo do trajeto até chegar a Bauru, era beque central no time da cidade de Taubaté. A contenda esportiva levou a todos a conhecê-lo como Baté. - 66 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O presente artigo trata de contar um pouco desta história, colhida em entrevistas e relatada via memória oral. O argumento em favor de uma entrevista completamente livre em seu fluir fica mais forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações ou evidência, que valham por si mesmas, mas sim fazer um registro ‘subjetivo’ de como um homem, ou uma mulher, olha pra trás e enxerga a própria vida, em sua totalidade, ou em uma de suas partes. (THOMPSON, 1988, p. 258) Irmão de 6 e nascido em Borebi no dia 2/10/1928, Seu Baté foi registrado em Bauru 20 dias depois, por um baiano, amigo do pai que ‘sabia ler um pouco’. Conheceu Tibiriçá em 1941, quando fazia trabalhos braçais. Em 18/02/58 mudou-se para Val de Palma já com 7 filhos: 5 mulheres e 2 homens. Comprou três terrenos, medindo 36x44m2, e se estabeleceu em Tibiriçá quando nasceu Ana Paula. Depois de se aposentar na ferrovia em 1980, decidiu reviver algumas tradições ancestrais de festas, agraciamentos e carnaval. Cabe citar a pesquisadora Ecléa Bosi, quando diz que: A memória dos velhos desdobra e alarga de tal maneira os horizontes da cultura que faz crescer junto com ela o pesquisador e a sociedade em que se insere. (BOSI, 2014, p.26) Atores e atrizes rede em cena: a festa de Santo Antônio e a medalha ‘Zumbi dos Palmares’ ‘Sacerdote ergue a taça Convocando toda a massa Neste evento que congraça Gente de todas as raças Numa mesma emoção Esta Kizomba é nossa constituição.’ - 67 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 (VILA, 1988.) Bruno Latour propõe a Teoria do Ator-Rede (T.A.R.), do inglês, Actor Network Theory (A.N.T.). Pesquisas que partem deste princípio é caminhar por caminhos alternativos. A T.A.R. é considerada mais como um método do que como uma teoria. Trata-se de uma forma de estudar as relações entre o ser humano e os acontecimentos, objetos e materiais com os quais interage em constante movimento e modificação. As redes são o resultado de relações, interações e trocas de experiências. Segundo Latour, o ator é um alvo móvel de um enxame de entidades que se fundem sobre ele. O que fazer do ator-rede? ‘Interlúdio sob a forma de um diálogo’ (Latour, 2006) (...) nesta abordagem não é o pesquisador que estabelece os aspectos éticos envolvidos na investigação - quem ‘saberia’ são os atores envolvidos, eles seriam os ‘experts’, não o pesquisador. (ARENDT, 2008, p.1) Agrega-se ainda, como metodologia de pesquisa, os princípios da cartografia, tal como propostos por Suely Rolnik. (...) o cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só escritas e nem só teóricas. (ROLNIK, 1989, p.39) A bisavó de Seu Baté foi ama de leite e casou com o bisavô português. Chegaram até São Joaquim da Fortaleza que era maior que Bauru. Cabe lembrar que o crescimento e desenvolvimento de Bauru se deram pelo fato de ter sido o entroncamento ferroviário da Região. Os avôs e bisavôs agradeciam a libertação da escravatura e, como passaram fome, também o alimento no dia 13 de maio, quando tio Benedito levava o santo na procissão. A tia Lola fazia um almoço para todos e ‘vinha chegando gente’. A devoção por São Benedito era também considerando que foi um santo que sofreu e lutou. Seu Baté conta que em uma ocasião, o pai estava - 68 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 devendo dinheiro ao dono da fazenda na qual trabalhava. Um amigo, Jaime, recomendou que fugisse. O pai pediu então ajuda para São Benedito e atribui a este o fato de ter conseguido pagar a dívida honestamente sem fugir. Trabalharam duro, de pé no chão, com calças e camisas feitas com saco de farinha de trigo. Na fazenda tinha uma vaca chamada Rosa que estava com febre ‘ftosa’ (aftosa) que o patrão mandou sacrificar. Como não tinham o que comer, tiraram o couro da vaca e deixaram a carne salgar e secar para comer a carne. A vida de Dona Irene também não foi diferente. Pegavam sal para temperar a comida já ‘lambido’ pelos bois. Não tinham arroz e comiam amendoim cozido e moído. Diz: ‘Hoje a vida tá boa. Temos geladeira, fogão, televisão....” Não entende como netos escolhem comida. Embora se digam católicos fervorosos, dizem que o pai atravessou o Rio São Francisco numa jangada de madeira, fazendo oferendas para o Caboclo das Águas. Mantém o almoço devotado para São Benedito, no dia de Santo Antônio, ao qual comparecem cerca de 800 pessoas, quando levantam o mastro e cantam o terço. O almoço é feito pelas mulheres mais velhas. No dia 20 de novembro, instituíram uma medalha. Inicialmente era destinada a incentivar os membros da família que obtinham conquistas nos estudos. Faziam desfiles e batiam palmas. Ao longo do tempo, a medalha passou a se chamar ‘Zumbi dos Palmares’ e é entregue a todos que comparecem na festividade. Todos os que ali estão são considerados heróis e a motivação é a de lutar contra o preconceito racial. Contam as estórias com alegria e tranqüilidade, sem qualquer resquício de amargura. São estórias lembradas a partir de memória oral, pois o casal Baté foi alfabetizado já adulto. - 69 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Brilha estrela no céu: ‘Vai quem quer’ no Sambódromo de Bauru ‘Vai passar nesta avenida um samba popular (...).’ (BUARQUE, 1984.) Em 1982 a família Baté fundou o ‘Bloco de Rua Vai quem Quer’ que desfilava nas ruas de Tibiriçá. O primeiro ‘carro alegórico’ era um caminhão e as fantasias feitas com folha de bananeira. Os instrumentos eram latas. Chegaram a reunir 400 pessoas. Bauru tem o segundo sambódromo construído em 1986 no Brasil, logo após o do Rio de Janeiro. Porém em 2000 os desfiles foram interrompidos, tendo sido retomados em 2010. Naquele ano a comunidade de Tibiriçá foi convidada a desfilar no espaço. Fundaram então o ‘Bloco Estrela do Samba de Tibiriçá’. Nas cores preto, amarelo, azul e vermelho, aceitaram o desafio. Segundo Seu Baté e sua filha Dulce (presidente do Bloco) pretenderam levar pra ‘avenida’ tradição, cultura e amizade. Também tem a intenção de apresentar a singularidade da considerada ‘zona rural’. Em 2016 o enredo contou a história do Rio Batalha que abastece 80% de Bauru e Região. Enredo, fantasias e samba são decididos em coletivo. Não tem a figura do carnavalesco e nem compositores profissionais. Foram pesquisar a história e, junto aos barqueiros que fazem a descida do Rio e em conjunto com a ONG Pró Batalha que atue pela despoluição decidiram o foco na ‘Educação para Preservação’. Foram feitos 5 (cinco) ensaios na rua em frente da casa da família, reunindo cerca de 300 pessoas, - 70 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Imagem 1: Seu Baté no Carnaval 2016. Foto: Lucas Melara. - 71 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Imagem 2: Dona Irene no Carnaval 2016. Foto: Lucas Melara. - 72 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Imagem 3: Ala Piratas do Rio Batalha, composta pelos barqueiros e familiares, no Carnaval 2016. Foto: Lucas Melara. O ‘espírito’ ainda é o do ‘Vai quem quer’. As irmãs Rose e Ana Paula Cosmo são as ‘puxadoras’ do samba e Seu Baté (88 anos) e Dona Irene (78 anos) são os destaques do carro abre-alas. Em todas as alas tem membros da família. Cada um dos integrantes decide e faz as fantasias. A maior ala do ‘Estrela do Samba de Tibiriçá’ veste camisetas e se chama ‘Vai quem Quer’. Os primos Zuza e Antônio Carlos, que foram membros de uma das mais antigas agremiações de Bauru (Camisa 10), fazem eventos e vão comprando instrumentos e são responsáveis por produzir as camisetas. Todas as contas são transparentes. Consideram-se desorganizados, mas a idéia é a de se divertir. Ao final de cada ensaio servem uma sopa gratuitamente para todos os presentes. Imagem 4: Rose ‘puxando’ o samba. Foto: Lucas Melara. Breves considerações acerca de coletivo, espaço, etnia e identidade - 73 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Neste primeiro momento os elementos considerados são: lugar, espaço, território e os atores e atrizes-rede. Bruno Latour propõe não considerar o que está estabelecido previamente, considerando as incertezas e os desafios e questões que surgem para os quais, não necessariamente – ou talvez não tão facilmente – possuam respostas imediatas. Como desenrolar as controvérsias numerosas que advém das associações, sem considerar o social como um domínio específico? Como documentar os meios que permitem aos atores a estabilização das controvérsias? Quais seriam os procedimentos de associação do social – não como forma de sociedade – mas, de um COLETIVO? Inicialmente, é preciso estabelecer quais as conexões que promovem uma interação local relacionadas aos lugares, tempos e actantes a partir das quais um local específico possa ser posto em ação. Compreender o conceito de dimensões, definir noções a serem revistas não tratará do espaço social de forma substancial, e sim propõe uma reflexão referente ao fluido social e a construção de pontos por onde passarão as formigas para que possam caminhar sem interferência em seus deslocamentos. Cabe ressaltar o valor espacial da etnicidade como importante para afirmação de identidade do grupo. Também, a partir da apreensão do espaço que o grupo estabelece regras e estratégias de preservação da mesma. O aspecto espacial é fundamental Muniz Sodré aponta que a dimensão espacial, ou a lógica do espaço, é básica em relação à estrutura dinâmica da cultura. Colocam-se em cena articulações sócio-culturais como categorias dinâmicas que as transformem em receptáculo de significações. Apresentase uma dimensão que conduz à produção de um pensamento de que o espaço torne-se vetor com efeitos próprios, capas de afetar condições para que ações humanas sejam eficazes (SODRÉ, 1988, p.15). Neste sentido, destaca El Hajji: - 74 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Dentre essas ações, figura a própria organização sócio,-cultural da comunidade e, portanto, a manutenção da cultura do grupo ou a preservação da sua identidade étnica. ‘O espaço’, como destaca Maffesoli, ‘molda coercivamente os hábitos e costumes do dia-a-dia que, por sua vez, permitem a estruturação comunitária’. (EL HAJJI, 2002, p. 177) A presente pesquisa encontra-se ainda em fase inicial prescindindo ainda de entrevistas e encontros a fim de ampliar a proposta etnográfica e cartográfica. Fica uma certeza: os Baté são apaixonantes, REFERÊNCIAS ARENDT, Ronald. 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As questões de identidade, cultura nacional e diversidade na TV paga no contexto da Globalização Ana Heloiza Vita Pessotto - UNESP Introdução O serviço de TV paga foi introduzido no Brasil inicialmente como forma tecnológica de melhorar o sinal das emissoras de radiodifusão por meio de cabos e outras tecnologias, em meados da década de 1950. Foi apenas na década de 1980, com um hiato de mais ou menos 30 anos, que as preocupações com conteúdo diferenciado entram em pauta, com empresas que observaram a potencialidade do serviço para a ampliação de programação para além da exibida na TV aberta, momento em que inicia o bombardeamento dos enlatados americanos e quando os brasileiros tem acesso aos novos formatos classicamente americanos como as sitcoms (comédias do cotidiano), modelo elaborada com a produção de Seinfield (1989-1998)1, a série sobre "nada", que se torna influência tanto para a TV fechada como para a TV aberta no Brasil. A regulamentação ao meio surgiu em 1995 por meio de pressão da sociedade civil e o texto concentrou seu discurso nas questões tecnológica, com pequenas passagens sobre o conteúdo a ser exibido. Um destaque neste 1 Série sobre o cotidiano do humorista de stand-up comedy, Jerry Seinfield. - 77 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 parâmetro foi a normatização dos canais e conteúdos universitários, comunitários e governamentais (nos âmbitos municipal, estadual e federal), com a obrigatoriedade de canais destinados a esses objetivos com fins informativos e educativos. A norma se manteve estagnada mesmo após mudanças consideráveis da economia, política e da sociedade brasileira, assim como também das tecnologias e a relação dos espectadores com elas e com os conteúdos exibidos. Desde 1995 até os dias atuais, o número de assinantes do serviço foi extremamente ampliado, principalmente com a ascensão das classes C e D no quesito aquisição econômica, além dos projetos de expansão dos sinais das empresas que projetaram pacotes a preços mais acessíveis, principalmente por meio de inclusão de TV paga, internet, telefonia fixa e móvel em um mesmo pacote. Segundo dados da ABTA (Associação Brasileira de Televisão por Assinatura), no terceiro trimestre do ano de 2014 o serviço de TV paga alcançava quase 20 milhões de lares. O ambiente regulatório, histórico, social, político e econômico muito colaborou para o desenvolvimento do perfil de programação do serviço de TV paga. No início do boom do serviço, que se deu na década de 90, principalmente após a Lei do Cabo, 1995, a programação era centrada nos conteúdos importados, levando em conta o momento econômico de paridade cambial entre o real e o dólar. Adquirir programações prontas a preços acessíveis se tornou uma opção vantajosa para o setor no Brasil, principalmente por ter operadoras que pertenciam a grupos empresarias que não necessariamente tinham serviços de comunicação ou eram vinculados a esse setor, panorama que foi resultado da facilidade e falta de restrições para as primeiras concessões do serviço. Os primeiros anos de conteúdo se constituíram de tal forma: a exibição dos canais abertos com mais qualidade de sinal, canais de filmes e séries internacionais, canais de jornalismo e esportes internacionais. Até 2001 a Globosat era a única que desenvolvia canais nacionais (POSSEBON, 2009,p.159). - 78 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Foi a partir do arranjo destes fatores, incluindo o fator da globalização, que a TV paga teve seu perfil inicial traçado, perfil que viria a sofrer modificações conforme as transformações dos mesmos setores que a definiram, mas os resquícios dos primórdios do serviço são ainda observados não apenas nas grades por meio de programas internacionais, como na influência desse modelo na construção das produções nacionais, seja no formato, no ritmo da narrativa, na estética ou até mesmo nos títulos dos programas. Com a globalização e as transformações tecnológicas, os meios digitais se tornaram cada vez mais importantes como meios de acesso à informação, à cultura e à arte. As políticas públicas tem se direcionado neste sentido para democratizar o acesso aos conteúdos e aos meios de exibição. A Lei 12.485/11, a Lei da TV paga, destina parte de seu texto a normas que impõe contas de exibição de conteúdo brasileiro e conteúdo brasileiro independente, canais brasileiros de espaço qualificado - que devem exibir doze horas de conteúdo brasileiro independente por dia - e tem estabelece que o setor deve ser regido sob os princípios: I- liberdade de expressão e de acesso à informação; II - promoção da diversidade cultural e das fontes de informação, produção e programação; III - promoção da língua portuguesa e da cultura brasileira; IV- estímulo à produção independente e regional; (BRASIL, LEI 12.485/11, 2011) No contexto de mundo globalizado, alguns desses elementos se tornam complexos, como a ideia de cultura brasileira que se relaciona à concepção de identidade nacional, a diversidade e o acesso, ao considerar principalmente o modelo de negócios da TV paga e as influências da cultura transnacional, cada vez mais vívida nos meios digitais (CANCLINI, 1999, p.63-64). - 79 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 É preciso a compreensão da nova cultura nacional e das novas identidades no mundo globalizado e a ampliação de cultura, que não pode ser mais focada apenas nas artes cultas ou no folclore, o que também a necessidade da desconstrução dos modelos pré-concebidos de identidades específicas dentro do país e a sua validação como cultura. Este artigo analisa esta situação da cultura nacional, identidade e diversidade dentro do setor de TV paga e o papel da nova lei. O quadro teórico é constituído com base nos legados de autores Néstor García Canclini, Jesús Martín-Barbero, Raymond Williams no que rege a metodologia com base na critica cultural, com ênfase para suas discussões sobre cultura e identidade, de Stuart Hall. A invasão dos "enlatados": A criação de um perfil O sistema de televisão brasileiro por radiodifusão contou a presença massiva dos seriados norte-americanos principalmente como forma de preencher a grade de programação de um sistema ainda infante e em busca de experiência e capacidade técnica de desenvolver uma programação independente. O modelo seriado foi desenvolvido nos EUA no final da década de 1950 e seu sucesso impulsionou a importação dos produtos midiáticos deste modelo para vários países, sendo o Brasil um deles (SILVA, 2004). Com a evolução tecnológica e o processo de legitimação das emissoras no país, esse fenômeno foi freado, principalmente com a ascensão da rede Globo e a sua produção nacional. Alguns seriados continuaram a ser exibidos na TV aberta, mas sua presença não era mais tão essencial para a manutenção do serviço como no início da TV e poucos eram os casos em que eram veiculados em horários nobres. A TV aberta estava se "emancipando" das séries importadas e criando esté tica própria, momento em que aumentavam os investimentos e o crescia o número de novelas no país. Contudo, os resquícios do modelo norte- 80 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 americano ainda permeariam a radiodifusão por meio de séries nacionais que imitavam o modelo seriado. A chegada da TV por assinatura, com a expansão dos canais, foi o restart do fenômeno "enlatados", mas naquele momento com dimensões mais amplas. Como pode se concluir, o ambiente regulatório se mostrou favorável a abertura para os conteúdos importados no serviço de TV por assinatura, e os contextos sociais, políticos e econômicos não foram por uma direção diferente. Politicamente, a redemocratização do país exaltava a liberdade dos acessos à informação. Ao mesmo tempo em que as vantagens da importação eram tentadoras, os perigos rondavam o setor não apenas político, mas econômico e cultural também. A TV por assinatura era uma opção que ampliava o acesso e as fontes de informação e entretenimento, opção que simultaneamente mudaria o perfil da TV para os brasileiros. Fernando Henrique Cardoso, ainda como Ministro da Fazenda do governo Collor, projetou o Plano Real, que propunha uma nova moeda para o Brasil e com um câmbio pareado ao dólar. O plano real foi fundamental para o futuro da TV por assinatura, que teria ali um grande impulso. O processo foi facilitado, a paridade do real com o dólar deixava as tecnologias mais próximas do que nunca, os investimentos rendiam e o sistema passou por um processo de implantação e consolidação dentro do país. Mas como produzir tanto conteúdo para esses canais, para todas essas possibilidades que se abriam? Não eram apenas as tecnologias que valiam o investimento. O pacote de conteúdos importados tinha muitas vantagens: produtos prontos, sucesso garantido (conteúdos já bem sucedidos nos EUA e no resto do mundo), produtos famosos que muitas vezes dispensavam publicidade e atrairiam públicos específicos ao serviço de TV paga, baseado na segmentação. Resumindo: um gasto justo em troca de pouco trabalho e sucesso nos números de assinatura. Foi elaborado um serviço recheado de "enlatados" americanos, que tinham entre eles principalmente as sitcoms (séries de situação), as séries policiais e as séries de drama médicos. Os seriados agradaram ao público - 81 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 brasileiro, que viu a TV por assinatura como uma opção para a radiodifusão. Acostumados com a ficção televisiva no modelo telenovela, com capítulos diários, com uma mesma narrativa de ritmo lento e prolongado, as séries americanas inovaram com episódios semanais, com duração entre 24 e 45 minutos, em sua maioria com certa independência narrativa entre um episódio e outro. As séries americanas criaram um novo patamar de narrativa, estética e qualidade a ser alcançado pelas produções. Esse conceito é o que equivaleria nesse processo ao elemento residual de todo essa experiência. Williams estabelece três parâmetros: o arcaico, o residual e o emergente. As referências do modelo norte-americano são os elementos residuais dessa experiência da invasão dos enlatados. Identidade, cultura nacional, cultura transnacional e culturas híbridas Por mais que concentrada e elitista, a invasão dos "enlatados" na TV paga favoreceu a novamente a entrada desse conteúdo na TV aberta, visto seu sucesso no serviço por assinatura. Os brasileiros agora estavam cada vez mais familiarizados com as séries norte-americanas, a língua inglesa, as legendas na barra inferior das telas e a cultura e os costumes de outra realidade. Seria ingenuidade analisar tal processo sem levar em consideração conceitos essenciais dentro das relações de poder do mundo capitalista. Assistir ao conteúdo internacional e repudiar muitas vezes a produção nacional trata-se de um fenômeno perigoso e corriqueiro, pelo qual o cinema brasileiro passou durante décadas e do qual está há anos tentando se desvencilhar. Bernardet (1979) realiza uma análise profunda sobre o Cinema Brasileiro em sua obra de mesmo nome. o autor salienta elementos como a qualidade dos sistemas de som das salas de cinema, o costume (programado, condicionamento) dos espectadores de "ler" ao filme e não assisti-lo, o que tornaria os brasileiros verdadeiros escravos da legenda, que a retira atenção de outros elementos essenciais no sincretismo do audiovisual. Criou-se um ideal de qualidade e estética, baseado no modelo norte-americano, com o - 82 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 qual o espectador se acostumou e estabeleceu como sendo o ideal a ser alcançado pelas produções brasileiras, qualquer coisa diferente da idealizada é, muitas vezes, desconsiderada. Em tempos de globalização, com os conceitos de tempo-espaço sendo desconstruídos, a cultura nacional e a identidade tem sofrido transformações e não são mais como eram em suas bases sólidas e fixas. Martín-Barbero (2009, p.106) direciona suas preocupações à este novo esquema de organização política e econômica e como influenciam o âmbito cultural , principalmente dos países economicamente mais frágeis. A questão da enculturação das massas para favorecer o fluxo da globalização, a homogeneização dos idiomas em um, o fim das diferenças culturais regionais, a construção de uma cultura nacional que se dá como um passo para a sua própria negação e a assimilação de uma cultura supranacional ou transnacional. Esta, contudo, não surge do nada, e sim tem como base uma cultura nacional de uma região que já tem poder político e econômico legitimados. No caso, a cultura norte-americana e as referências ao modelo eurocêntrico ainda se posiciona com mais firmeza por causa de sua legitimação. A questão da cultura nacional esteve, por muitos anos, diretamente vinculada à ideia de identidade. Lacan defendia que o estabelecimento da identidade é uma dialética entre a inclusão e a exclusã o. O "eu" se estabelece ao criar elos e se relacionar com grupo ao qual pertence, com o qual compartilha a cultura, e o "eu" só pode se desenhado em um quadro em que existe o "outro", o qual o "eu" não é. Os negros só se viram como negros quando tiveram co ntato com os brancos, antes eles eram apenas homens, divididos por meio de outras classificações, pertencentes a grupos específicos, com base em os elementos hierárquicos e de crença dentro da sua própria sociedade (Shohat & Stam, 2006, p. 46). Com a evolução, a ideia de identidade deixa de ser algo fixo e nato e é compreendida como uma contínua formação influenciada por instâncias internas e externas. A identidade é uma construção simbólica, a identidade nacional, a forma como os indivíduos criam a relação de pertença a uma nação, seria, portanto, - 83 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 compatível à ideia de "comunidade imaginada", conceito de Benedict Anderson (1983) citado e analisado por Hall na obra Identidade Cultural na Pós-modernidade (1999). A identidade nacional cria sentidos com os quais o povo deve se conectar por meio do embasamento em elementos compartilhados como a tradição, as memórias, o espaço, são criadas noções com as quais os indivíduos possam se identificar. A cultura nacional é um dos elementos de identificação de um povo. Ao se desvencilhar da cultura nacional e dar lugar à cultura transnacional de forma incontestável gera a crise de identidade. Contudo, a apropriação dos conteúdos, produtos e culturas transnacionais - com destaque para os Estados Unidos, que usa seu poder econômico como forma de reforçar sua hegemonia também cultural não se dá de forma completa e inalterada. O conceito de hegemonia de Gramsci interpreta o processo como uma questão de relações de poder e acordos. Não haveria, portanto, um fenômeno de alienação imposto e que substituiu a cultural local. Para o autor, o poder hegemônico negocia, faz concessões e só assim ele tem a possibilidade de ser legitimado. Esse posicionamento permite um olhar mais complexo para a dinâmica cultural e permite compreender que a cultura produzida pelas indústrias midiáticas também é um fórum de apropriação das aspirações populares (BRITTOS, 2003, p.5). A própria incorporação incompleta dos preceitos católicos nas religiões africanas pelos escravos trazidos para a América é um indício da ausência dessa alienação e esvaziamento completo das marcas identitárias. Há uma mudança, mas não uma assimilação "cega", mesmo quando imposta, há a resistência e é esse jogo de equilíbrio que constrói as novas formulações das culturas híbridas e miscigenadas (ORTIZ, 1994, p20). Dentro deste panorama, Néstor García Canclini (1999) defende a concepção de culturas híbridas, em que se torna inviável o estabelecimento das ideias de pureza cultural e identidade homogênea. "Entendo por hibridização processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de formas separadas, se combinam para gerar novas - 84 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 estruturas, objetos e práticas." (CANCLINI, 2008, p.XIX). A hibridização é um processo dinâmico e criativo em que inter-relação entre as culturas as transformam e criam algo novo. Um importante tópico a ser abordado dentro dessa concepção das culturas híbridas relacionadas à globalização e hegemonia são assimetrias de poder e prestígio. O fato da cultura hegemônica se constituir de uma relação com a cultura nacional e popular é um fato que Não impede que a ação do massivo, seja por sua vez sentida como uma operação de despossessão cultural [...] Assim se encontra de forma esplêndida o funcionamento da hegemonia na indústria cultural: o encaminhamento de um dispositivo de reconhecimento e da operação dessa expropriação." (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.115-116). A entrada da forte influência externa à cultura local a transforma, principalmente por se tratar a cultura de processo dinâmico. O aumento do convívio com outros hábitos culturais influenciam as vivências de cada região. Pode-se comprovar tal afirmação por meio de vários marcos históricos como as invasões de territórios na Europa, a "descoberta" da África e da América EM QUE estabeleciam-se culturas miscigenadas, como o próprio povo brasileiro, transformando o Brasil em espaço de miscigenação (Ortiz, 1994, p.19), da soma do índio com o negro e o branco. A questão das distintas raças no Brasil foi um entrave ao estabelecimento de uma cultura e identidade nacional, foi portanto, elaborada a imagem do mestiço. A temática da mestiçagem é, neste sentido, real e simbólica, concretamente se refere às condições sociais e históricas da amálgama étnica que transcorre no Brasil, simbolicamente conota as aspirações nacionalistas que se ligam à construção de uma nação brasileira. (ORTIZ, 1994, p.21). As potências hegemônicas utilizam da cultura como forma de "integrar' o globo. Mas nessa integração há o perigo para o qual Martín- - 85 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Barbero desperta sua atenção: a despossessão cultural e a construção de uma cultura transnacional no lugar das culturas regionais. A negação da cultura popular regionalizada está diretamente ligada com um procedimento de "apagamento dos sinais de identidade" e a criação de novos dispositivos de identificação para controlar as massas. A relação de identidade e identidade cultural se encontra nesse momento. Esse processo de "despossessão" cultural, que Martín-Barbero pressupõe, instiga o surgimento da dita "crise" cultural, que consequentemente esbarra em uma crise de identidade. São seus hábitos, seus grupos, seus conhecimentos específicos, sua arte que permitem a identificação de cada um como indivíduo pertencente a certo grupo. O esvaziamento da relação da cultura com a identidade gera a crise existencial em produtos culturais com os quais não se relaciona mais. Os elementos de identificação são simbólicos e compartilhados, a linguagem, a vestimenta, os hábitos, os locais, a região, os modos de vida, os hábitos de consumo e relação. "O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, viável e problemático."(HALL, 1999, p. 12). A identidade está ligada ao espaço-tempo, e a desconstrução desse conceito pela globalização leva a identidade a uma crise, principalmente a identidade nacional, que é o que une as pessoas em um elo pautado na origem e na sua cultura. As culturas nacionais são compostas não apenas por instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso -um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao produzir sentido sobre "a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o passado e imagens dela são construídas. Não há uma unanimidade de opiniões quanto à questão que envolve a identidade nacional e a identidade global. Enquanto alguns defendem a identidade - 86 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 globalizada e não consideram esse processo como articulador dos apagamentos da identidade nacional, argumentando que o global incita o fortalecimento do regional e permite uma "liberdade" deslocada e flutuante, também ocasionando uma mudança de identidade nacional para as identidades politizadas, que se baseiam em grupos, em lutas por causas e grupos como o feminismo e o movimento Black, elos que não se estabelecem dentro da concepção espaço-tempo, e não o oposto; outros formulam seus argumentos com base na diferença da força dos vetores de poder, considerando a defesa anterior como enraizado no conceito teórico da globalização. Para analisar a dita "crise" de identidade e as questões do nacional dentro do panorama da globalização, é preciso compreender a força de cada um dentro dos arranjos culturais. A cultura popular regionalizada tem claramente ganho um espaço, contudo, o raio de alcance é curto e seu poder de influência também, considerando a presença de seus conteúdos nos meios de comunicação e nos circuitos artísticos de mais destaque, as identidades nacionais acabam tendo um grande risco de se confundirem apenas com tradições e memórias, embrenhando para a área do folclore, enquanto as identidades globais são ativadas no cotidiano. As identidades nacionais se desenvolvem por meio de compartilhamentos, não necessariamente de conteúdos e modelos culturais unificados, mas de formas de incorporação das distintas influências. Outra dificuldade descrita como entrave da existência e da continuidade das identidades nacionais se dá no âmbito da natureza muitas vezes unificadora e massiva da cultura nacional para que haja um compartilhamento, mas o processo deve ser observado por outro prisma. Em pensar as diferenças como sendo o elo entre as diferentes identidades dentro da própria identidade nacional. O Brasil, por sua mestiçagem e vasto espaço geográfico, tem caminhado nesse sentido, de unir uma nação por meio de suas diferenças. As políticas públicas voltadas à produção audiovisual tem mantido um perfil que indica tal deslocamento. A lei 12.485 de setembro de 2011 tem como fundamentos a promoção da cultura nacional e da diversidade, conceitos que - 87 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 parecem polarizados, mas que dentro da dinâmica da cultura podem fazer muito sentido. A Lei 12.485/11 e a Nova TV paga É nesse contexto mundial de globalização, de culturas híbridas e o "medo" da desposseção cultural, que a lei 12.485/11 foi elaborada. Seu texto direcionou ações objetivas para a promoção da cultura nacional, da diversidade cultural e de fontes de produção, produção regional e independente, na tentativa de promover a democracia da comunicação e fortalecer os laços de cultura nacional e de identificação com o público. Estes elementos já constavam como princípios do setor desde a Lei do Cabo de 1995, mas não havia diretrizes de como cumprir os princípios, que são de certa forma subjetivos e podem ser interpretados de diversas formas. O capítulo V Do Conteúdo Brasileiro da Lei 12.485/11, Lei da TV paga (2011) versa sobre as obrigações de veiculação de conteúdo brasileiro nos canais desse serviço. Os canais de espaço qualificado, ou seja, os que exibirem prioritariamente programas que: não são conteúdos religiosos ou políticos, manifestações e eventos esportivos, concursos, publicidade, televendas, infomerciais, jogos eletrônicos, propaganda política obrigatória, conteúdo audiovisual veiculado em horário eleitoral gratuito, conteúdos jornalísticos e programas de auditório ancorados por apresentador (LEI 12.485/2011), deverão ter 3h30 (três horas e trinta minutos) de programação nacional semanal exibida durante o horário nobre, metade dessa cota deverá ser produzida por produtora brasileira independente. A cada três canais de espaço qualificado ofertado no pacote do serviço de acesso condicionado, um deve ser brasileiro de espaço qualificado. A operadora é obrigada a cumprir a porcentagem até um limite de 12 canais brasileiros, sendo considerados canais brasileiros de espaço qualificados os que veicularem 12 horas de conteúdo brasileiro independente, 03 delas no horário nobre. No caso de o - 88 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 pacote ofertado possuir um canal gerado por programadora brasileira com predomínio de produções jornalísticas, "deverá ser ofertado pelo menos um canal adicional de programação com as mesmas características no mesmo pacote ou na modalidade avulsa de programação" (Lei 12.485/2011). Para o cumprimento das cotas obrigatórias muitos produtos audiovisuais brasileiros foram produzidos para a TV paga, contudo entre as produções encontram-se obras sem marcas de identificação nacional e estratégias que não levam em conta os princípios estabelecidos em lei. Esse processo faz com que seja necessário pensar os conceitos de globalização, expropriação cultural, identidade nacional nos produtos audiovisuais veiculados pela TV por assinatura. A ideia do Conteúdo Brasileiro e suas facetas Uma análise superficial, mas que pode trazer grandes respostas e provas do argumento da globalização do conteúdo nacional, encontra-se nos canais de conteúdo nacional, que se tornaram uma obrigatoriedade pela lei da TV paga de 2011. Na classificação canal brasileiro de espaço qualificado estão presentes 21 canais. Dentre os 23, 11 possuem nome estrangeiro. São: PRIME BOX BRAZIL, CENNARIUM TV ,CHEF TV, FASHION TV BRAZIL, FISHTV ,MX TV, TRAVEL BOX BRAZIL, MUSIC BOX BRAZIL, OFF, PLAY TV, SUPERMIX. Três deles tem como nome expressões, podendo ser canais de TV de qualquer outro país, são eles: WOOHOO, TV RÁ TIM BUM!, ZOOMOO BRASIL. Qual o objetivo de canais voltados à veiculação de conteúdos nacionais, que segundo os princípios da TV paga, teriam como intenção a promoção da língua portuguesa e da cultura brasileira, possuírem nomes em línguas estrangeiras ou expressões que não permitem a identificação do canal a sua localidade? O nome do país grafado com "Z" está diretamente ligado à globalização e a busca do canal a se encaixar dentro de uma dinâmica globalizada de conteúdo, em que o poder econômico e político indicou que o inglês é a linguagem mundial. Não há relação do nome com sua raiz, com - 89 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 sua origem. Os nomes são apenas uma análise simples, mas um indício forte da influência da globalização da produção e dos resquícios da influência da invasão dos enlatados no serviço de TV paga nos primórdios do setor. Além dos canais de veiculação de produtos brasileiros a lei também estabelece contas para a exibição de obras nacionais nos canais de espaço qualificado. A obrigatoriedade iniciou em 2011. O gráfico e a tabela abaixo mostram como se moldou a grade de programação da TV paga na comparação entre conteúdo estrangeiro e nacional em 20142. 2 Os dados são da Ancine. A amostra de canais que é base das pesquisas aqui utilizada é constituída de 20 canais, são eles: GNT, Multishow, AXN, Sony, Warner Channel, Universal Channel, Canal Brasil, HBO Family, HBO, HBO Plus, Cinemax, TNT, Max Prime, Telecine Fun, Telecine Premium, Telecine Pipoca, Telecine Touch, Telecine Action, Telecine Cult e Megapix Todos estes estão inclusos no grupo de canais de espaço qualificado, grupo que é obrigado a cumprir as contas impostas pela lei quanto horas de exibição de conteúdo brasileiro, sendo o Canal Brasil o que a lei descreve como canal brasileiro e é portanto deve veicular doze horas de conteúdo nacional independente, três destas no horário nobre e ter a predominância de conteúdos nacionais em sua programação. - 90 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A presença da produção brasileira ainda é muito baixa se comparada a do conteúdo estrangeiro, o que é um empecilho ao processo de identificação com as obras veiculadas pela TV paga. A promoção da cultura nacional, da diversidade cultural e da produção regional e independente se resumem aos poucos canais brasileiros de espaço qualificado e aos 5% de participação nos demais canais. - 91 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 E além de ter de disputar espaço e atenção com as obras estrangeiras, a promoção da cultura nacional e da diversidade cultural tem um conflito constante interno: as próprias produções nacionais. Isto porque muitas das obras brasileiras veiculadas tem uma concepção de narrativa mais globalizada, como a série O Negócio (2012 - ), da HBO, e Quero ter um milhão de amigos (2015), veiculada na Warner Channel e produzida por Mira Filmes, por exemplo. Além de temáticas globalizadas e no caso do "Quero ter [...]", ser uma réplica do seriado estadunidense "The Big Bang Theory" (2007 - ), outra opção escolhida por alguns canais e produtoras para cumprir a obrigatoriedade de conteúdo nacional foi a exibição de longas metragens, elemento que enfraqueceu o ideal da diversidade cultural e fortaleceu os conglomerados de comunicação. Dos 32 filmes mais exibidos na TV paga no ano de 2014 - que são válidos para cumprir as cotas, ou seja foram produzidos até sete anos antes da data de exibição - (dados da Ancine), 15 títulos são de produção ou co-produção da Globo Filmes. Totalizando 616 reprises de filmes relacionados a Globo Filmes no ano de 2014. Sendo o mais reprisado o filme "Minha mãe é uma peça" (2013), exibido 61 vezes nos canais Telecine Fun, Pipoca, Premium e no Megapix. E são 407 exibições de filmes de outras produtoras. Outra estratégia foi adaptar modelos de programas estrangeiro para o Brasil. Mais uma vez uma opção que permanece na discussão entre o nacional e o estrangeiro e a concepção da cultura híbrida. Em meio a uma grande quantidade de programas que não estão muito direcionados à realidade brasileira ou até mesmo mais focados no ideal de narrativas e estéticas globalizadas, o reality show seriado Lucky Ladies (2015), produzido pela Fox, com versão mexicana em que são apresentadas as vidas de roqueiros famosos, mas sob a visão de suas esposas. A versão brasileira traz do original o formato geral e a logo, contudo o conteúdo é todo brasileiro com cara do país. Seis cantoras de funk convivem durante três meses em uma cobertura em Copacabana, tudo com o sonho de produzirem um projeto musical tutoreado com os ensinamentos e direcionamentos da mentora - e famosa funkeira - Tati Quebra Barraco. A cultura do funk e da favela são - 92 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 exaltados no projeto, em que são as "patricinhas" que são questionadas quanto seus talentos e empenho, já que não possuem, o que no programa caracterizavam como, a "essência do funk". Programa em que o morar na favela, o convívio com as diversidades culturais da comunidade e as dificuldades financeiras são partes essenciais da construção do artista no movimento funk. Lucky Ladies foi de extrema importante para compreensão da possibilidade da cultura híbrida sem a desposseção cultural. Foi dado protagonismo à atores antes coadjuvantes, sem destaque. É possível pensar em identidade, uma identidade móvel e constantemente em construção, em pensar em culturas nacionais e não mais no singular e em diversidade cultural na TV paga, é possível uma busca por uma balança mais equilibrada das culturas transnacionais com as culturas nacionais em culturas híbridas em seu conceito de construção e inovação. Contudo, ainda há muito que se discutir quanto a esta questão. Desde a validade das políticas públicas, até uma desconstrução do perfil de consumo audiovisual dos brasileiros. Referências bibliográficas ANCINE. Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual. Rio de Janeiro, 2013. ANCINE. Relatório anual de gestão do Fundo Setorial do Audiovisual. Rio de janeiro, 2014. BERNADET, J.O cinema brasileiro: Propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 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Tradução: Maria Elisa Cevasco, Departamento de Lestras, USP. - 94 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Representação da culinária tradicional no MasterChef Daira Martins Botelho - UNESP Introdução Como produto cultural e uma forma de comunicação importante para a construção das sociedades em toda a História, a culinária tem papel significativo enquanto representante da cultura popular e sua relação com os indivíduos, com a mídia, a economia, o turismo e o entretenimento torna-se a base para compreender de que forma esse elemento atua e se faz presente como patrimônio cultural de extrema relevância. Por isso, a comida é considerada, aqui, como processo comunicacional que atua como veículo para a disseminação de cultura e identidade de um povo, região ou país. Assim como Montanari (2013) entende a comida como cultura, também é possível entender a comida como comunicação, com linguagem própria e que não possui as barreiras do idioma, por exemplo, resultando em uma forma efetiva de comunicação. A transformação da comunicação e da comida são elementos chave para compreender o desenvolvimento deste artigo, que pretende observar de que maneira é possível inserir um processo comunicativo em um veículo de comunicação, neste caso, a televisão. A comida diz muito sobre um povo e o que motivou esta pesquisa é verificar de que maneira a culinária tradicional dos países está representada em um produto pré-formatado, como os programas feitos aos moldes daqueles que são exibidos em âmbito internacional. O formato escolhido para análise é o programa de competição culinária MasterChef, que tem como objetivo encontrar o melhor dos - 95 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 cozinheiros amadores do país. É a representatividade da cultura da alimentação que o artigo pretende verificar. Para isso, serão analisadas as edições do programa criado no Reino Unido em 1990, MasterChef, com destaque para as franquias que foram exibidas na América Latina, nos países: Argentina (2014 / 2015), Brasil (2014 / 2015), Chile (2014 / 2015), Colômbia (2015) e Peru (2011). Diferentemente de um estudo sobre recepção, o foco deste trabalho será verificar de que maneira o programa contempla a culinária tradicional local e / ou regional nas provas às quais submete seus competidores, ou seja, quais e quantas foram as indicações do uso de ingredientes tipicamente brasileiros, bem como pratos que são representativos de cada país. O levantamento dessa questão - e seu desdobramento a partir de uma análise qualitativa - é uma tentativa de mostrar se a culinária local é evidenciada como uma forma de identificação e, até mesmo, disseminação da cultura, em relação à exibição da culinária internacional. Comunicação e culinária Antes do advento da escrita, a oralidade contemplou grande parte da história mundial e pode ser considerada, ainda, como uma das grandes perpetuadoras da cultura do povo. Apesar da falta de registros "concretos", a oralidade foi responsável por trazer costumes e tradições de tempos longínquos e que são reproduzidas até os dias de hoje, seja pela elite ou pelas classes subalternas. Em uma breve retrospectiva dos meios de comunicação no Brasil, encontra-se a chegada do rádio em 1922, do cinema em 1940, juntamente com a disseminação de material impresso (jornais, livros, revistas), além da televisão, que foi trazida para o país na década de 1950 (ORTIZ, 1995). Com isso, mesmo com a chegada tardia dos consagrados meios de comunicação de massa plenamente difundidos em ouros países, a oralidade foi cedendo espaço cada vez mais para os meios de comunicação de massa, que trouxeram consigo a cultura de massa e seus produtos. - 96 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 No entanto, em meio à massificação3, sobreviveu a oralidade e foram criadas outras maneiras de se comunicar utilizadas por aqueles que não estavam inseridos no sistema hegemônico comunicacional vigente. Esse tipo de comunicação formulou-se em torno de si mesma, buscando contar a história, em sua maioria, das classes menos favorecidas, fazendo com que esses sujeitos também se sentissem inseridos na sociedade. Luiz Beltrão (1980; 2004) usou o termo marginalizados para classificar aqueles que estavam fora da hegemonia comunicacional e que, devido a isso, passaram a criar seus próprios canais de comunicação popular. Essa comunicação foi chamada pelo autor de Folkcomunicação. A comunicação dos marginalizados, daqueles que não possuem acesso ou não se sentem representados pela grande mídia massiva, cria seus próprios mecanismos de compartilhamento de informações, contribuindo, também, com a transmissão de elementos importantes dessa cultura do povo. Assim, é possível afirmar que as manifestações dessa cultura popular se configuram em processos comunicacionais essenciais para a construção do presente, resgatando o passado por meio da história oral, adaptando e ressignificando tais práticas de acordo com o contexto local / regional. Nesse contexto as manifestações populares atuam como uma comunicação primeira, pois reiteram a existência de outros tipos de expressão, como as práticas culturais, que podem ser exemplificadas pelas danças, festas, artesanato e a culinária. No processo evolutivo do homem, existem vários fatores - assim como a evolução dos processos comunicativos - capazes de representar a maneira como a sociedade cresceu em termos de civilização, caminhando do tempo das cavernas para o complexo ambiente tal como é conhecido hoje. Componentes importantes e que fizeram com que essa trajetória tivesse muitas alterações contínuas na História são os alimentos. Esses são 3 Hoje constata-se que a massificação não foi tão alienante como apontaram os estudos frankfurtianos, pois o que foi considerado massa não poderia, de maneira nenhuma, ser tratada como tal. No entanto, a produção comunicacional e cultural se valia dessa máxima, mas, concretamente, os receptores não atuaram dessa maneira, tanto que continuaram a existir grupos heterogêneos em toda a sociedade. - 97 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 essenciais para a sobrevivência e a grande mudança que provocaram no processo histórico foi o surgimento da agricultura, que fez com que os sujeitos não precisassem mais viver o nomadismo (economia de predação) e pudessem, a partir de então, se fixar, iniciar uma economia de produção (MONTANARI, 2013), o que resultou na constituição das primeiras formas de sociedades. Essa transformação foi significativa para a humanidade. Até os anos 1700, foi referência para o que era chamado de cultura na época, ou seja, o cuidado com o campo e com a agricultura; tudo o que estivesse relacionado ao ato de cultivar. O homem passa a ser protagonista da História ao transformar o ambiente onde vive, se adaptando às intempéries geográficas e temporais, competência que é atribuída somente a ele (BOAS, 2014), e isso diz respeito também à forma pela qual ele passou a se alimentar. Todos os desdobramentos em relação ao alimento são resultado de uma longa sequência de formulação e aprimoramento de técnicas que são desenvolvidas tanto para a produção (diferentes espécies, resistentes ao frio ou ao calor), quanto para a transformação desses alimentos: ao usar o fogo para assar ou juntamente com a água para fazer pratos cozidos. Nos estudos de Roberto DaMatta (1986), o autor, referindo-se aos componentes relevantes do Brasil, define a comida como uma das características intrínsecas do país que reforça o caráter múltiplo cultural da sociedade. O autor afirma que, para os brasileiros, "nem tudo que alimenta é sempre bom ou socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que é alimento é comida. Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva: comida é tudo que se come com prazer4" (p. 46). Desse modo, entende-se que "comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido como também aquele 4 Grifo nosso. - 98 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 que ingere." (DAMATTA, 1986, p. 47). Comida remete, ainda, à criação da identidade de uma pessoa ou determinado grupo. Assim, a comida é o resultado do que é possível fazer com os alimentos. E esse ato de fazer comida é evidenciado como prática cultural por Montanari (2013, p. 15 - 16), pois o autor afirma que a comida é cultura: quando é produzida (já que não se usa somente o que vem da terra de maneira espontânea), preparada (aqui remete-se às técnicas de transformação dos alimentos) e consumida (com base em critérios econômicos, sociais e culturais de gosto e necessidades). Portanto, é possível afirmar que a comida foi responsável pela transmissão de uma cultura da alimentação, além de costumes e hábitos de tempos distantes, servindo como comunicadora de identidades, tradições e história. "Assim como a língua falada, o sistema alimentar contém e transporta a cultura de quem a pratica, é depositário das tradições e da identidade de um grupo" (MONTANARI, 2013, p. 183). Montanari (2013) ainda reforça que "mais ainda que a palavra, a comida sepresta a mediar, entre culturas diversas e abrindo os sistemas de cozinha a todo tipo de invenções, cruzamentos e contaminações" (p. 184). A mediação citada por Montanari remete à associação entre a comunicação e a culinária, pois esta assume o caráter comunicacional de veículo na disseminação de conhecimento e identidade. Assim, ter programas que mostrem a comida pode ser entendido como um tipo de comunicação dupla, ou seja, um processo comunicacional que dá origem aos vários formatos de programas culinários no mundo. A culinária na televisão A combinação de culinária e televisão data dos anos de 1940. Internacionalmente, o gênero tem seu início em 1948, com o programa "To The Queen's Taste", apresentado pela inglesa Dione Lucas. Mas a popularização desse tipo de entretenimento se deu graças à chef norteamericana Julia Child que, durante dez anos (1963 a 1973), apresentou o programa The French Chef, ensinando técnicas francesas e se despedindo do - 99 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 público com o "bom appétif, termo que se tornou muito popular na gastronomia5. No Brasil, a primeira representante do gênero foi a culinarista Ofélia Ramos Anunciato. Esse formato, da apresentadora que cozinhava com as donas de casa, possui vários representantes na televisão brasileira, como Palmirinha, Ana Maria Braga, sendo que os homens também passaram a fazer parte desse universo, como apresentador Daniel Bork, que comandou o Bem Família de 2005 a 2009, passando a apresentar o Dia a Dia até a atualidade - os dois programas exibidos pela Bandeirantes. O desdobramento do tradicional programa de culinária resultou em muitas variações pelo mundo: realities com cozinheiros amadores, profissionais, crianças, celebridades; tudo isso nos mais diferentes formatos e com foco em diversas áreas da gastronomia: específicos de confeitaria, com um restaurante como pano de fundo, atendendo ou não a clientes. Existente há muito mais tempo no exterior, as diferentes vertentes dos programas culinários chegaram ao Brasil, primeiro, na televisão por assinatura, onde foram aumentando devido a sua potencialidade de audiência. Assim, a TV aberta encontrou nesse nicho, que estava se espalhando com rapidez, uma maneira eficiente de alavancar a audiência. O que, de fato, aconteceu. Em levantamento feito pelo Ibope 6, o número de atrações do gênero era de 49 em 2013, e, em 2014, teve aumento de 38%, chegando a 67 programas entre as televisões aberta e fechada. Na matéria disponível no Observatório da Imprensa7, há a referência à audiência que 5 Infomações provenientes de uma matéria online que se refere ao livro Watching what we eat, da autora Kathleen Colins, lançado nos Estados Unidos em 2009 e sem tradução para o português. A matéria "Quais foram os programas de culinária pioneiros da televisão" está disponível em: <http://guiadoscuriosos.com.br/blog/2013710/15/quais-foram-os-programas-de-culinaria-pioneirosda-televisao/>. Acesso em jan/2016. Dados da matéria: Grade culinária na TV aumenta 38%. Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/tv-em-questao/ ed815 grade de culinaria na tv aumenta 38/>. Acesso em jan/2016. 7 Idem. 6 - 100 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 esse tipo de programa possui e, por isso, a diversificação de formatos e, consequentemente, a chegada em massa à televisão aberta no Brasil. Anteriormente vistos somente pelo público feminino, hoje os programas possuem caráter familiar, com um público-alvo amplo. Um exemplo é o programa "Mais Você" apresentado por Ana Maria Braga, que passou a exibir, desde 2008, quadros como Jogo de Panelas, Super Chef (2008) e Super Chef Celebridades. Tal mudança foi uma reação aos baixos índices de audiência, por esse motivo, pode-se considerar as palavras de Hall (2013) em relação ao processo de produção para a televisão, que constitui uma via de mão dupla, que cria e reproduz representações sociais. As restruturas de produção "(...) tiram assuntos, tratamentos, agendas, eventos, equipes, imagens da audiência, "definições de situação" de outras fontes e outras formações discursivas dentro da estrutura sociocultural e política mais ampla da qual são uma parte diferenciada." (HALL, 2013, p. 431) No Brasil, passaram pela grade televisiva os programas Hell's Kitchen (que em sua primeira edição teve o nome traduzido para Cozinha sob Pressão e entre o final de 2015 e início de 2016 exibe sua segunda temporada), Bake of Brasil e BBQ Champ - Disputa entre churrasqueiros amadores (a ser exibido), no SBT; Batalha dos Confeiteiros Brasil, na Record; MasterChef Brasil e Júnior, na Bandeirantes. Essa cultura gastronômica que se forma faz parte da cultura da mídia que "(... ) fornece o material que cria as identidades pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocaptalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura global" (KELLNER, 2001, p. 9). A partir dessa afirmação, enquadrando os programas culinários nessa seara e pensando sobre os processos de produção de um programa como discutiu Hall (2013), surge o questionamento sobre como a identidade de um povo é mostrada nesses programas, já que essa cultura da mídia também é responsável pela formação das identidades sociais. Dessa maneira, se faz necessária a observação de tais programas, pois, em se tratando de formatos prontos e, também, da questão do que é considerado alta gastronomia ser proveniente de outros países, como a culinária latino-americana figura entre a culinária - 101 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 mundial e, sobretudo, qual tratamento é dado ao tipo de comida que se produz e se consome no continente. O programa MasterChef Criado em 1990 pelo cineasta e documentarista britânico Franc Roddam, o MasterChef é um reality show que trata de gastronomia. O programa tem como objetivo colocar para competir cozinheiros amadores pré-selecionados que devem passar por várias provas técnicas e mostrar suas habilidades culinárias, a fim de conquistar um prêmio em dinheiro, a publicação de um livro com as próprias receitas, um curso de gastronomia em renomados centros do mundo e um troféu que contempla o cozinheiro amador como MasterChef. No Reino Unido é exibido desde a década de 1990, foi atualizado pela BBC e é distribuído pelo Shine Group. Atualmente, o MasterChef é um dos realities sobre gastronomia mais difundidos pelo mundo, com produção e exibição em mais de 40 países. A partir do modelo do MasterChef foram criadas novas versões como The Professionals (com cozinheiros que possuem formação e até já trabalham na área), Celebrity (feito com participantes famosos); All Stars (exibido na Austrália, levou os cozinheiros à competição para angariar fundos para caridade); Júnior (versão infantil). A dinâmica do programa é reproduzida em todos os países, mas há alguns que conseguem imprimir uma narrativa mais próxima do local onde está sendo exibido. Além de trabalhar com ingredientes locais, também foram feitas adaptações, como poderá ser visto adiante. O conceito principal é sempre preservado, já que se trata de uma franquia. Na versão original não existe um apresentador, elemento que pode ser visto com frequência nas edições da América Latina. Há três jurados que são cozinheiros, com formações variadas, e ainda é constante a presença de chefs convidados, que ensinam aos participantes um tipo de comida, fazem um prato que deverá ser replicado ou aprimorado, etc. - 102 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Entre as provas que caracterizam o programa estão a Caixa Misteriosa, que é apresentada aos participantes somente na hora de cozinhar; as provas em equipe, formadas para realizar refeições em casamentos, para celebridades, para as forças armadas e convidados em geral, que são escolhidos de acordo com a especificidade de cada prova. A seguir será possível observar as peculiaridades de cada versão do MasterChef exibidas em países da América Latina, tanto no formato, quanto no uso da culinária tradicional, que é o objetivo central deste artigo. Argentina O programa MasterChef teve duas edições na Argentina (2014, 2015), foi produzido pela Telefe em parceria com a Eyeworks - Cuatro Cabezas, com o formato sem nenhuma alteração em relação ao "original". Os jurados das duas edições foram o argentino German Martitegui, o italiano Donato De Santis e o francês Christophe Krywonis; a apresentação ficou a cargo de Mariano Peluffo. A primeira temporada exibida pela Telefe foi composta por 17 episódios entre os quais foi identificada a solicitação de pratos ou produtos tipicamente argentinos: - 103 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Brasil As duas edições (2014 e 2014) do programa foram exibidas pela Bandeirantes, que apresentou, ainda, a versão Júnior (2015) da franquia. Em um formato praticamente idêntico ao original, o MasterChef Brasil apresenta a diferença encontrada também em outros países do continente, a presença de um apresentador para o programa, neste caso, a jornalista Ana Paula Padrão. Os jurados designados para avaliação dos candidatos foram: o francês Erick Jacquin, a argentina Paola Carosella e o brasileiro Henrique Fogaça. A nacionalidade e formação dos jurados tem influência sobre o andamento do programa, já que os participantes desenvolvem provas que - 104 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 abarcam o gosto dos avaliadores ou, mesmo, são convidados a cozinhar nos restaurantes comandados pelos chefs. Entre os episódios exibidos no Brasil, foi possível identificar que a culinária brasileira esteve presente em boa parte do programa. Além dos ingredientes nativos disponíveis - como frutas, legumes - algumas das provas às quais os competidores foram submetidos solicitavam a preparação de pratos tipicamente brasileiros ou de determinada região do país. Na primeira temporada - exibida em 2014, algumas provas chamaram a atenção no quesito brasilidade: - 105 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Chile O Chile exibiu sua versão do MasterChef em 2014 e 2015 (sempre no final do ano), no Canal 13. Com apresentação de Diana Bolocco, nas duas edições participaram os jurados Yann Yvin - chef francês que possui restaurantes na França e no Chile; Ennio Carota - de nacionalidade italiana, Carota é conhecido do público pois apresenta programas no Chile e, também, na Argentina; Christopher Carpentier - com trajetória reconhecida no país, também atua em hotéis de Buenos Aires e Miami. Apesar dos vídeos não estarem disponíveis 8, informações sobre a competição estão no site do Canal 13 e, a partir deles, é possível encontrar 8 A emissora que exibe o programa - Canal 13 - não permite que seu conteúdo fique disponível no YouTube, por exemplo. Os vídeos são armazenados somente na página do programa no site da emissora. No entanto, é uma reclamação constante a impossibilidade de acessar os vídeos de outras localidades que não seja o Chile. Tais comentários podem ser vistos em todos os vídeos disponíveis no endereço: <http://www.13.cl/programas/masterchef-chile-t2>. Acesso em: fev/2016. - 106 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 referências à culinária chilena, tanto na primeira, quanto na segunda temporada9. Colômbia A primeira edição do MasterChef Colômbia foi produzida e exibida pelo canal RCN e contou com 18 episódios. Como jurados, o programa contou com a presença de Nicolás de Zumbíria, natural de Cartagena Colômbia, mas que iniciou seus estudos no Canadá; Jorge Rausch, que possui formação europeia; Paco Roncero, chef espanhol que possui restaurantes em vários países. Os três avaliadores dos competidores possuem restaurantes na Colômbia. Seguindo o padrão latino-americano, o reality tem um apresentador, neste caso, a apresentadora Claudia Bahamón. Nos 18 episódios exibidos, houve a presença da culinária tradicional colombiana: Uma inovação no formato produzido na Colômbia é o confinamento dos chefes, que foram levados para uma casa e ficaram em contato o tempo todo durante o programa. O dia a dia da casa também faz parte da atração e mostra a interação dos participantes, a rotina e os momentos de descontração. 9 Caso o acesso ao conteúdo fosse livre, acredita-se que o número de ocorrências de pratos e ingredientes típicos seria um pouco maior. - 107 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Peru O MasterChef pioneiro na América Latina foi exibido no Peru em 2011, pelo Canal 21. O apresentador foi Gastón Acurio - bastante conhecido na gastronomia peruana e mundial por ser um chef entusiasta da culinária local e, também, por promover e divulgar as tradições do país. Para julgar os competidores, foram convidados Astride Gutsche alemã, de formação europeia na escola Le Cordon Bleu, reconhecida por seu talento em confeitaria; Renato Peralta - peruano e discípulo de Acurio, formado na Le Cordon Bleu Peru; e Mitsuharu Tsumura - também peruano e que mescla elementos do país com a culinária japonesa. O desenvolvimento do programa peruano se dá de maneira bem distinta dos outros Masterchef s apresentados no continente, o que pode ser visto no discurso de Acurio logo no primeiro episódio: Los peruanos nos sentimos orgullosos e felices con nuestra cocina, orgullosos de los productos que nos oferecem nuestra exuberante biodiversidad. Pero estas tradiciones, cientos de platos que nos irá hablar de siglos por esta mestizaje que nos define como nación. Y, por supuesto, orgulloso del momento que vive nuestra cocina que empieza a ser reconocida en el mundo. Sin embargo, las batallas que quedan por librar no son nada faciles: seguir reconociendo el trabajo de los campesinos, defender nuestra biodiversidad y, por supuesto, hacer que nuestros cocineros no solamente cocinen rico, si no que se puedan representar con honor e profesionalismo a nuestra cocina. Gastón Acurio. - 108 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Considerações Em meio a tantas representações mostradas nos programas de formato internacional que invadem as televisões da América Latina está o MasterChef. A partir desta pesquisa percebeu-se que, apesar da diversidade gastronômica dos países citados, o número de elementos apresentados é muito pequeno. Os programas poderiam explorar muito mais os ingredientes e pratos nacionais, já que a culinária é tão diversa, no entanto, há uma certa influência da formação dos chefs que são chamados para avaliar os competidores, além da aura em relação à culinária europeia, aquela que é considerada "alta gastronomia". O discurso também é diferente, sendo que o Masterchef Peru foi o único que trouxe a preocupação da divulgação da cultura local, certamente por conta do engajamento de seu apresentador. A televisão é um veículo de comunicação de grande potência, porém, seus recursos poderiam ser melhor utilizados para que houvesse maior identificação e mesmo disseminação de conhecimento, já que nem sempre se tem acesso a toda diversidade, tanto culinária quanto cultural de um país. - 109 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Referências BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980. BOAS, Franz. Antropologia cultural. Trad. 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Estudio de casos Inmaculada Gordillo - Universidade de Sevilla Irene Liberia Vayá - Universidade de Sevilla / Universidade de Valencia Introducción Según Teun A. van Dijk, “los medios de comunicación no solamente delimitan las fronteras sino que también aportan el material de construcción para el consenso público, y de este modo, fijan las condiciones de establecimiento y mantenimiento de una hegemonía ideológica” (VAN DIJK, 1997, p. 15). Actualmente, de entre todos los mass media, los que mayor influencia tienen en la conformación de las representaciones del mundo y en la construcción de las identidades son los medios audiovisuales. Además, el relato aliándose a la representación audiovisual potencia su poder, no en vano, el audiovisual “afecta a nuestros mapas emocionales y sentimentales y más influye en nuestro universo imaginario y simbólico” (AGUILAR, 2010, p. 270). En este sentido, los relatos audiovisuales nos proporcionan multitud de representaciones de situaciones, sujetos, objetos, acontecimientos, etc. en los que reconocer al “yo” y al “otro” (BELMONTE AROCHA y GUILLAMÓN CARRASCO, 2005) y, a partir de ahí, poder crearnos una imagen de ese “otro” frente al cual (re)definir nuestra propia identidad. El presente trabajo se propone analizar un tipo de relato audiovisual concreto: el cine documental. Pero antes de profundizar en las razones de esta elección, es importante destacar que, respecto a la temática que aborda - 111 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 esta investigación (estudios de género e interculturalidad), el cine –pero también el resto de media y otras producciones culturales como la literatura– ha contribuido a perpetuar históricamente visiones negativas del “otro” (entendido como el opuesto a “nosotros” por raza, etnia, religión, cultura, etc., pero también en el sentido del otro-mujer) (ARGOTE, 2003). Sin embargo, para que las situaciones de desigualdad de género, nacionalidad, raza, clase social, etc. sean superadas, hay que transformar las estructuras simbólicas y la mentalidad de los individuos, y aquí los medios de comunicación en general y el cine en particular adquieren gran importancia por el papel socializador que inevitablemente cumplen, debido a su capacidad de provocar reacciones al ofrecer visiones del mundo, movilizar deseos e influir en las percepciones y en las posiciones de los espectadores (NÚÑEZ DOMÍNGUEZ Y TROYANO RODRÍGUEZ, 2011). Objeto de estudio y principales objetivos El presente trabajo, centrado en el ámbito de producción español, se propone como objeto de estudio la imagen que el cine documental transmite de las mujeres “otras”, es decir, de aquellas mujeres que provienen de otros países y culturas, que pertenecen a otras razas o etnias y que, muchas veces, practican religiones y mantienen costumbres que no son mayoritarias en el contexto español. Para ello y teniendo en cuenta el espacio reducido al que debe ceñirse la investigación aquí desarrollada, se abordan dos estudios de caso concretos: 1) Extranjeras (Helena Taberna, 2003) 2) Manzanas, pollos y quimeras (Inés París, 2013) Con ello se quiere, en primer lugar, describir en base a estos dos casos cómo se representa a estas mujeres en un medio que tradicionalmente se ha considerado como el más apto para abordar temas sociales debido a su especial relación con el mundo histórico. Asimismo, se busca comprobar si este tipo de filmes tiende, como el cine de ficción, a reproducir estereotipos o si, por el contrario, nos acerca en mayor medida a la visibilización y a una - 112 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 representación más justa de las mujeres extranjeras. Por último y en un sentido más amplio, se pretende contribuir modestamente a paliar el vacío que existe en el campo de los estudios cinematográficos de investigaciones que cubran la triangulación temática interculturalidad-género-documental en el ámbito español. Migrantes en el cine español Hasta hace poco más de dos décadas, en España solo existían películas “de emigración”, es decir, únicamente se tenía acceso a las representaciones cinematográficas de los “otros” por medio de filmes que mostraban a personajes españoles en busca de nuevos horizonte. Sin embargo, sobre todo desde los años noventa, el cine de producción nacional, haciéndose eco de una nueva realidad social, comienza a proyectar imágenes de inmigrantes que llegan al territorio nacional tratando de encontrar un trabajo y unas posibilidades de vida que en sus países de origen les son negadas. Este cine “de inmigración” o “de minorías étnicas”, según Isabel Santaolalla (2005), queda inaugurado oficialmente con el estreno de Las cartas de Alou (Montxo Armendáriz, 1990), y comenzará a ser notorio especialmente a partir de 1996, gracias a la aparición de varias películas con protagonistas extranjeros afincados en España 10. Desde entonces, en el cine de producción nacional ha habido un aumento más que notable del número de personajes que representan culturas distintas desde diferentes puntos de vista y con tratamientos fílmicos diversos. Sin embargo, la presencia de las mujeres no se hará visible hasta finales del siglo XX y comienzos del XXI, y no será precisamente en pie de igualdad con sus compatriotas masculinos. En la mayoría de los filmes de ficción, los personajes de mujeres extranjeras 10 Filmes como Bwana (Imanol Uribe), Taxi (Carlos Saura), Susanna (Antonio Chavarrías), Menos que cero (Ernesto Tellería) o La sal de la vida (Eugenio Martín) (Santaolalla, 2005, p.23). - 113 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 suelen ocupar una posición inferior a la de los hombres inmigrantes y casi siempre son víctimas de estereotipos culturales arraigados11. La invisibilidad y la deficitaria representación de estas mujeres consideradas de especial vulnerabilidad social debido a su doble alteridad de mujeres y migrantes, ha llevado en los últimos años a analizar el papel que el cine de ficción otorga a esas “otras”, también llamadas “las otras de las otras” (FERNÁNDEZ SOTO, 2009) 12. Sin embargo, no ha ocurrido lo mismo en el ámbito del cine documental, que a pesar de hacerse eco de un fenómeno de alcance internacional como es la feminización de las migraciones (del total de extranjeros residentes en España, el 49% son mujeres según los últimos datos del INE)13, no ha recibido apenas atención por parte de los investigadores al tratar este objeto de estudio14. Por qué cine documental? Es insuficiente investigar las representaciones estereotipadas y deficitarias que el cine de ficción ofrece sobre las mujeres extranjeras y debe insistirse en que los medios de comunicación asocian frecuentemente al colectivo inmigrante con la marginalidad y el conflicto. En este contexto el 11 Algunos ejemplos de estudios que analizan personajes femeninos inmigrantes en el cine de ficción español son: Cruzado Rodríguez, 2015; Rakaseder, 2013; Alonso Seoane, 2011; Carty, 2009; Fernández Soto, 2009; Gordillo, 2006; Mancebo y Roncero, 2004; Argote, 2003, 2006); Villar-Hernández, 2002; etc. 12 En el contexto español se han llevado a cabo investigaciones sobre la presencia y la imagen de la inmigración femenina en televisión, tanto en lo que respecta a series de ficción (RODRÍGUEZ BREIJO, 2009; LACALLE, 2008, GALÁN FAJARDO, 2006; etc.) como a programas informativos (MARTÍNEZ LIROLA y OLMOS ALCARAZ, 2015; OLMOS ALCARAZ, 2013; MUÑIZ e IGARTUA, 2004, etc.), y, por supuesto, en prensa (ROMÁN, GARCÍA y ÁLVAREZ, 2011; MASANET RIPOLL y RIPOLL ARCACIA, 2008; NASH, 2005; REIGADA OLAIZOLA, 2005; RODRÍGUEZ, 2002, etc.). 13 A pesar de la disminución de la llegada de inmigrantes en los últimos años debido a la crisis económica, según datos oficiales del INE, el porcentaje de mujeres inmigrantes residentes en España ha crecido en comparación al número de hombres. (INE, 2015). 14 Existen honrosas excepciones: MARÍN ESCUDERO, 2012; COMELLA DORDA, 2011; CABALLERO WANGÜEMERT, 2009, etc. - 114 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 cine, aunque puede servir para todo lo contrario 15, se ha utilizado como un instrumento para estigmatizar a la población extranjera y ejerce sobre ella una violencia simbólica que se ensaña especialmente con las mujeres: estas “otras” han pasado de ser ignoradas e infrarrepresentadas, a conquistar su espacio en la gran pantalla como simples acompañantes de los personajes masculinos, personajes episódicos o, cuando han logrado un rol principal, con una imagen de mujeres sin personalidad ni criterio o como víctimas. No obstante, en los últimos años el cine español ha comenzado a prestar más atención a mujeres migrantes autónomas que se constituyen en agentes activos de la narración cinematográfica, pero por desgracia, continúan arrastrando tópicos y estereotipos. Por ello se necesitan cada vez más estudios que aborden y pongan en valor representaciones positivas y complejas –todavía minoritarias– de estas mujeres “otras”. Así, el presente trabajo se basa en la intuición de que el cine documental puede visibilizar mejor y en mayor medida a las mujeres extranjeras en toda su pluralidad y construir una imagen de estas opuesta a la que da el modelo discursivo dominante, ya que este tipo de producción no está sometido a la misma presión industrial, entre otras ventajas. Por otro lado, el cine factual construye discursos sobre lo real y desarrolla argumentaciones que pertenecen al mundo histórico, con lo cual, es susceptible de crear una mirada más cercana a lo que ocurre en las sociedades que trata. Además, como los filmes de ficción y como los medios de comunicación en general, también el cine “de lo real” influye en la organización de los imaginarios colectivos y simbólicos y constituye un discurso cultural fundamental en la configuración de las mentalidades. Por último, cabe recordar que el documental tiene una gran importancia histórica como herramienta de denuncia social y ha sido también ampliamente utilizado por parte de la militancia feminista en sus trabajos audiovisuales. 15 En palabras de Isabel Santaolalla, “el cine es ciertamente (re)productor de determinadas estructuras y dinámicas de poder, pero es, a la vez, un ámbito del que pueden emanar actitudes y discursos alternativos, que confieran una enriquecedora parcela de poder a sus receptores” (2006, en línea). - 115 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Metodología Para acometer los objetivos propuestos nos basaremos en el análisis de contenido y en el estudio de casos, dos instrumentos metodológicos muy extendidos y fuertemente consensuados en las Ciencias Sociales. “El análisis de contenido no debe perseguir otro objetivo que el de lograr la emergencia de aquel sentido latente que procede de las prácticas sociales y cognitivas que instrumentalmente recurren a la comunicación para facilitar la interacción que subyace a los actos comunicativos concretos y subtiende la superficie material del texto” (PIÑUEL RAIGADA, 2002, p. 4). En nuestro caso optamos por un análisis de contenido de tipo cualitativo y explicativo que, debido a las limitaciones de esta comunicación, se centrará en un conjunto restringido de categorías: 1. El protagonismo de las mujeres. 2. Los contextos donde desarrollan la acción. 3. Los elementos narrativos que las describen o califican (presencia/ausencia de narrador, presentador u otros elementos externos). 4. La relación con otros personajes (no mujeres o no inmigrantes). 5. El rastreo de la perspectiva de género. Este análisis de contenido será sometido a dos casos concretos. El estudio de caso es una herramienta poderosa para la investigación con una fortaleza destacada en su capacidad de medir y registrar las características concretas del fenómeno estudiado (MARTÍNEZ-CARAZO, 2006, p. 167). Es cierto que también posee puntos débiles de cara a la generalización de la investigación, ya que las conclusiones no son extensibles estadísticamente. Sin embargo, el estudio de casos debe ser considerado como proposiciones teórico-reflexivas, ya que permite al investigador ampliar y generalizar teorías (la llamada generalización analítica) y no enumerar frecuencias (generalización estadística). En este sentido, el propósito de esta herramienta - 116 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 de investigación es comprender la interacción entre las distintas partes de un sistema y las características importantes del mismo, de manera que el análisis pueda ser aplicado de forma genérica, incluso a partir de un único caso, en cuanto que se logra una comprensión de la estructura, los procesos y las fuerzas impulsoras, más que un establecimiento de correlaciones o relaciones de causa y efecto. Principales resultados Tras el análisis de los dos estudios de caso, se exponen a continuación de forma breve los resultados más relevantes. En primer lugar se ha abordado el documental Extranjeras (2003). Este filme, con guión y dirección de la española Helena Taberna, otorga el protagonismo a un grupo de mujeres inmigrantes arraigadas en el centro de Madrid y en algunos barrios y localidades de la periferia. Como una declaración de intenciones, en la Guía Didáctica editada por la productora se expresa: La película muestra la cara desconocida y cotidiana de otras culturas a través de la experiencia de mujeres inmigrantes que viven en Madrid. Vemos el día a día de estas mujeres: su entorno familiar, cómo viven y en qué trabajan. Tenemos ocasión de conocer qué pasa con sus sueños y cuál es su universo afectivo. Descubrimos también los nuevos espacios de intercambio, relación y encuentro que han creado así como el modo en que se adaptan al nuevo entorno para mantener vivas las costumbres que han heredado de sus respectivas culturas. (COSTA VILLAVERDE, 2006) Al someter a análisis este documental, se han extraído los siguientes resultados: 1. El absoluto protagonismo de las mujeres inmigrantes de orígenes diversos (China, Rumania, Polonia, Ecuador, Colombia, Perú, Venezuela, Siria, Irak, Bangladesh, Sudán, Senegal, Guinea Ecuatorial, Marruecos, Argelia…), de primera o sucesivas generaciones. - 117 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 2. Los contextos de acción son situaciones cotidianas: todas las mujeres aparecen tanto en ámbitos públicos como privados: sus lugares de trabajo, en la escuela, en casa cocinando, viendo la televisión, en los lugares donde se reúnen en su tiempo de ocio. De este modo los contextos son muy distintos a las de la prensa y los informativos de televisión, donde la inmigración siempre aparece como fuente de conflicto y las mujeres inmigrantes apenas tienen cabida más que como víctimas de sucesos dramáticos. 3. En ningún momento aparece ningún mediador (ni periodista que interroga, ni narrador en off que orienta, califica o aporta más información). Solo la presencia de las mujeres, que hablan ante la cámara de su situación, de sus sensaciones, de sus sentimientos, o dialogan entre ellas. La directora se diluye ante las presencias de las protagonistas. 4. Las protagonistas se relacionan con otras mujeres o algunas con sus hijas (inmigrantes de segunda generación en algunos casos). No existe presencia de los hombres en este documental (exceptuando fuerzas del orden que intentan disolver venta ambulante en un parque de Madrid). Solamente en sus relatos hablan de los hombres de su familia (novios, maridos, etc.). También en ese terreno del relato en primera persona es donde aparecen “los otros” de este filme: los españoles, con algunas actitudes abiertamente racistas y xenófobas. 5. Hay una voluntad manifiesta de mostrar una perspectiva de género en este documental. El protagonismo de las mujeres no es observado desde visiones paternalistas, sino que su voz y su fuerza, sus ideas, su rabia a veces, su energía y su adaptación e, incluso su desarraigo (“ya no soy china ni española”, dice una de las protagonistas), están fuertemente impregnados en cada secuencia del filme de Taberna. Por su parte, Manzanas, pollos y quimeras (2013), un documental escrito, dirigido y producido por Inés París como parte de un proyecto de la Fundación Mujeres Por África, construye un retrato de las mujeres africanas que viven en España, dando así voz a un colectivo fuertemente invisibilizado. - 118 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Sus protagonistas, mujeres de edades distintas y de las más diversas profesiones (una periodista, una costurera, una cantante, una cocinera, una intérprete, una corredora olímpica, una escritora, una camarera, una campesina, una galerista de arte, una actriz, etc.), cuentan en primera persona qué les trajo a este país, las dificultades que tuvieron que enfrentar a su llegada, cuáles eran sus esperanzas, qué caminos tomaron, cómo es su vida actual y qué esperan del futuro. A continuación se describen brevemente los principales resultados obtenidos tras aplicar las cinco categorías de análisis señaladas más arriba: 1. Las mujeres africanas son las protagonistas absolutas del documental. En determinadas ocasiones aparecen junto a familiares, compañeros o amigos, sin embargo, estos personajes secundarios, lejos de quitarles protagonismo, sirven para reforzar sus relatos. Además, el hecho de incluir a mujeres africanas de nacionalidades diversas (procedentes de países como Burundi, República Democrática del Congo, Camerún, Costa de Marfil, Gambia, Guinea Ecuatorial, etc.) contribuye a hacer visible la complejidad y pluralidad de sus identidades, rechazando de frente la idea de “inmigración africana” como un todo homogéneo y estereotipado. 2. Las protagonistas del documental aparecen mayoritariamente en sus lugares de trabajo (un aula, una cocina, un museo, una galería de arte, un teatro, un huerto, etc.), aunque también son entrevistadas en sus casas, en espacios públicos como un parque, o son grabadas caminando por la calle, viajando en metro, etc. En este sentido, los lugares donde se desarrolla la acción pertenecen tanto al espacio público como al privado, aunque predominan los contextos de trabajo. Por otro lado, destaca la presencia de medios de transporte como el tren, el avión o el metro, que se utilizan en repetidas ocasiones para ilustrar los discursos sobre la llegada de estas mujeres a España y también como recurso de transición entre un relato y otro. 3. No existe ningún narrador que dirija el documental, ni tampoco se ve ni se oye en ningún momento a la persona que entrevista a las - 119 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 protagonistas. Estas hablan hacia el espacio off, evidenciando la presencia del entrevistador/a, pero no son directamente interpeladas por él/ella. Los testimonios son narrados por las mujeres en primera persona, que a veces adoptan la forma de bustos parlantes, otras interactúan con familiares o amigos y en otras ocasiones se escuchan sus relatos en off mientras se ven imágenes que ilustran sus testimonios o las muestran en sus quehaceres cotidianos. La sensación que transmite el documental es que no hay barreras entre las protagonistas y los espectadores, ni tampoco entre estas y el equipo de la película. En definitiva, se tiene la impresión de un acceso directo a las experiencias narradas. 4. El filme está construido casi en su totalidad con testimonios de las mujeres protagonistas en primera persona. Sin embargo, en algunas ocasiones estas aparecen ante la cámara con sus hijos (ya de nacionalidad española), parejas o compañeras de trabajo. A veces interactúan entre ellos, en otras ocasiones los secundarios solo están presentes mientras los personajes principales narran sus relatos, pero también –sobre todo en el caso de los hijos– estos personajes secundarios intervienen para dar información sobre las protagonistas y sobre sus propias experiencias en relación con la inmigración. Aquí aparecen físicamente (y no solo en los relatos de las mujeres) algunos hombres (hijos, parejas, padres), que, en ciertas ocasiones, toman la palabra. En cuanto a los “no inmigrantes” o representantes de la sociedad de acogida, además de estar presentes en los testimonios sobre las experiencias negativas de las protagonistas (situaciones de xenofobia y racismo) o en anécdotas divertidas sobre elementos que evidencian el “choque” cultural, también aparecen e intervienen como personas importantes en la vida de estas mujeres, contribuyendo a mostrar así su integración. 5. Incluso aunque se obvie el hecho de que este documental es una iniciativa de la Fundación Mujeres Por África (que nace para la consolidación de modelos sociales que dignifiquen la vida de las mujeres - 120 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 y hagan posible el desarrollo sostenible del continente africano) y está dirigido por Inés París (fundadora y presidenta de CIMA, Asociación de Mujeres Cineastas y Medios Audiovisuales), la perspectiva de género está presente desde la propia concepción de la película –que pretende dar voz y poner rostro a mujeres prácticamente invisibles en la sociedad española– hasta su planteamiento y construcción –realizada y protagonizada en su inmensa mayoría por mujeres que toman decisiones detrás de la cámara y llevan todo el peso de la narración delante–, pasando por los temas que aborda –identidad de las mujeres africanas; sus proyectos; su relación con los hombres (africanos y españoles); el rol de la mujer en sus países de origen; algunas de sus profesiones que están directamente relacionadas con la promoción de la mujer, etc. Conclusiones / Discusión A partir de aquí se detallarán las principales conclusiones extraídas tras los análisis de caso de las dos películas elegidas:   En ambos documentales las mujeres emigrantes son las protagonistas absolutas. Al fin y al cabo, lo que se pretende en ambos casos es dar voz y rostro a un colectivo (plural y heterogéneo) que parece “no existir” en la sociedad española más que cuando se presenta como víctima de sucesos dramáticos (sobre todo relacionados con los malos tratos, la prostitución y trata). En las dos películas se demuestra que hay una inmigración integrada que no tiene nada que ver con las situaciones de conflicto a las que sistemáticamente los medios asocian a este colectivo. Los entornos “normalizados” (domésticos, de trabajo y de ocio) cumplen una función esencial dentro de las dos películas, asumiendo la cotidianidad y la regularización como lo más habitual. Asimismo, por la variedad de profesiones que ejercen las protagonistas, pierde fuerza la - 121 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais    2016 imagen de mujer inmigrante limpiadora, prostituta o cuidadora. Aunque algunos de los personajes se han dedicado a limpiar o a cuidar, la mayoría ejercen profesiones para las que se han formado (en España o en sus países de origen) y tienen una amplia experiencia, muchas de ellas relacionadas con el arte, la educación y la cultura. Hay muestras tanto de trabajo intelectual como de trabajo manual-físico (con formación específica). Es importante la fuerza de los testimonios directos, sin mediación de voz externa que organice y puntualice las vivencias, declaraciones y momentos protagonizados por las mujeres inmigrantes. La ocultación de esa mirada externa (que por supuesto está, pero de forma respetuosa y discreta) permite ampliar el espacio y la presencia de las auténticas protagonistas, que parecen sentirse libres para expresarse y desarrollar su universo desde la autenticidad. Existe un territorio común dentro de las temáticas de los documentales analizados que recorren elementos relacionados con la identidad, la lengua (aprendizaje de la lengua de la sociedad de acogida // papel que juega la lengua materna con respecto a la integración, etc.), la religión, las costumbres y la cultura, la formación-educación, los motivos para emigrar, las dificultades de integración, las posibilidades o deseos del regreso, la maternidad, la comparación entre la situación de las mujeres en España y en sus países de origen, el multiempleo, los afectos, etc. En los dos discursos elegidos “los otros” están representados por la población autóctona (los españoles). Esta mirada resulta enriquecedora y novedosa, al cambiar radicalmente la perspectiva de focalización. Coinciden ambas películas en mostrar que hay sectores de la población española que son xenófobos y racistas: varias mujeres cuentan experiencias negativas relacionadas con insultos, exclusiones, desprecios, - 122 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais  2016 abusos de la policía, detenciones, discriminaciones laborales, provocaciones, etc. Se observan también, desde esta perspectiva, testimonios sobre los estereotipos, ideas preconcebidas e idealizaciones que tenían las mujeres inmigrantes sobre España antes de llegar. El choque cultural y la extrañeza es narrada en primera persona, por lo que se empuja a la identificación secundaria (y acercamiento cognitivo) y se invita a la reflexión sobre las propias extrañezas culturales hacia “los otros”. Por tanto, los documentales analizados aquí ejercen una labor social y de compromiso que permite orientar discusiones y líneas de investigación en relación a temas de identidad - como proceso, en cambio continuo y diverso cambio-, de normalidad e integración, sin olvidar los espacios negativos de soledad, dificultades, ausencias, choque cultural o falta de oportunidades. Para concluir, puede afirmarse que tras una primera etapa en la que las investigaciones sobre cine y migraciones (con o sin perspectiva de género) incidiendo en las visiones negativas transmitidas desde el modelo de representación dominante, es indispensable dar prioridad a los discursos alternativos que, sin realizarse necesaria o explícitamente desde sectores de la militancia feminista, se esfuerzan por ofrecer una imagen plural e independiente de las mujeres en tanto que sujetos activos de su propia historia y del relato que protagonizan. 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Os pontos de cultura17 (TURINO, 2010) disseminaram pelo território chassi digital, que acelerou o fluxo de produção de conteúdo, agrupou agentes criativos hábeis na captação, edição e difusão de informações, e conectou os insumos tangíveis e intangíveis, necessários à ação ampliada para as intervenções políticas de oposição. As publicações do mapa da violência (WAISELFISZ, 2015), das informações da Comissão Parlamentar de Inquérito 18 do Congresso 16 Neste artigo, o termo é usado como infraestrutura para a produção, veiculação e distribuição de conteúdos. 17 Disponível em http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1. Acesso em 20 de fev. 2016, às 18h30. 18 Disponível em - http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/492351CPI-DA-VIOLENCIA-CONTRA-JOVENS-NEGROS-APROVA-RELATORIO-FINAL.html. Acesso em 19. fev. 2016, às 3h21. - 127 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Nacional e da Anistia Internacional 19 incitaram o fórum da campanha contra o extermínio da população jovem, negra e pobre. A campanha intercedeu no debate da necessidade de reversão desse cenário, impulsionou à adoção de políticas públicas, e despertou setores da sociedade para a magnitude do problema, que ceifa a vida de milhares de jovens, com o silêncio conivente dos meios de comunicação monopolistas 20. A apropriação dos recursos digitais pelos ApliC é um ponto de inflexão na luta e enfrentamento ao racismo e à violência sistêmica. Critérios de Noticiabilidade: componentes técnicos e políticos As notícias veiculadas são o resultado final de um longo processo de combate pelo conteúdo. O fluxo da informação é constituído por diversos mecanismos que filtram a informação. Os critérios de noticiabilidade não são os únicos vetores que determinam o conteúdo. Há aspectos técnicos, éticos, editoriais, ideológicos e políticos (MORAES; SERRANO; RAMONET, 2013). A redação é o palco dessa disputa. Com a substituição do valor de uso pelo valor de troca da notícia (MARCONDES FILHO, 2000), esse lócus/logos do processo produtivo converteu-se em área de disputa política e simbólica das narrativas modernas. A disputa pela pauta é o início de um longo processo de enfrentamentos (ROSSI, 1980). A observação do fato, a negociação entre os grupos culturais que constituem a redação, a convergência/divergência com a política editorial do veículo, as cadeias de comando horizontais e verticais, e os interesses comerciais das empresas transformam a pauta, muitas vezes, em mera referência burocrática, para a produção do conteúdo. O processo industrial da informação afeta as condições de trabalho dos jornalistas e contribui com a transformação do conteúdo (RIBEIRO, 19 Disponível em https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/. Acesso em 13 de fev. 2016, às 12h01. 20 Disponível em http://www.donosdamidia.com.br/. Acesso em 25 de fev. 2016, às 11h33. - 128 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 1994). As contradições na e da redação dão bases concretas ao aliciamento e coerção, que estruturam as relações de trabalho. A busca pelo prestígio profissional e social leva à flexibilidade de condutas. O reconhecimento interno e externo é o mecanismo invisível dessa ação, como as regras e normas editoriais do veículo. Com o jornalista enquadrado, enquadra-se o resultado do trabalho profissional, que se afasta dos critérios de noticiabilidade, para se aproximar dos interesses da publicação. O fenômeno está presente na cobertura de temas complexos, com múltiplos interesses em disputa (SERVA, 2001). As categorias que regulam o fluxo da informação são a omissão, a submissão e a distorção da cobertura. O que não entra na pauta não é notícia. Omitir foco de cobertura nem sempre é um processo consciente e proposital. A omissão pode se dar por diversas razões, porém o resultado priva a esfera pública do debate de temas de interesse social. O procedimento de empacotamento do conteúdo é condicionado por critérios que impõe a submissão de um tema em relação a outro. O relevo, a proximidade, o impacto da notícia submetem outros tópicos de interesse, e articulam uma narrativa única das notícias, com a inclusão/exclusão de assuntos de relevância pública. A discordância desses temas com a realidade factual provoca distorção na informação. Esse artifício tira da esfera pública de debate teses fundamentais para a compreensão da realidade social, e reduz a capacidade da cidadania de superá-los. O diagnóstico foi feito há alguns anos por jornalistas norteamericanos, ao identificarem que as principais empresas de comunicação estavam associadas a grandes empresas que não tinham seu foco central na produção de notícias (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003). A omissão, submissão e distorção da informação fraturam a objetividade do relato jornalístico, e paralisam o debate na esfera pública de opiniões. Há distinção entre os aspectos cognitivos da objetividade e os aspectos subjetivos da isenção, imparcialidade e neutralidade. Do ponto de vista do procedimento jornalístico, não é possível aos jornalistas manteremse isentos, imparciais e neutros diante da realidade social. Os fatos - 129 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 jornalísticos impactam sua percepção e condicionam o seu relato. Porém, a objetividade ligada a aspectos cognitivos é possível e desejável. A adoção crítica do método jornalístico assegura a objetividade do relato (ABRAMO, 2003). A realidade é cognoscível e apreensível. O relato crível e factual pode ser realizado, como na ciência. A narrativa singular produz um conhecimento com validade social para a apreensão e compreensão do fato jornalístico (GENRO FILHO, 1987). O ethos da atividade profissional desenvolveu metódicas para a produção do relato factual - as regras da objetividade: atribuição de fonte, proporcionalidade, versões contraditórias e acesso às informações editadas. A adoção desse conjunto de normas assevera a elaboração de versões críveis, próximas da objetividade observável e compreensível para sociedade (MEYER, 1987). As notícias são frutos de enfrentamentos no processo de coordenação do fluxo de informação. Esses enfrentamentos são técnicos, políticos e ideológicos. A veiculação é o resultado final de um complexo sistema de contradições antagônicas e não antagônicas na redação. A cobertura de temas estratégicos sofre múltiplas de pressões. Tópicos ligados às questões estruturais têm suas coberturas condicionadas por ações políticas, que omitem, submetem e distorcem as notícias veiculadas. O racismo é um desses assuntos. As contradições e violências provocadas pelo preconceito, discriminação racial e racismo não são abordadas em profundidade pela mídia brasileira. (MUNANGA, 2001). É nesse ponto de invisibilidade que se encontra a campanha nacional contra o extermínio da população jovem, negra e pobre brasileira. Para desatar com essa amarra que enclausura a informação, arranjos de jovens afrodescendentes apropriaram-se do exoesqueleto tecnológico, para o enfrentamento do racismo e elaboração de políticas públicas que possam reverter o cenário de genocídio. Percepção percebida versus percepção real - 130 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Os meios de comunicação têm papel crucial na construção da imagem dos afrodescendentes (XAVIER; XAVIER, 2002). A modelagem se dá de forma pendular. Ao longo do suporte, alternam-se as imagens dos não brancos, conforme as narrativas das editorias. Nas consideradas nobres, a presença dos afrodescendentes é concisa e tópica. Ela se resume a fragmentos noticiosos secundários, sem contextualização. A presença dos não brancos exacerba-se na editoria de esporte. Em razão da intensa e extensa cobertura de futebol, amplia-se a cobertura da imagem dos afrodescendentes, com todos os estereótipos sociais. A figura projetada é arquitetada pelo mecanismo pendular de invisibilidade/visibilidade. Consolida-se a percepção percebida da suposta incapacidade de reflexão política e racional desse grupo social. Ele é retratado como apto para as ações físicas, mas não para as intelectuais e políticas. A percepção percebida se sobrepõe a percepção real. Esse juízo é retroalimentado pela "rede de factibilidade" (KUCINSKI, 1998), favorecido pela concentração dos meios de comunicação e pela propriedade cruzada de veículos noticiosos. A informação circula em diversas plataformas, diversas vezes para diversos segmentos. A fórmula imprime um "simulacro" de realidade (CHAUÍ, 2006). A população é bombardeada por uma massa de dados que simula o real. Os elementos observáveis são substituídos por versões, sem o contraditório e a informação contextualizada. A variante da informação substitui a notícia informada, e põe à disposição da sociedade uma simulação, que não coincide com o factual. Esse processo instala a tirania da comunicação (RAMONET, 2007). A mercantilização da notícia não dá espaço para o enfrentamento de versões. Esse despotismo midiático subverte a democracia e o espaço público. As novas tecnologias digitais possibilitam o enfrentamento a esse caudilhismo midiático. Nas manifestações de 2013, as articulações sociais apropriaram-se dos dispositivos digitais e usinaram conteúdos de contrainformação (XAVIER; XAVIER, 2015). Esses conteúdos confrontaram os dos meios hegemônicos e, nos auges exasperados das manifestações, pautaram esses veículos e fragilizaram as narrativas dos - 131 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 órgãos corporativos. As mídias radicais romperam em vários momentos o cerco da mídia comercial. A disputa de narrativas sobre os acontecimentos restauraram em determinado momentos a esfera pública de debate, e arejou as discussões políticas (LIMA, 2013). Em frações de espaço e tempo, a percepção real se impôs à percepção percebida. Nessas frestas, foram observados os interesses em conflitos, a disputa das narrativas e a manipulação noticiosa patrocinada pelos meios de comunicação comerciais. Exoesqueleto: infraestrutura tecnológica O processo de expropriação da mais-valia tornou-se global. Amplificaram-se as contradições. Os conflitos, as segregações e as violências simbólicas e físicas tornaram-se agudas. Evidenciaram-se as contradições sociais e os conflitos inerentes a essas contradições. Os fenômenos tornaramse mais complexos e em escala ampliada. Insurge um cenário novo. São a familiaridade técnica, o motor único, a convergência de momentos e a cognoscibilidade do planeta os vetores que permitem a compreensão dessa cadeia de eventos. (SANTOS, 2000). A realidade torna-se complexa, multidimensional e comporta versões distintas, para grupos sociais instalados em posições distintas na sociedade, em relação aos meios de produção e a apropriação da riqueza produzida (MARX, 1974). As narrativas deixam de ser únicas e lineares. Elas ganham dimensões observáveis distintas (SANTOS, 2000): a fábula [a realidade como os segmentos hegemônicos querem fazer crer], a perversidade [a realidade como ela é para a maior parte dos segmentos sociais fragilizados] e a possibilidade [a realidade desejada pelos segmentos sociais acêntricos]. A possibilidade é o estimulo para enfrentamentos dos segmentos sociais em condições vulneráveis. Eles se apropriaram dos dispositivos digitais, para a produção de conteúdo contra hegemônicos: os exoesqueletos tecnológicos, compostos por ateliês criativos, cadeias de produção de conteúdo e conexões locais, regionais e globais. - 132 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Mídias radicais contra hegemônicas Sociedades sem liberdade de informação provocam narrativas de oposição (GINZBURGO, 1987; BRIGGS; BURKE, 2004; KUCINSKI, 1991). Os sistemas políticos fechados cujos meios de comunicação se encontram tutelados pelos poderes políticos e econômicos estimulam a mídia radical. Segmentos sociais acêntricos sem acesso ao sistema de produção de conteúdo e à esfera pública articulam suas mídias, pautas e espaços de veiculação. No período em que proliferaram as ditaduras civil/militar na América Latina, sindicatos, organizações da sociedade civil, movimentos de jovens, indígenas, negros, mulheres e partidos políticos submetidos à clandestinidade editaram veículos, que suscitaram uma esfera pública acanhada, persistente e contribuíram com a redemocratização da região. Plataformas analógicas, digitais, tradicionais e alternativas se revezam na disputa de narrativas com os órgãos oficiais. Elas formam, pela diversidade, tapeçarias de mídias radicais (DOWNING, 2002): suportes com diversas configurações [impressos, eletrônicos, digitais, analógicos, vestuários, danças populares, poemas, teatro de rua, penteados, bottons, pichações, cartazes, performances, discursos, piadas, ditados populares], mídias com sistemas complexos de comunicação [emissores, canais, conteúdos e públicas ativos] e reivindicações radicais [narrativas políticas sem isenção, neutralidade e imparcialidade e posicionado]. O arranjo dessas mídias depende do estado e do sistema de governo (DOWNING, 2002): clandestina [quando vige um sistema policial de repressão] e anarquista [em momentos de liberdade política]. O primeiro é vertical, espelhada na mídia bolchevique, que sustentou a ação política revolucionária na Rússia pré-revolucionária, em 1917. A segunda é horizontal, espelhada nos movimentos sociais que varreram o ano de 1968. O vetor da mídia radical é a oposição política, a aversão ao governo ou ao estado. Seu conteúdo confronta-se com o distribuído pelas mídias hegemônicas. As pessoas envolvidas nessa mídia compartilham leituras políticas e concordam com as estratégias de superação do estado/governo. - 133 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Os recursos para assegurar a eficácia da ação estão submetidos ao controle dos proponentes dessa modalidade de mídia. Essas condições afiançam à mídia radical capacidade de ação política autônoma e independente dos segmentos sociais dirigentes. Livres dos constrangimentos econômicos e políticos, essa mídia pode garantir a efetividade política de sua atuação. As mídias digitais ampliaram as possibilidades de ação política das mídias radicais, alcançaram dimensões globais (DOWNING, 2002). A política de universalização do acesso à rede mundial de computadores favoreceu a instauração dessas mídias. Os Pontos de Cultura [junções de articulação das redes e conexões na produção de informação] formaram ateliês de produção, com equipamentos e programas de códigos livres, estimularam as conexões entre os coletivos culturais [diversas linguagens, expressões e visões de mundo] e propiciaram mobilizações para a reivindicação de políticas públicas pontuais [focadas nos interesses de cada grupo] e universais [em atenção aos diversos grupos sociais mobilizados]. A capilaridade desses ateliês e as suas conexões pelo território ofereceram as bases técnicas e operacionais para a formação da infraestrutura de comunicação dos grupos acêntricos, a articulação do exoesqueleto de veiculação de conteúdo, a denúncia e as ações reversivas, aderentes às demandas dos grupos sociais mobilizados. Esse exoesqueleto foi apropriado pela juventude negra, pobre e moradora da periferia, para as denúncias da violência que se abate sobre esse segmento. Ele deu base à formação do Fórum Nacional da Juventude Negra, promotora da Campanha Contra o Extermínio da Juventude Negra. Mapa da violência e viés étnico-racial Os dados sobre violência contra a juventude apontaram o caráter racial dos homicídios. O perfil das vítimas evidencia esse fenômeno: jovem, negro, morador na periferia das cidades [pequenas, médias e grandes], sem passagem pelo sistema penal e morto com armas de fogo. Esses homicídios - 134 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 se dão de forma generalizada no território, em linha ascendente nas regiões de concentração de população negra, e sem a identificação dos autores. Segundo os dados, entre os anos de 2002 e 2010, com base no Sistema de Informações de Mortalidade, foram assassinados 272.422 afrodescendentes. Média de 30.269 por ano. Em 2010 foram 34.983. Nos estados de Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco, Mato Grosso, Distrito Federal, Bahia e Pará, o número ultrapassou os 100 homicídios para cada 100 mil jovens negros. Emalguns estados, ocorrem 20 homicídios de jovens negros para cada jovem branco assassinado21. O alto índice de homicídios que atinge a população jovem e negra sinaliza a existência de focos extremos de violência racial, conforme análise dos estudos sobre o tema (WAISELFISZ, 2015; SOARES, 2015). A tendência não se alterou no mapa da violência de 2015: "Mortes matadas por armas de fogo". O documento aponta a perversidade crescente da seletividade racial dos homicídios. As taxas de brancos caíram entre 2003 (14,5%) e 2012 (11,8%). A taxa de negros cresceu 14,1%: de 24,9% para 28,5%. A vitimização negra no país duplicou: em 2003 era de 72,5%. Em 2012 foi de 142%: morrem 2,5 vezes mais negros que brancos vitimados por arma de fogo. O fenômeno se encaixa nos critérios de noticiabilidade: magnitude, impacto social, perversidade crescente, foco em um grupo social específico vítima de racismo, segmento social em condições vulneráveis [jovens, pobres e moradores das periferias]. Não houve, porém, repercussão no maior jornal em circulação no país, na semana de divulgação do mapa da violência 22. A divulgação e a repercussão ampliada dos dados foram feitas pela Coordenação do Fórum Nacional de Juventude Negra (FONAJUNE). Ela é 21 Disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/. Acesso em 23 de fev. 2016, às 13h47. Pesquisas de mapeamento dos arranjos produtivos locais intensos de cultura [ApliC] no enfrentamento ao racismo. "Patrimônio imaterial e diversidade: a transculturalidade dentro do território criativo de Bauru", de Stella Sanches e "Relações para e com os públicos plurais: a emergência do público afrodescendente e da gestão da diversidade nas sociedades multiculturais, de Maria Eduarda Gomes". A primeira concluída em dezembro/2015. A segunda, em março/2016. 22 - 135 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 o espaço de articulação, interação e aglutinação de grupos e organizações de juventude negra, interessados na ação política nacional23. O fórum é o centro das ações políticas de denúncia do extermínio da juventude negra. O foco das suas ações é a campanha contra a violência, o fenômeno maissignificativo que atinge a população negra, sem a cobertura sistemática dos meios de comunicação hegemônicos. A campanha nacional contra o extermínio objetiva dialogar com a sociedade, sobre as consequências históricas do racismo, e suas implicações nas condições de vida da juventude negra. O fenômeno culmina com a morte programada de milhares de jovens afrodescendentes, em todas as regiões do país, com o registro das violências de gênero, religiosas e todas as demais formas de discriminações correlatas, definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a Década do Afrodescendente (2015-2024)24. A ação contra a morte de jovens afrodescendentes tem três décadas. Ela tomou corpo nacional nos anos de 1980, quando o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas 25 (Ceap) lançou a campanha "Não Matem Nossas Crianças". A iniciativa repercutiu em âmbito internacional. Foram aprovadas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), para investigar o fenômeno e apontar mecanismos de superação. As mobilizações impulsionaram políticas públicas reversivas, nos períodos posteriores. No 23 A divulgação foi feita no dia 13 de maio [Dia Nacional de Denúncia do Racismo]. A pesquisa foi realizada nos dias anteriores e posteriores a divulgação. O estudo contatou que a notícia não repercutiu no jornal "Folha de S. Paulo". O fato é relevante, pois este é o jornal de maior circulação no país e, segundo pesquisa do órgão, o mais lido no Congresso Nacional, por deputados federais e senadores. A amostra focou todas as edições da semana, todas as editorias e todos os formatos jornalísticos informativos [notas, notícias, entrevistas e reportagens] e opinativos [editoriais e articulistas]. A metódica de observação baseou-se no conceito de "unidades informativas", adaptadas às necessidades da pesquisa, identificadas nas páginas do veículo impresso. Processou-se a fase da pesquisa quantitativa, com a identificação do número de unidades encontradas. Na fase qualitativa os dados preliminares foram submetidos à análise e interlocução com especialistas das áreas do jornalismo e das questões raciais. Pesquisa sobre os jornais mais lidos no Congresso Nacional: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/08/1667021-folha-e-o-jornal-mais-lido-entre-deputados-dizpesquisa.shtml: acesso 1° de fev. 2016, às 10h02. 24 Disponível em http://decada-afro-onu.org/. Acesso em 02 de fev. 2016, às 12h33. 25 Disponível - http://ceaprj.org.br/. Acesso em 21 de fev. 2016, às 8h31. - 136 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 entanto, à época, a divulgação da campanha dependia da cobertura feita por órgãos de comunicação comerciais, com repercussão restrita. A esfera pública do debate era restrita à militância negra e segmentos democráticos próximos. O Fórum Nacional de Juventude Negra articula-se apoiado nas redes sociais. Nas cidades e estados, os coletivos contam com dispositivos que permitem o acesso à rede mundial de computadores. Suas articulações se estendem para além das fronteiras nacionais. A campanha contra o extermínio é acompanhada por diversos núcleos espalhados pelo território virtual das redes sociais. As organizações trocam informações, dados, entrevistas, pesquisas e estratégias pelas vias digitais. Esses arranjos transformaram-se em pontos de cultura e difusão. São polos aglutinadores de coletivos culturais, como a Rede Nacional das Casas do Hip Hop 26, com diversas linguagens [música, dança, grafite, teatro], formas de organização [espaços tradicionais da cultura negra, partidos políticos, organizações culturais], segmentos sociais [estudantes, trabalhadores fabris, artistas] e objetivos políticos [movimentos negros, feministas, LGBTT, direitos humanos]. Dispostas de forma horizontal e disseminadas pelo território nacional, essas articulações reivindicam liberdade política nas cidades (HARVEY, 2013). Elas são as bases de sustentação do exoesqueleto tecnológico para a produção de conteúdo, em diversas linguagens e plataformas. Seu sistema de articulação prescinde dos meios de comunicação social hegemônico. A campanha contra o extermínio mobiliza, debate, cria demandas institucionais, provoca a ação dos poderes institucionais [legislativo, judiciário e executivo] nas três esferas políticas [município, estado e federal], reivindica políticas públicas, denuncia a violência e duela com as formas correlatas de racismo. 26 Disponível em https://www.facebook.com/Rede-Nacional-das-Casas-da-Cultura-Hip-Hop- 841069562655270/. Acesso em 20 de fev. 2016, às 14h. - 137 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O sistema de veiculação de conteúdo desenhado para campanha forma uma esfera pública radical [reivindica mudanças estruturais nas condições de vida da juventude negra], precária [contra hegemônica e subalterna], ativa [mobilizada e propositiva] e pública [articulada com os demais segmentos sociais interessados na superação da violência]. Ele é o ambiente de inovação de linguagem, formatos, plataformas e estratégias de ação política. Nos momentos agudos de conflitos específicos [contra o extermínio] e gerais [contra as políticas neoliberais de corte de direitos], sua capacidade de produção de conteúdo rompe o cerco da mídia empresarial e, ao pautar essa mídia, atinge a esfera pública de debate, com sua defesa do direito à vida. Assim, a paisagem das organizações da juventude negra caracterizase pela apropriação dos dispositivos digitais, organizados em ateliês criativos, com conexão internas e externas e a constituição de um exoesqueleto de produção, distribuição e fruição de teor político no enfrentamento ao preconceito, à discriminação, ao racismo e ao extermínio da população negra, jovem, pobre e moradora das periferias brasileiras. Considerações Finais O extermínio de jovens negros, pobres e moradores das periferias dilaceram as famílias afrodescendentes. A execução dessa juventude desarticula o núcleo familiar, impede a possibilidade de mobilidade vertical e congela esse segmento social no porão da desigualdade, que caracteriza a sociedade brasileira, à despeito dos avanços dos últimos anos. A morte de jovens negros, fenômeno em escala ascendente, não tem a atenção requerida, pela gravidade da situação, dos veículos de informação. Os dados não repercutem nos meios de comunicação mercadológicos e hegemônicos na sociedade. Nesse vazio informativo articula-se o sistema de comunicação, baseado nos ateliês criativos da juventude negra, e nas conexões formadas por esses arranjos. Essas organizações apropriaram-se do exoesqueleto digital para a produção de conteúdo contra hegemônico. A campanha contra - 138 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 o extermínio da juventude negra é veiculada pelo exoesqueleto digital, desafia a invisibilidade imposta pelos meios corporativos, rompe com o "cordão sanitário" montado pelas mídias do mercado, pauta o debate público entre os segmentos sociais envolvidos e formula políticas públicas reversivas. Pelas redes digitais, a juventude negra veicula informações e ações estratégias para o enfrentamento do preconceito, da discriminação, do racismo, desafia a omissão da mídia comercial, e aponta alternativa para a transposição do cenário de violência. Referências Bibliografias ABRAMO, P. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. BRIGGS, A.; BURKE, P. Uma história social da mídia: de Gutenberg à internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004. CHAUÍ, M. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. DOWNING, J. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: Editora SENAC, 2002. GENRO FILHO, A. O Segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. (Porto Alegre: Tchê, 1987). GINZBURGO, C. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. HARVEY, D. A liberdade da cidade. In: Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013. KOVACH, B; ROSENSTIEL, T. Os elementos do jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. São Paulo: Geração Editorial, 2003. 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Atua como uma escola de cinema indígena oferecendo oficinas de formação em audiovisual e desempenha papel fundamental como entidade responsável pela captação de recursos, produção e distribuição dos filmes27. Os três documentários que escolhemos para a presente análise têm em comum o fato de se dirigirem aos espectadores não-indígenas, seus enunciatários, como se fossem uma resposta que lhes é destinada. Esses filmes, como sugere Ruben Caixeta de Queiroz, permitem-nos pensar em uma espécie de retorno do olhar dos indígenas para os não-indígenas: “um olhar dos índios para o nosso mundo (dos ocidentais, ou dos brasileiros) e para o que o nosso mundo fez do mundo deles, e o que eles gostariam de fazer do nosso mundo” (CAIXETA DE QUEIROZ, 2008, p. 115-116). 27 Para um histórico do projeto VNA, ver Juliano José de Araújo (2015, p. 75-110), notadamente o capítulo “O audiovisual em comunidades indígenas: das experiências pioneiras ao projeto Vídeo nas Aldeias” . - 142 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Consideramos essa resposta ou retorno do olhar dos indígenas nos documentários do projeto VNA como uma manifestação daquilo que Manuela Carneiro da Cunha (2014, p. 373) denominou por “cultura” – lê-se “cultura com aspas” –, ou seja, “o metadiscurso reflexivo sobre a cultura”, “como recurso e como arma para afirmar identidade, dignidade e poder diante de Estados nacionais ou da comunidade internacional”. A categoria de “cultura” proposta pela antropóloga diferencia-se da cultura. A cultura sem aspas, como ela aponta, segundo o consenso contemporâneo na antropologia, seria “um complexo unitário de pressupostos, modos de pensamento, hábitos e estilos que interagem entre si, conectados por caminhos secretos e explícitos com os arranjos práticos de uma sociedade” (TRILLING citado por CARNEIRO DA CUNHA, 2014, p. 357). A cultura com aspas, por sua vez, remete a um “sistema interétnico”, proveniente, no caso em questão, do contato entre indígenas e nãoindígenas. A cultura dos não-indígenas seria, então, “adotada e renovada” pelos indígenas, assumindo “um novo papel como argumento político” e servindo de “arma dos fracos” (CARNEIRO DA CUNHA, 2014, p. 312, grifos meus). É nessa perspectiva que entendemos ser pertinente uma aproximação dos documentários que analisaremos com o pensamento da autora. É interessante observar os povos indígenas apropriando-se da escrita, do direito, da matemática, da medicina etc., em um movimento que se faz, inclusive, na ida deles à universidade para realizar um curso superior, apropriar-se do conhecimento não-indígena e, posteriormente, retornar com a bagagem adquirida em prol de suas comunidades. Processo semelhante ocorre com os recursos audiovisuais que podem também desempenhar uma importante ação política. Nessa perspectiva, pretendemos discutir três aspectos políticos presentes nos documentários elencados para este estudo: como processos discursivos alternativos para a representação da história dos povos indígenas; como instrumento de afirmação da identidade e cultura indígenas; ou ainda como instrumento de denúncia, reivindicação e visibilidade dos povos indígenas. Vejamos as análises desses documentários. - 143 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Desterro Guarani é um filme no qual o cineasta indígena Ariel Ortega faz uma reflexão sobre o processo histórico de contato dos MbyaGuarani com os colonizadores, tentando entender como seu povo foi destituído de suas terras. O filme é conduzido por um comentário em voz over de Ariel que, além de realizador, é também um dos personagens presente em várias sequências, seja conversando com os entrevistados seja filmando. Na sequência inicial, a câmera acompanha de perto dois anciãos Guarani, Mariano Aguirre e sua esposa, que caminham em uma estrada de chão, nas proximidades da aldeia em que moram até um ponto de ônibus. Depois, em uma espécie de mise en abyme, onde uma câmera que está fora de campo filma a outra que está em cena – gesto que será repetido várias outras vezes no documentário –, vê-se, na imagem, Ariel filmando-os, momento em que Mariano diz bom dia. Sem mais nada dizer, eles são observados pela câmera que, em uma das tomadas seguintes, enquadra Mariano no primeiro plano e à direita da tela, sendo gradativamente desfocado até que se vê, em segundo plano e no centro do quadro, uma placa na qual está escrito “Aldeia Guarani” com uma seta apontando para a esquerda. Ouve-se, então, um comentário em voz over, narrado em Guarani e na primeira pessoa, explicar o porquê do filme, enquanto se acompanha, na imagem, a viagem de ônibus dos dois anciãos até as ruínas de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul: Quando os brancos veem essa placa, será que eles pensam que a gente sempre esteve aqui, neste mesmo lugar? Ou será que eles entendem que muito antes dos avós deles chegarem nós andávamos por este vasto território enquanto ele ainda era floresta? É que os brancos chegaram há muito tempo. E esses templos, as Tavas, são ruínas que se confundem com a nossa história. Hoje, a gente vem até essa ruína pra vender artesanato, já que não temos terra para plantar e praticamente não existem matas. (...) o que eu queria entender neste filme é por que quase não temos terra se nós andávamos por esse território todo antes dos brancos chegarem e já que fomos nós que construímos essa Tava. - 144 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O documentário estrutura-se em quatro grandes blocos temáticos que revelam ao espectador uma forte ligação dos Guarani com as ruínas da antiga redução jesuítica de São Miguel, denominada na língua deles por “Tava”, e que foram tombadas como Patrimônio Histórico da Humanidade. A historiografia tradicional, entretanto, como explica Carlos Eduardo Neves de Moraes (2010, p. 6), nega essa relação dos atuais indígenas com os Guarani do período das missões, alegando que a presença deles remete ao início do século XX. Desterro Guarani, em contrapartida, procurará desconstruir essa visão oficial da história, na medida em que o documentário preocupa-se justamente em valorizar as dimensões pessoais e familiares de sujeitos que não tem voz por pertenceram a grupos minoritários. O primeiro bloco do filme evoca a história da etnia a partir de entrevistas e depoimentos dos anciãos indígenas Francisco da Silva, Adolfo Silveira e Santiago Franco que meditam sobre a história da comunidade. Cada um dos indígenas conta para Ariel e Patrícia as suas versões sobre a “Tava” que, na verdade, revelam inúmeros pontos comuns e vão sendo apresentadas ao espectador que pode, assim, ter acesso à uma outra face da história, pouco discutida e que pode ser sintetizada nos seguintes pontos: a antiga redução jesuítica ou “Tava” foi, de fato, ao contrário do que afirma a história oficial, construída pelos antepassados dos Guarani; a Guerra Guaranítica, diferentemente do que é afirmado pelos brancos, não dizimou todos os indígenas, pelo contrário, o guerreiro Sepé, líder dos Guarani, na verdade fingiu que morreu para enganar os não-indígenas, notadamente os espanhóis; após esse confronto, os Mbya-Guarani, guiados por Sepé, seguiram caminhando pela região enquanto fazendas foram crescendo e se espalhando pelos territórios tradicionais dos indígenas. O segundo bloco apresenta depoimentos e entrevistas de participantes mais recentes da história Guarani. O primeiro deles é Olívio Dutra, ex-governador do Rio Grande do Sul que afirma ter sangue indígena e comprou terras para os Guarani durante seu mandato, tendo em vista a demora para a demarcação, e ressalta que praticamente todo o território do Rio Grande do Sul pertencia aos Guarani no passado. O segundo é Emílio - 145 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Correa, funcionário do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de São Miguel, que explica que os Guarani nunca abandonaram a região, como alguns insistem em argumentar, mas que sempre estiveram ali caminhando de um local para outro em função das necessidades de sobrevivência, como a busca por alimentos, fontes de água etc. O terceiro é Inácio Kunkel, filho de colonos alemães da região missionária, que prestou serviços de apoio à saúde indígena e explica que era muito comum uma aldeia ser atendida e, dias depois, não haver mais ninguém ali. Kunkel afirma que, nesse sentido, a própria Fundação Nacional do Índio considerou por certo tempo os Guarani como extintos. O terceiro bloco do documentário, dando continuidade à questão levantada por Kunkel dos deslocamentos dos Guarani, dedica-se à reflexão sobre a ideia de retirada como uma prática de resistência à medida que, diante de ameaças e represálias de não-indígenas, os Guarani deslocavam-se para outro local, escondiam-se nas matas ciliares dos rios, ou simplesmente mudavam atendendo a um sinal de Nhanderu, o seu deus, que mostrava o melhor local para irem. Trata-se, como afirmam os depoimentos dos anciãos indígenas do primeiro bloco, da “caminhada sagrada”, fundamental para os Guarani. É nesse contexto que merece destaque o comentário em voz over de Ariel que explica a relação dos Mbya-Guarani com a terra, a qual é radicalmente diferente da sociedade não-indígena, visto que eles não têm a noção de propriedade privada: Nós, os Guarani, nunca dizemos que a terra é nossa. Por isso que sempre caminhávamos e, em alguns lugares, ficávamos 5 ou 6 anos. Depois, íamos para outro lugar. É que o lugar deixado continua sendo uma aldeia e por isso acabamos voltando para lá algum dia. Pros nossos avós, todo esse território é uma grande aldeia. Embora tenham essa concepção, Ariel explica que eles começaram a lutar por seus territórios tradicionais, notadamente a partir da Constituição de 1988 que assegurou o direito à terra aos povos indígenas, assunto que será discutido no quarto bloco do documentário. Nessa parte, os realizadores - 146 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 empregam, inicialmente, imagens de arquivo de reportagens de televisão da década de 1990 que mostram indígenas acampados às margens de rodovias em péssimas condições de vida, pedindo esmola no centro de Porto Alegre, ou, mais recentemente, participando junto com antropólogos e autoridades governamentais das discussões sobre demarcações das terras indígenas, que, como é o caso do Rio Grande do Sul, ainda precisam ser concretizadas. Após essa breve contextualização, Ariel explica no comentário em voz over que como estratégia eles passaram a ocupar terras e reivindicá-las. “Já que não podemos caminhar livremente pelo território, assim podemos, pelo menos, transitar entre essas aldeias demarcadas”, diz o cineasta, cuja narração é ressaltada pelos depoimentos de Olívio Dutra e Emílio Correa que defendem a demarcação. Tem-se, em seguida, uma sequência que mostra Ariel, Emílio, Mariano e Patrícia visitando a região da mata São Lourenço, próxima das ruínas de São Miguel das Missões e que está sendo reivindicada pelos indígenas. “Foi aqui nesse lugar que nós ficamos acampados. E mais pra lá tinha gente também. Era lá que o Cipriano morava, lá na beirada do mato. Chegamos aqui em 20 de novembro de 1999. Eu acho que foi em 2011 que a gente se mudou (...)”, comenta Mariano enquanto é observado pela câmera e caminha livremente pela mata admirando a natureza. “Tenho o sonho de vir pra cá”, responde Mariano quando é questionado por Emílio se vai se mudar caso a demarcação seja aprovada. Outras imagens de arquivo dos anos 2000 são mostradas em que várias lideranças indígenas discutem em encontros nas aldeias a importância das demarcações de seus territórios tradicionais e, sobretudo, denunciam a inércia do Estado em agilizar os processos. A sequência final de Desterro Guarani traz um grande número de indígenas Mbya-Guarani que, guiados pelos líderes espirituais, fazem um ritual, uma espécie de metáfora da caminhada sagrada. Reunidos, eles ouvem atentos o velho Adolfo dizer: “Por que será que nós estamos aqui mais uma vez? Quando Nhanderu nos levanta, ele põe em nossa mente a sabedoria (...). Eu estou falando isso porque estou chorando por dentro vendo a nossa - 147 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 situação. Devemos seguir em frente mesmo nas piores condições”. Após o discurso de Adolfo, ouve-se também o de Santiago Franco: “Os Guarani viviam felizes, havia matas boas nessa terra. Mas aí chegaram os brancos e mataram os Guarani (...). Os brancos não podem mais nos tratar assim no futuro”. Após esses dois discursos proferidos em um tom de crítica, desabafo e protesto à sociedade não-indígena, vê-se, na imagem, uma anciã indígena fazer uma espécie de ritual no qual evoca a força do sol que lhes é dada diariamente por Nhanderu pedindo para que os Mbya-Guarani sejam guiados por um bom caminho. O plano seguinte mostra um grupo de indígenas, enquadrado em plano geral, que caminha e canta em uníssono uma música típica Guarani, produzindo o efeito de sentido de que os indígenas continuarão na luta por seus direitos. Consideramos que o documentário Desterro Guarani apresenta uma interessante construção narrativa para a história dos Mbya-Guarani, contada não a partir de registros históricos oficiais, mas sob o ponto de vista da comunidade indígena em questão, como procuramos mostrar. Destacamos a maneira como o documentário articula vários depoimentos e entrevistas de sujeitos ligados ao cotidiano da etnia, sejam indígenas ou não-indígenas. Isso possibilita ao espectador justamente uma outra compreensão sobre a história dos Guarani da qual pensamos que seja importante ressaltar duas questões. A primeira diz respeito ao papel fundamental que a “Tava”, as ruínas da redução jesuítica, ocupa na memória coletiva dos Guarani, como os depoimentos dos anciãos indicam, sendo uma obra deixada por seus antepassados, apesar da história oficial negar essa relação. A segunda trata da dimensão mítica-cosmológica desses relatos, como a figura do guerreiro Sepé, que emerge da fala dos anciãos. Já Os Kuikuro se apresentam é um documentário do Coletivo Kuikuro de Cinema que apresenta um pouco da história dessa etnia, desde seus antepassados, passando pelos seus conflitos com os não-indígenas e, notadamente, as mudanças de suas vidas no mundo atual. Apesar de ter a duração de apenas sete minutos e uma montagem dinâmica, com planos curtos que, em alguns momentos, lembram um ritmo televisivo, cremos que - 148 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 se trata de um filme que consegue, por um lado, desconstruir a imagem estereotipada dos povos indígenas e, por outro, mostrar, de forma didática, a intrincada e complexa relação da identidade e cultura indígenas proveniente do contato e convivência dos Kuikuro com a comunidade circundante. A narrativa do documentário constrói-se com imagens em um estilo observativo, às quais se soma a narração em primeira pessoa de Mutua Mehinaku, um professor indígena presente em quadro na maior parte das tomadas, seja dirigindo-se ao espectador, à medida que o interpela quando olha diretamente para a câmera, ou com seu comentário em voz off em outros momentos. O filme estrutura-se, basicamente, em três sequências: a primeira, na cidade de Canarana, no Mato Grosso; a segunda, dentro de um avião, que faz o trajeto do referido município até a aldeia Kuikuro de Ipatse, localizada no Parque Indígena do Xingu; e a terceira, a mais longa do documentário, na aldeia Kuikuro. Gostaríamos, nesse sentido, de apontar alguns elementos de cada uma dessas sequências tendo em vista a análise que estamos fazendo. A primeira sequência de Os Kuikuro se apresentam traz imagens da área urbana do município de Canarana. O espectador vê, inicialmente, a tomada de uma praça da cidade, a qual tem um monumento de uma cuia de chimarrão e uma chaleira. Em seguida, há tomadas de algumas ruas da cidade e de um centro comercial, momento em que a imagem mostra uma garçonete não-indígena caminhando com uma bandeja na mão, destacando-se o fato dela ter uma pintura tipicamente indígena em seu braço direito feita com tinta de jenipapo. Os planos seguintes trazem um jovem indígena trajando bermuda, camiseta e tênis, além de uma mochila nas costas, que caminha no interior do centro comercial, e duas mulheres indígenas acompanhadas de duas crianças que fazem compras nesse mesmo local. Essa sequência de imagens é coberta pela música “Gaúcho amigo”, de Teixeirinha, inserida na montagem, destacando-se, notadamente, o seu refrão que diz: “Tá garoando lá fora! Boleia a perna, gaúcho! E chegue cá pro galpão, onde tem chimarrão não precisa ter luxo!”. - 149 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Essa primeira sequência do documentário poderia causar um estranhamento e chocar um espectador purista. Pensamos, aqui, particularmente nas considerações de Ella Shohat e Robert Stam (2006, p. 71) quando afirmam que as fotografias de indígenas Kayapó usando filmadoras “que apareceram na Time e no New York Times Magazine derivam sua capacidade de chocar justamente da premissa de que ‘nativos’ devem ser exóticos e simples e de que índios ‘de verdade’ não carregam câmeras de vídeo”. É nesse sentido que uma leitura atenta dessa primeira sequência de Os Kuikuro se apresentam revela a forte relação dos Kuikuro com o mundo não-indígena, em particular com a cidade de Canarana, que surgiu na década de 1970 quando se instalaram na região os primeiros agricultores recrutados no município gaúcho de Tenente Portela pela Cooperativa Colonizadora 31 de Março Ltda. Fotograma 1 & Fotograma 2 - 150 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Fotograma 3 & Fotograma 4 - 151 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Fotograma 5 & Fotograma 6 O documentário terá, dessa forma, como fio condutor a questão da identidade e cultura indígenas, mostrando que os Kuikuro, como também os não-indígenas (figurativizados na sequência notadamente pela garçonete), estão sempre abertos às influências culturais. É importante, contudo, ter em mente que esse processo de sincretismo, como defendem Shohat e Stam (2006, p. 81), não ocorre de maneira pacífica e compreende, evidentemente, uma série de relações de poder, dada a imposição, assimilação forçada, cooptação etc. da sociedade ocidental para com os indígenas. A segunda sequência do filme em análise marca uma espécie de transição do espaço urbano de Canarana para a aldeia indígena dos Kuikuro, mostrando os mesmos indígenas que estavam no centro comercial no interior de um avião, do qual é possível ver, inicialmente, através da imagem que enquadra uma janela, uma vasta mata e um rio e, depois, várias ocas da aldeia, até o pouso da aeronave e a sua recepção por várias crianças que - 152 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 correm para vê-la. A terceira sequência de os Os Kuikuro se apresentam inicia-se com a narração do professor Mutua: “Nós somos os Kuikuro. Temos três aldeias. Somos mais de 500 pessoas e vivemos no Alto Xingu, em Mato Grosso”. Queremos destacar, em particular, os fotogramas de número 1 a 6, nos quais se vê uma interessante alternância de imagens que remetem tanto à ideia de tradição como à de modernidade ou, como diz Caixeta de Queiroz (2009, p. 55), respectivamente, à “permanência cultural” e à “mudança cultural”. Acreditamos que esse conjunto de fotogramas permite uma melhor compreensão sobre a representação da identidade e cultura indígenas presentes nesse documentário, revelando que as comunidades indígenas, como defende Stuart Hall (2011, p. 80), não “são lugares ‘fechados’ – etnicamente puros, culturalmente tradicionais e intocados até ontem pelas rupturas da modernidade”. Essa visão é, como reflete o autor, justamente “uma fantasia ocidental sobre a ‘alteridade’: uma ‘fantasia colonial’ sobre a periferia, mantida pelo Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas como ‘puros’ e de seus lugares exóticos apenas como ‘intocados’” (grifos do autor). Por fim, analisemos o documentário Duas aldeias, uma caminhada, dirigido pelos cineastas indígenas Ariel Ortega, Jorge Morinico e Germano Beñites. Nesse filme, os três cineastas acompanharam o cotidiano de duas comunidades Mbya-Guarani no Rio Grande do Sul, enfocando a relação delas com a terra, da qual foram privadas pelos não-indígenas: a primeira chama-se Aldeia Verdadeira e fica em Porto Alegre, cercada pela cidade; a segunda, a Aldeia Alvorecer, localiza-se em São Miguel das Missões, a cerca de 500 quilômetros de Porto Alegre, um território que já pertenceu aos Guarani e hoje foi transformado em local turístico para os não-indígenas. Destacaremos três sequências desse documentário. A primeira mostra uma jovem indígena sentada em uma calçada no centro de Porto Alegre expondo algumas peças de artesanato que estão à venda. Chama a atenção nas imagens o olhar perdido da moça que, literalmente, olha para o nada, além de estar, de certa forma, invisível naquele - 153 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 espaço estranho que é a zona urbana e diante dos pedestres que caminham pela rua. A imagem seguinte apresenta uma senhora e uma criança indígenas, também sentadas no chão de uma calçada vendendo artesanato. O último plano dessa sequência, por sua vez, mostra uma criança indígena sozinha em uma calçada pedindo esmola com uma pequena cesta de dinheiro. Destacase, da mesma forma que a imagem inicial dessa sequência, o aspecto de invisibilidade da menina, sendo ressaltado pela câmera fixa que a observa do outro lado da rua durante alguns segundos e retrata o ir e vir de pedestres no centro da cidade, os quais sequer a notam ali. A segunda sequência apresenta o cacique da aldeia Verdadeira, José Cirilo Morinico, em um tom introspectivo, sentado e observando um carro que se aproxima da aldeia, quando se ouve de um alto-falante de um veículo uma voz que diz: “Olha a banana, olha a laranja, melancia, pimentão, cebola, pepino, pimentão. Olha o moranguinho, olha a manga, olha o pêssego”. Em seguida, têm-se imagens de uma mulher e uma criança comprando algumas frutas, legumes e verduras – que os Mbya-Guarani, para surpresa dos espectadores que assistem ao filme, não plantam mais –, as quais são observadas de longe pelo cacique que diz em depoimento: Os brancos sempre nos olham mal, mas eles mesmos nos colocaram num chiqueiro. Estamos como bichinhos ali cercados que alguém vai e coloca um pedaço de pão. E se ninguém der nada, a gente não come. Mas por que isso? Por que eles mesmos tiraram tudo. Eles mesmos, com a FUNAI, demarcaram o nosso território. Colocaram limites. A terceira sequência que nos interessa é a parte final do documentário, na qual é mostrada a visita de um grupo de turistas, professores e alunos não-indígenas às ruínas da igreja de São Miguel Arcanjo, uma das reduções fundadas na onda jesuítica na região do século XVII. Veêm-se, em planos alternados, os indígenas chegando ao local e arrumando seus artesanatos, à espera dos turistas, e os visitantes chegando com seus guias, observando o material de artesanato que está sendo vendido pelos Mbya-Guarani e, em alguns momentos, criticando os preços cobrados pelos - 154 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 indígenas. Apontaremos, em particular, dois momentos específicos dessa sequência, conforme descritos a seguir. No primeiro, está Mariano Aguirre, velho indígena que é acompanhado pela câmera enquanto desabafa: Por aqui, andaram os nossos parentes, mas os brancos tiraram tudo da gente e se apropriaram dessas ruínas que nossos parentes fizeram. Agora, eles não querem dar pra gente o que é nosso. Eles têm ciúmes desse espaço. Nossos parentes construíram isso forçados pelos brancos, os padres jesuítas. Eles forçaram os índios a trabalhar nisso. O depoimento de Mariano é articulado, por meio da montagem, a dois trechos em que são mostrados na imagem duas guias turísticas explicando para os visitantes as benesses da “história oficial”, segundo a qual, o homem branco trouxe “proteção” para os indígenas Mbya-Guarani, associada à ocupação e exploração das terras – como se os indígenas não soubessem fazer uso dela – e à expansão do catolicismo. As falas das guias turísticas são permeadas por tomadas de turistas que observam os indígenas vendendo artesanato e tecem alguns comentários, dentre os quais destacamos: Criança turista (em tom de espanto): Sabe quanto custa uma flecha? Criança turista: Dez reais! Turista: É usado, assim, para alguma coisa? Indígena: Só para brincar. Turista: Só para brincar? Mesma coisa a flecha? Indígena: Sim. Turista: E vocês ainda caçam com flecha, assim de verdade, ou não? Indígena: Agora não. O segundo momento diz respeito a uma entrevista feita pelo cineasta indígena Ariel Ortega com um dos turistas na qual se trava o seguinte diálogo: - 155 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Turista: A gente vê os alunos ficarem tristes vendo, principalmente, ali dentro do parque, a situação dos índios, sujos, dependentes de dinheiro e até... Ariel: Sujos? Turista: Sujos. E até pedindo dinheiro para fotografar, né? Para ser fotografado eles cobram. Então, é tipo um comércio com índio. Ariel: Você acha que os índios estão vendendo a sua imagem? É isso? Turista: Estão vendendo. Creio que sim. Estão aproveitando para vender sua imagem. Ariel: É que muitas pessoas vem, fotografam os índios, os Guarani, até filmam, e levam essa fotografia para outros lugares, para usar nos seus trabalhos, e ganhar dinheiro em cima disso. Turista: Ah, sim... Ariel: Eu acho que é isso que acontece. Cremos que o caráter de denúncia, reivindicação e visibilidade de Duas aldeias, uma caminhada é certeiro uma vez que os cineastas indígenas, por meio do documentário em análise, enquadram o olhar não-indígena. Interpelam os espectadores de uma maneira que os provoca, desconcerta e incomoda quando se assiste ao filme e se vê a situação de extrema dificuldade da comunidade Mbya-Guarani, a reclamação por seus territórios tradicionais, e a necessidade de se tornar visível diante da sociedade nãoindígena que os ignora. É nesse sentido que André Brasil (2012, p. 103) argumenta que em Duas aldeias, uma caminhada “aquele que sempre foi objeto do olhar, agora olha, firmemente, o olhar de que era objeto”, de certa forma, “como se a câmera fosse uma ‘dobradiça’, que fizesse retornar o olhar àquele que se acostumara a ser o sujeito do ponto de vista (e raramente o seu objeto)”. - 156 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Como resultado desse retorno do olhar, observa-se que “provocado pelo filme, o branco se vê – a si próprio – a enunciar sua visão limitada (tantas vezes, preconceituosa) sobre os índios” (BRASIL, 2012, p. 103), notadamente na sequência da entrevista feita por Ariel com o turista. Os espectadores nãoindígenas reconhecem-se ali no papel dos turistas “brancos” – os mesmos “brancos” responsáveis pelo etnocídio do qual as sociedades indígenas foram vítimas, e que solicitam modos de vida tradicionais dos Mbya-Guarani, como a turista que pergunta se os Guarani ainda caçam, “assim de verdade”, com flecha, ou os que simplesmente olham e observam os indígenas e tiram inúmeras fotos com suas máquinas fotográficas e celulares. Para finalizar nossa reflexão, gostaríamos de tecer algumas considerações a partir das análises que apresentamos. O primeiro documentário, Desterro Guarani, mostra o potencial que os recursos audiovisuais têm para atuar politicamente como processos discursivos alternativos à história oficial, nos moldes de “uma contra-História ou uma contra-análise”, realizada em uma abordagem “de baixo para cima”, sobretudo no caso de grupos minoritários, como os povos indígenas (FERRO, 2010, p. 11). Os Kuikuro se apresentam, por sua vez, revela-nos que os indígenas como também os não-indígenas não teriam, portanto, “uma identidade fixa, essencial ou permanente”, mas “várias identidades”, uma espécie de “celebração móvel”, “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2011, p. 12-13). Entendemos que a percepção desse processo é um passo fundamental para que se tenha uma melhor compreensão da identidade e cultura indígenas, na medida em que o filme analisado (re)elabora representações estereotipadas sobre os povos indígenas. Por fim, tendo em vista a função do documentário no âmbito das políticas de representação, tal como discutida por Bill Nichols (2008, p. 201), Duas aldeias uma caminhada constitui-se em uma importante estratégia política de “visibilidade social a experiências antes tratadas como exclusiva - 157 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 ou principalmente pessoais”, uma vez que nos apresenta, através das sequências analisadas, “as formas de luta necessárias para superar o estereótipo, a discriminação e a intolerância” (Grifos meus). Entendemos que a categoria de “cultura”, pensada em relação aos documentários do projeto VNA aqui analisados, trata da forma como “vários povos estão mais do que nunca celebrando sua ‘cultura’ e utilizando-a” com o intuito de “obter reparações por danos políticos” (CARNEIRO DA CUNHA, 2014, p. 313). REFERÊNCIAS ARAÚJO, J. J. de. Cineastas indígenas, documentário e autoetnografia: um estudo do projeto Vídeo nas Aldeias. Tese (Doutorado em Multimeios) – Universidade Estadual de Campinas, 2015. AUMONT, J. e MARIE, M. A análise do filme. Lisboa: Edições Textos & Grafia, 2009. BRASIL, A. “Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo”. In: Devires – Revista de Cinema e Humanidades. Belo Horizonte, volume 9, número 1, janeiro/junho 2012. CAIXETA DE QUEIROZ, R. “Cineastas indígenas e pensamento selvagem”. In: Devires – Revista de Cinema e Humanidades. Belo Horizonte, volume 5, número 2, julho/dezembro 2008. CAIXETA DE QUEIROZ, R. “Relações interétnicas e performance ritual: ensaio de antropologia fílmica sobre os Waiwai do norte da Amazônia”. In: FREIRE, M. e LOURDOU, P. (Orgs.). Descrever o visível: cinema documentário e antropologia fílmica. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. CARNEIRO DA CUNHA, M. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014. FERRO, M. Cinema e História. Tradução Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 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São Paulo: Cosac Naify, 2006. - 159 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Mulheres na Disney: representações e mudanças ao longo do tempo Cecília Soares de Paiva - UNESP Daira Martins Botelho - UNESP Maria Cristina Gobbi - UNESP Introdução Durante anos a Disney tem sido responsável por levar os contos de fadas para lares em todo o mundo, mostrando tais histórias sob uma ótica diferenciada, amenizada perante os contos "verdadeiros" escritos pelos irmãos Grimm, Charles Perrault ou Hans Cristian Andersen. Ao fazer uma comparação com as publicações e as animações produzidas pela Disney, é possível notar a adequação necessária para indicar tais produtos para o público infantil, o que resultou em imagens que povoaram o imaginário das crianças desde 1937, com o lançamento da animação "Branca de Neve e os sete anões". Em um movimento cíclico, pode-se perceber que a Disney enquanto produtora de conteúdo e disseminadora de produtos que chega a milhares de pessoas no mundo - produz e reproduz, por meio de suas personagens femininas, costumes e situações que remetem ao cotidiano. A empresa - como qualquer conglomerado midiático - aponta diretrizes culturais e também mostra as mudanças sócio-históricas com o objetivo de buscar identificação e aceitação de seu público. Dentre os vários aspectos possíveis para uma análise, optou-se por olhar para as mulheres que a Disney construiu e suas trajetórias ao longo do tempo. O contexto histórico é importante para entender a construção de tais personagens, assim como a visão do papel da mulher na sociedade. Hoje é possível verificar que foi apresentado outro tipo de adaptação acerca da representação da mulher contemporânea, a qual não se via mais representada nas figuras femininas - 160 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 propostas pela Disney desde a década de 1930. Além de se observar nitidamente a inversão de foco, que passa da mocinha para a vilã, com diferentes visões da estória. Este trabalho delimita, para análise, as personagens femininas mais significativas das produções, tais como Branca de Neve, Cinderela, A Pequena Sereia e mulheres que estão ao entorno na estória, e verifica suas características remotas e recentes, além da relação que se estabelece entre mídia e sociedade. É preciso lembrar que essas personagens não são o objeto de discussão deste artigo, mas sim o processo comunicacional que envolve a mídia massiva e a cultura, em um movimento constante. Comunicação de massa e produção cultural A disseminação das produções culturais, como as cinematográficas, para o maior número de pessoas contempla o uso de meios e formas reconhecidamente acessíveis, preponderando os chamados meios de comunicação de massa, também aqui considerados no termo mídia. Envolve um processo comunicacional de transmissão de informações em que é possível vislumbrar, para este estudo, dois marcos conceituais de discussão. Um deles concentra-se nos estudos de compreensão e denúncia dos efeitos nocivos ocasionados pela hegemonia dos meios, em uma passividade do sujeito receptor diante da circulação de ideias das classes dominantes e sua manutenção no poder. Nesses enfoques, discute-se uma condicionante unilaterial da comunicação, em um fluxo de informações de caráter dominador e manipulador para uma massa acrítica (RICCITELLI, 2008, p. 11; MENDONÇA, 2006, p. 27). Tal preocupação encontra-se, por exemplo, nos estudos sobre o conceito de indústria cultural defendido nas referências sobre a Teoria Crítica, especificamente por Theodor Adorno e Max Horkheimer, os quais, no contexto das modernizações industriais dos anos 40, "analisam a produção industrial dos bens culturais como movimento global de produção da cultura como mercadoria" (MATTELART, 2005, p. 77). - 161 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Essa constatação impositiva dos meios ameniza-se até ser possível distinguir outro marco ou vertente de estudos, que ressalta as diferenças individuais, a atenção, a percepção e a seletividade dos públicos. Por esse viés, as teorias tendem a repensar o termo massa, de natureza amorfa, e discorrem sobre o termo público (MATTELART, 2005, p. 25). Nisso, encontramos análises sobre públicos segmentados; processos de recepção; meios de comunicação dirigidos; estudos de audiência; entre outras especificidades de realização do processo de comunicação. Mattelart cita estudos relevantes dos anos 40 e 50 sobre o "duplo fluxo da comunicação", com pesquisas sobre a influência dos públicos sobre os meios, em que a produção midiática estaria submetida ao comportamento das pessoas, com práticas de "modelos que codificavam os graus (consciência, interesse, avaliação, tentativa, adoção ou rejeição que serviram de grade para determinar os modos de comunicação" (MATTELART, 2005, p. 48). Para Riccitelli (2008), assinalou-se, a partir dos anos 70, a importância dos conhecimentos prévios e dos contatos personalizados para a decodificação das mensagens, além da preocupação pela tarefa de distinguir os meios de acordo com o interesse e a participação do público. Registramos que, embora essa distinção encontre seu ápice na força da Internet, na sua interatividade e personificação de emissor e receptor em um único indivíduo, os meios e produções tradicionais acompanham toda a evolução tecnológica e também são vistos como agentes de construção da realidade (CANCLINI, 2006; RICCITELLI, 2008). Ante as teorizações dos chamados estudos culturais, há uma comprovada apropriação dos meios de comunicação pelos públicos, na disposição de suas inquietudes e até na imposição de temas que lhes interessam; na aquisição ou recusa por este ou aquele produto; entre outras especificidades da vida social e cotidiana (CANCLINI, 2006; HALL, 2002; MATTELART, 2005). Nesse sentido, interessa-nos quando Mattelart fala dos estudos de gênero, especialmente nas colocações acerca de dar atenção às expectativas do público feminino nas produções de novelas. Conta ele que - 162 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 estudos demonstram como a abordagem da novela é construída, cuidando de dar respostas contextualizadas e associadas ao universo das espectadoras (MATTELART, 2005, p. 149). Associamos tal abordagem ao objeto deste estudo porque vimos, além das subjetividades individuais de escolha e de resistência das audiências, as fundamentações dos próprios estudos teóricos que examinam, cada vez mais, a força decisora dos consumidores do produto cultural: Terra incógnita, o consumidor torna-se, na verdade objeto e sujeito das pesquisas, como demonstra o fortalecimento das técnicas de medição dos alvos e "estilos de vida", incessantemente refinadas graças às tecnologias informáticas de produção e armazenamento de dados sobre o indivíduo e os grupos. (... ) O saber sobre esses movimentos e desejos informará e alimentará a circularidade programação-produção-consumo, sempre instável, mas que tende à integração funcional e afetiva do consumidor como dispositivo. (CANCLINI, 2005, p. 156) Pouco ficou do receptor passivo e da condição impositiva. Isto se desfaz, por exemplo, quando a produção vem a ser ignorada ou refutada, de maneira que se torna inviável produzir ou manter determinado produto ou ação comunicacional se não há público que os aceite. Se o segmento público ou a própria sociedade deu por encerrado o seu querer, restam às produções culturais serem inovadoras e transformadoras da própria indústria que as produz. Sobre tais transformações, antes de se mostrarem revolucionárias, partem de produtos pré-concebidos, por meio das ressignificações e adaptações, justamente para que as mudanças necessárias sejam percebidas e, consequentemente, ocorram as adequações e o surgimento de novas indústrias e novos produtos. Como exemplo, é possível citar "as adaptações literárias para o cinema (que) são, efetivamente, releituras críticas do hipotexto e implicam produção de sentido, uma vez que a transposição das formas de um gênero a outro nunca é inocente." (ORRÜ, 2012, p. 2), ou seja, as adaptações são carregadas de história e cultura. - 163 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Contos de fadas e sociedade A partir dessas considerações, entramos no universo dos contos existentes em várias culturas, considerando-os em uma função social muito importante: trabalham as questões que devem ser desenvolvidas pelos indivíduos a fim de garantir uma convivência saudável na comunidade, já que muitas dessas estórias possuem uma lição a ser apreendida. Por isso, "A linguagem dos contos de fadas parece ser a linguagem internacional de toda a espécie humana - de idades, de raças e culturas." (FRANZ, 1981, p. 38). Como retratos da sociedade onde estão inseridos, os contos são reinventados a todo o momento para se adequarem ao tempo presente, em uma tentativa de aproximar os enredos da atualidade, ou seja, são adaptados de acordo com as mudanças sócio-históricas. As sociedades estão em constante mudança. Os elementos responsáveis pelas transformações dizem respeito ao ambiente, que sofre as alterações climáticas -sejam essas fruto da ação do homem ou não -, a tecnologia é um importante fator de intercâmbio, pois, "na verdade, a mudança tecnológica foi sempre crucial na história da transmissão cultural: ela altera a base material, bem como os meios de produção e recepção, dos quais depende o processo de transmissão cultural." (THOMPSON, 2009, p. 266). Na atualidade, é possível constatar que as sociedades estão cada vez mais ligadas à tecnologia, com acesso a diferentes veículos de comunicação, o que permite a disseminação de conhecimento e a troca de informação em um espaço de tempo muito mais curto, além das variadas plataformas, como as virtuais. Essa interação é questionada por conta da universalização da cultura, deixando de lado a individualidade de cada comunidade, região ou país. Assim como a prensa de Gutemberg foi responsável por uma revolução na História, a comunicação dinâmica de hoje leva a transformações significativas em todos os âmbitos: biológico, social, cultural. Ao fazer uma alusão à internet, Thompson (2009) indica como essa - 164 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 plataforma pode alterar a vida dos indivíduos: "Ao separar a interação social do local físico, o desenvolvimento dos meios técnicos afeta, também, as maneiras como, e o quanto os indivíduos são capazes de gerenciar sua autoapresentação." (p. 302). A junção de elementos do passado e do presente é constante quando se trata de contos de fadas, e é possível encontrar indícios dessas estórias em diferentes produtos midiáticos. As empresas de comunicação aproveitam essa linguagem internacional e usam as obras completas ou elementos e personagens para alcançar variados públicos. Assim, Ao longo dos tempos, inúmeras versões dos "contos de fadas"foram sendo registradas e a produção que inicialmente nasceu de origem partilhada, ou seja, composta pelos contos populares que constantemente modernizavam a história, adicionando elementos e, muitas vezes, atenuando detalhes intrigantes, de acordo as exigências sociais e valores de cada época, foi sendo transposta ora de forma fechada, como no caso das versões da Disney, ora de forma aberta, como pode-se perceber nas versões interativas. (ORRÜ, 2012, p. 1 - 2) Tanto os acontecimentos históricos, quanto a ação dos meios de comunicação influenciam essas mudanças nos contos de fadas, por isso a apresentação de personagens pode se dar de maneira muito diferente da versão "original". Assim, "essa aparente traição ao texto-fonte é uma tentativa de preservar a significação original, não de modo especular, que seria impossível, mas no sentido de que um interpretante gera signos culturais diferentes ao ser transposto de um ambiente para outro (...)." (ORRÜ, 2012, p. 15). As adaptações feitas nos contos pela Disney desde 1937 serão abordadas sobre a ótica do papel da mulher na trama, aliado ao contexto sócio-histórico, com objetivode verificar de que maneira a comunicação e a cultura atuam em um processo contínuo de retroalimentação. Mulheres clássicas - 165 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A própria Disney28 indica que os primeiros desenhos são considerados clássicos, esse é um segmento que começou com o lançamento de A branca de Neve e os sete anões, em 1937. As produções que se seguiram foram Cinderela, no ano de 1950 e A bela adormecida, com a princesa Aurora, lançada em 1959.29 O desenvolvimento dessas narrativas gira em torno de acontecimentos trágicos, como a perda da mãe, disputas familiares, conflitos de identidade e todos os desfechos são em torno do amor entre homem e mulher que, na maioria dos casos, é apresentado como a solução para todos os problemas e a garantia de felicidade "para sempre". Tais versões produzidas pela Disney são compostas por uma representação princesa como mulher submissa, que acredita que o amor é o único caminho para a felicidade e que o casamento será a maneira de se realizar pessoalmente e, também, fugir dos problemas que enfrenta. Existe, ainda, um forte caráter maniqueísta nessas versões, já que os personagens são sempre posicionados em um único universo: o bem ou o mal. Não existe meio termo. 28 No site www.disney.com.br, a empresa chama de clássicos as animações que envolvem as princesas anteriores à Valente e Frozen, por exemplo. 29 As indicações cronológicas apresentadas neste artigo são encontradas no trabalho de DOMBROWSKI NETTO, Jéssica. O papel da mulher nos filmes das princesas da Disney, 2014. Ver referências. - 166 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Como representantes de uma determinada época, os contos se adaptam de acordo com a sociedade na qual estão inseridos, assim, "cada versão traz consigo o poder de retratar os fenômenos arquétipos de uma cultura, com o objetivo de satisfazer, ainda que inconscientemente, o imaginário de um povo." (ORRÜ, 2012, p. 6). Isso explica a trajetória que foi utilizada para criar as princesas e, no caso da Branca de Neve, trata-se da representação de mulheres da década de 1930, período anterior à Segunda Guerra Mundial, com viés patriarcal e com grande apelo às tarefas domésticas. A outra mulher representada na estória é a Rainha Má, que não mede esforços para acabar com aquela que é considerada a mais bela de todas. Uma luta do bem contra o mal. Padrão semelhante aconteceu com Cinderela, no entanto, há uma mudança que envolve o final da guerra - com a entrada de mulheres para o mercado de trabalho por conta da falta de mão de obra masculina perdida nos combates -, o auge do capitalismo norte-americano e o aumento do padrão de vida, o que pode ser visto em Cinderela, que não se alegra em cuidar do trabalho de casa e procura um marido que lhe proporcione conforto (LEPINSKI, 2014, s/p). Esse aspecto também é encontrado em outras mulheres na estória. A madrasta conseguiu casamento com o pai de Cinderela para manter o padrão de vida e buscava o mesmo para as filhas, que deveriam ir ao baile real para conquistar o príncipe. Já a fada madrinha está mesmo no papel de mãe, realizando o desejo de Cinderela. Aurora é a única das princesas que possui pai e mãe vivos, ou seja, não tem que lidar com a madrasta má, no entanto, passa pela maldição do sono por conta de uma fada que não foi convidada para seu batizado. Mais uma vez, é colocado o confronto entre a mocinha e a vilã, geralmente por motivo fútil. Rebeldia e luta contra o sistema A partir da década de 1990, inaugurada com o lançamento da animação A pequena sereia, em 1989, a Disney passou a retratar suas - 167 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 princesas com um enfrentamento da ordem imposta pela sociedade na qual viviam. Arial é adolescente, órfã de mãe, que enfrenta o pai para realizar o sonho de ver outros mundos, conhece o seu príncipe, que é humano e a narrativa se desenvolve na busca pela superação das adversidades para que o casal possa ficar junto. Suas irmãs são exageradamente vaidosas e são apresentadas em uma zona de conforto, diferente de Ariel. Bela, em A Bela e a Fera, é a responsável por evitar que seu pai fique preso no castelo da Fera e, em um acordo, oferece-se para trocar de lugar com o pai e viver no castelo. A animação mostra o conflito entre o medo da - 168 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 aparência e a descoberta da beleza interior, que levou Bela a se apaixonar por Fera que, na verdade, era um príncipe enfeitiçado. O enfrentamento aparece na história de Jasmine, a princesa que enfrenta a imposição de ter que se casar com um príncipe e escolhe o plebeu Aladdin, personagem que dá nome ao desenho de 1992. A mulher guerreira aparece em Pocahontas (1995), que se apaixona pelo europeu e ainda evita uma guerra entre seu povo e os colonizadores. Outra lutadora é Mulan (1998) que, para evitar que seu pai tenha que ir à guerra, apresenta-se em seu lugar vestida de homem. Antes da transformação, porém, sua mãe a leva para uma escola de boas maneiras, que deveria ensinar como se comporta uma mulher boa para casar. Criticada por seu comportamento não feminino, a personagem é considerada por Lepinski (2014) a primeira princesa a lutar pela igualdade de gêneros, pois busca o reconhecimento do potencial feminino e questiona a função da mulher, somente relacionada ao casamento. Com as mudanças históricas desde os anos 1960 - Cinderela já demonstrava que as mulheres estavam buscando não somente um marido, mas uma posição na sociedade - as mulheres passaram a ser consideradas no mercado de trabalho, em um movimento de emancipação feminina, que foi marcado, também, pelo movimento feminista e a luta pelos direitos das mulheres. Mulheres da atualidade Com a mudança do papel da mulher na sociedade, as mudanças também ocorreram com as mulheres da Disney, até mesmo pelo fato da identificação dos personagens e a aproximação com o "mundo real" fez com que os enredos fossem construídos com novas abordagens. As narrativas mais recentes mostram uma inversão do enfoque relacionada às protagonistas. A figura do príncipe passa a ser a de coadjuvante, pois possui sua importância, mas a estória passa a ter como centro as personagens femininas. - 169 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Em 2009 a Disney faz o lançamento de A princesa e o sapo, uma das versões do príncipe que é transformado em sapo e espera que uma princesa o beije para quebrar o encanto. Na estória, que conta com a primeira princesa negra da Disney, o beijo que quebraria o feitiço transforma Tiana em sapo e a aventura segue até que os dois voltem a ser humanos. Tiana tem como objetivo não o casamento, mas a questão profissional: abrir um restaurante. A princesa que o sapo procura, na verdade, não é Tiana, é uma outra moça que pode ser considerada uma princesa clássica. Outro enfoque diferenciado é a estória de Enrolados (2010). Uma versão moderna de Rapunzel que traz os personagens do conto, mas mostra uma princesa muito mais ativa e que não fica à espera do príncipe. O casal acaba atuando em equipe para atingirem seus objetivos. A estória da ruiva Merida em Valente (2012) trouxe uma princesa que resolveu lutar, em um campeonato, pelo seu próprio destino. Diferentemente dos outros contos, o enfoque está na relação entre mãe e filha, já que a mãe é transformada em urso e Merida tenta quebrar o feitiço. Na mais recente produção da Disney, Frozen - Uma Aventura Congelante, lançada em 2013, as relações familiares também são colocadas em evidência, nesse caso, entre irmãs. O amor homem-mulher é deixado em - 170 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 segundo plano, tanto que não é um príncipe que dá o beijo de amor verdadeiro, mas sim Elsa, a irmã de Anna, salvando-a do congelamento. A Disney passou a tratar de estórias de princesas também em filmes com personagens reais, além das animações. Em 2001, mostrou a personagem Mia, no filme Diário da Princesa, que descobre ser filha de um príncipe quando sua avó começa a treiná-la para a sucessão real. Até então, Mia acreditava que seu pai havia morrido e que fora criada somente pela mãe. Um conto de fadas moderno que mostra a transformação da protagonista, o que pode ser entendido como um rito de passagem da infância para a idade adulta. O filme seguinte a retratar o universo dos contos de fadas foi Encantada (2007), que, com toques de animação, mostrou a trajetória de - 171 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Giselle, a princesa que foi enviada para a cidade de Nova Iorque para que não se casasse com o príncipe. No "mundo real", Giselle age como em seu mundo: fala com os animais, canta e dança levando uma legião de pessoas consigo. Com as atitudes das princesas clássicas, ela inova ao escolher ficar com o homem que conhece no "novo" mundo. O direcionamento da trama se volta para a vilã da Bela Adormecida na versão de 2014, Malévola. O filme aborda a transformação da ersonagem depois de uma desilusão amorosa com a traição de seu escolhido. Nessa adaptação, há maior preocupação em retratar Malévola como uma pessoa ambígua, assim como são todos os seres, livrando-se do caráter maniqueísta apresentado em produções anteriores. Outra diferença é o beijo que quebra o feitiço, dado por Malévola em Aurora, em vez de um príncipe. - 172 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O conto Cinderela foi adaptado para a versão fílmica em 2015, sob o mesmo título. Ella realiza a mesma trajetória da animação feita pela Disney em 1950: ambiente de castelos e florestas, com o mesmo enredo da princesa que perde o sapatinho de cristal e o príncipe passa a procurá-la para se casarem. O porvir A sociedade atual está em um processo interessante de empoderamento. Consequentemente, há uma cobrança maior em relação à representatividade em todos os âmbitos, assim como na produção cultural. O caminho feito para delinear as adaptações que mostram as mulheres representadas nos produtos Disney mostra a evolução desse gênero também na história. Por isso, é possível relacionar a questão da representatividade a essa trajetória. Em 2009 a Disney apresentou a primeira princesa negra, Tiana. Apesar de não confirmar que Elena de Avalor seja uma representante da cultura latina, é possível reconhecer traços físicos e do vestuário que remetem a latinidade apontada. - 173 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Considerações A trajetória apresentada neste artigo mostra a indústria cultural que, inicialmente, foi estudada como uma via de mão única, mas, com o passar do tempo os estudos mostraram outras vertentes que indicam um fluxo intenso de informações que não parte apenas do emissor, mas em que o produtor também precisa ouvir o seu público, já que a audiência é extremamente importante e também dita as regras desse jogo cultural. Por conta dessa troca de informações é possível encontrar mesclas de produtos culturais e história, que estão presentes nas narrativas, nas atitudes, no discurso. Isso pode ser comprovado pela análise das mulheres que a Disney apresenta em seus filmes e animações. O contexto sócio-histórico está representado nos perfis das princesas e dos personagens envolvidos na trama, mesmo que de maneira estereotipada. Ao ver a cronologia das produções, nota-se que as narrativas evoluíram de acordo com o entorno. Assim como a Barbie30 - mesmo após mais de 50 anos, que mudou para se aproximar de seu público, a Disney se adaptou e, aos poucos, vai refletindo seu próprio conteúdo. Estudos31 comprovam a influência da mídia e dos próprios contos de fadas nas crianças, por isso as mudanças notadas são relevantes e reiteram a proposta deste trabalho, que é mostrar de que maneira os produtos culturais estão em constante troca com a sociedade. Independentemente do motivo seja relativo à audiência e ao mercado -, não há como fugir desse processo. E esse movimento32 não passa despercebido, ele responde a uma demanda 30 Depois de uma pesquisa de opinião, a boneca Barbie será reformulada para tentar retomar as vendas e chegar mais perto das consumidoras: mães e filhas. Matéria disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160129 barbie diversidade fn>. Acesso em: fev/2016. 31 Como a pesquisa mostrada na matéria Estudo linguístico dos filmes da Disney revela que comportamento de personagens mudou. Disponível em: <http://www.ovale.com.br/viver/estudolinguistico-dos-filmes-da-disney-revela-que-comportamento-de-personagens-mudou-1.661399>. Acesso em: fev/2016. 32 Análise sobre os últimos filmes da Disney. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/questaodegenero/2014/06/03/malevola-frozen-e-valente-o-amorentre-mulheres-comeca-despontar/>. Acesso em: fev/2016. - 174 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 social ao mesmo tempo em que reflete as transformações sociais e culturais de várias épocas. Referências ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos - conflitos multiculturais da globalização. 6ã ed. 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Comunicação e cultura: um novo olhar. In: SOUZA, Mauro Wilton de. (org.). Recepção mediática e espaço público: novos olhares. p. 27 - 38. São Paulo: Paulinas, 2006. ORRÜ, Sílvia Regina Saraiva. Era uma vez a transposição literária: um passeio intersemiótico de branca de neve pelo audiovisual. Artigo apresentado no III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) - Dilemas e Desafios na Contemporaneidade, em Campinas - SP, 2012. Disponível em: <http://www.iel.unicamp.br/sidis/anais/pdf/ORRU SILVIA REGINA SARAIVA.pdf>. Acesso: mar/2013. RICCITELLI, Teresa. Los medios aliados o enemigos del público?: derivaciones de las teorías de las comunicaciones surgidas en los setenta. Buenos Aires: Educa, 2008. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 8ã ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. - 175 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A telenovela e o merchandising social: um estudo sobre a violência contra a mulher abordado na novela A Regra do Jogo Maria Aparecida Baccega – ESPM Maria Amélia Paiva Abrão – ESPM Introdução Os meios de comunicação e, em especial, a televisão aberta abrangem quase todo o território nacional, ou seja, de Norte a Sul do país, homens e mulheres, de todas as classes e raças têm acesso ao conteúdo disponibilizado pelas emissoras nacionais. Destacamos a Rede Globo, que está presente em 98,6%33 dos lares com televisão no Brasil. Além de ser a emissora aberta de maior audiência, ainda ultrapassa no IBOPE o conjunto de canais de TV paga34. O horário de maior audiência para a Rede Globo é o noturno, 18h às 24h. Neste período são transmitidos as telenovelas e o telejornal. As telenovelas já são um formato consagrado dentro da emissora. A qualidade deste produto é reconhecida internacionalmente, através de prêmios e até de sua exportação para outros países. A telenovela é uma obra aberta, que dialoga com a sociedade: agenda temas para serem discutidos socialmente. Algumas questões levantadas dentro de uma narrativa perpassam de maneira marginal pela sociedade e ao serem abordadas de forma mais ampla faz com que as pessoas comecem a mencionar e discutir mais determinado assunto. 33 34 Fonte: Mídia Dados 2015. Fonte: Obitel 2016 - 176 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 As ações socioeducativas são ações realizadas dentro de uma telenovela, que buscam retratar um tema que necessita de mudança e compreensão maior por parte da população. Temas como alcoolismo, violência contra idosos, tráfico de mulheres, desaparecimento de crianças foram alguns dos já levantados pelas telenovelas globais. Em A regra do jogo, a violência contra a mulher, mais especificamente, a violência doméstica vem sendo retratada através das personagens de Domingas e Juca, moradores do Morro da Macaca. Embora Domingas sustente a casa, ela é constantemente agredida física e psicologicamente pelo marido, além de aguentar suas traições até dentro de sua residência. As cenas destes personagens retratam o cotidiano de milhares de mulheres no Brasil. A maioria da população brasileira é composta por mulheres (51,4%),35 sendo a população total do país de 250.444.128 habitantes.36 Entretanto, segundo pesquisa Data Senado 2015,37 uma em cada cinco mulheres já sofreu violência doméstica. A questão de gênero, a violência contra a mulher e sobretudo no âmbito doméstico são assuntos que não devem cessar, gerando debates com intuito despertar a sociedade para o problema e para a busca de soluções. Procuraremos, a seguir, tratar do contexto social para, a partir dele, mostrar a violência doméstica. Sim ao barulho Vivemos em uma sociedade patriarcal, em que a ideologia machista ensina desde cedo as crianças a se comportarem como meninos ou meninas, realizando a distinção de sexo, definindo os papéis, em que o “homem não chora” e a “mulher não fala palavrões” e, assim, vão crescendo e 35 Fonte: Portal Brasil Fonte: IBGE 37 Fonte: Pesquisa Data Senado 2015. 36 - 177 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 transformando-se em homens e mulheres ditos perfeitos, ideais, culturalmente definidos e aceitos. Como diz Simone de Beauvoir, “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (DE BEAUVOIR, 1967, p.9). Nesta sociedade, a mulher é desenhada para viver à sombra do homem, como uma pessoa de menor valor, numa relação de subordinação. Inclusive no mercado de trabalho as mulheres são tidas como inferiores, recebem menos que seus pares, simplesmente por serem do sexo feminino. Segundo pesquisa realizada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID,38 mesmo com maior nível de instrução, as mulheres latino-americanas recebem 10% menos que os homens e no Brasil essa diferença salarial chega a 30%. Delimita-se então o espaço privado como esfera feminina e o público como esfera masculina. A mulher é responsável por todos os afazeres domésticos, pela criação dos filhos e as demandas externas cabem ao marido. o homem sempre teve como seu espaço o público e a mulher foi confinada ao espaço privado, qual seja, nos limites da família e do lar, ensejando assim a formação de dois mundos: um de dominação, produtor - (mundo externo) e o outro, o mundo de submissão e reprodutor (interno). Dessa forma, ambos os universos, público e privado, criam polos de dominação e de submissão (DIAS, 2007, p.17). Ao longo da história os papéis representados pelas mulheres/ homens podem mudar de acordo com os interesses da cultura hegemônica. Ao mesmo tempo, estes papéis são inseridos no cotidiano das pessoas, em rituais familiares, através de agentes de socialização, como a igreja, e, sem que as pessoas percebam, essa cultura machista vai se perpetuando dentro da sociedade, inclusive entre as mulheres. E neste jogo ideológico todos perdem, pois aqueles que não se enquadram no sistema são excluídos, homens e mulheres. O homem que não é viril será considerado fraco, frouxo, corno, entre outros termos pejorativos. 38 Fonte: Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID - 178 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 E o menino que foi ensinado a mandar, chega a fase adulta sentindose poderoso dentro deste ambiente que privilegia o homem em detrimento à mulher. De uma maneira geral, a mulher é vista como objeto, uma mercadoria a ser conquistada. Essa é uma relação de dominação/ subordinação com níveis de intensidade, que varia de acordo com a classe social – desta relação surge a violência contra a mulher e a violência no âmbito doméstico. A violência doméstica apresenta características específicas. Uma das mais relevantes é a sua rotinização, o que contribui, tremendamente, para a codependência e o estabelecimento da relação fixada. Rigorosamente a relação violenta se constitui em verdadeira prisão. Neste sentido, o próprio gênero acaba por se revelar uma camisa de força: o homem deve agredir, porque o macho deve dominar a qualquer custo; e a mulher deve suportar as agressões de toda ordem, porque seu ‘destino’ assim determina (SAFFIOTI, 1999, p.88). Ao longo dos últimos anos o governo brasileiro tem desenvolvido ações para reprimir a violência doméstica, como a criação da “Lei Maria da Penha (lei no11.340)” e o Ligue Denúncia 180.39 Com o objetivo de punir os casos de violência doméstica e familiar, a lei considera cinco tipos de violência: físico, psicológico, sexual, moral e patrimonial. Entretanto, os números de feminicídios e agressões ainda são altos. Chama-nos a atenção a pesquisa realizada pelo Ipea sobre os feminicídios. Entre 2001 e 2011, foram 50 mil no país, ou seja, aproximadamente 5.000 mortes por ano40. A maioria das mulheres tinha baixa escolaridade, era negra (61%) e tinha entre 20 a 39 anos (54%). Os estados com maiores taxas de feminicídio foram: Espírito Santo (11,24%), Bahia (9,08%), Alagoas (8,84%), Roraima, (8,51%), Pernambuco (7,81%) e Goiás (7,57%). 39 Desenvolvido pela Secretaria de Políticas para Mulheres Fonte: Estudo desenvolvido pelo Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. 40 - 179 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 No período de Carnaval, vemos muitas campanhas de conscientização para evitar o assédio e a violência contra as mulheres. Todavia, as manchetes de jornais e portais da internet sempre trazem notícias de abusos nesta época. As campanhas e o debate devem ocorrer durante todo o ano e não apenas em uma data pontual, pois, como mostram os dados, a violência contra mulher é um problema social que requer medidas sérias para ser extinta. A busca por soluções deve vir de todas esferas sociais. Neste sentido, os meios de comunicação contribuem através da divulgação de informações e com ações socioeducativas, como as realizadas em suas telenovelas. Em A regra do jogo, a violência doméstica foi amplamente divulgada em suas cenas. Ao longo da narrativa, Domingas – a personagem violentada -, foi se fortalecendo e ações de como se proteger do agressor foram sendo mostradas. A seguir, apresentaremos a pesquisa de recepção realizada em Goiania-GO, com o objetivo de verificar qual a percepção das goianas frente à questão da violência doméstica. Para tanto, apresentamos cenas da personagem Domingas em duas fases, a primeira, quando sofria todos os tipos de agressões de Juca e, a segunda, quando começa a se fortalecer e se reconhecer enquanto mulher. Vejo, Logo Discuto A violência contra a mulher prejudica toda a sociedade, por isso, fazse necessário essa conscientização coletiva, não apenas das mulheres, mas de todos, da importância da denúncia, da separação, na maioria dos casos, e, principalmente do fortalecimento das mulheres. Os meios de comunicação contribuem para divulgação de campanhas sobre o tema, assim como promovem ações socioeducativas que colaboram para fornecer poder às mulheres nessas situações. A telenovela é um dos formatos mais consagrados da televisão, acessível a toda a população, sem distinção de classe, raça ou gênero. Ao abordarem ações socioeducativas em sua trama, trazem à luz da sociedade questões que necessitam de debate - 180 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 e de modificação social. Além disso, através de suas personagens, mostram várias alternativas para enfrentar determinadas questões. A telenovela não apenas apresenta modelos. Em A regra do jogo, a violência doméstica provocou um incomodo na sociedade, que passou a discuti-la nas redes sociais, entre amigos, em portais da internet. Este é um tema que não passa despercebido, porém, é preciso debatê-lo para que a mudança ocorra. Nesta telenovela, a personagem de Domingas sofreu todas as agressões previstas na “Lei Maria da Penha” (físico, psicológico, sexual, moral e patrimonial) por parte de Juca, seu marido. Todos os moradores do “Morro da Macaca” sabiam das agressões, porém Domingas, renegava os apelos de sua melhor amiga, e continuava com o marido. Após muitas humilhações e espancamentos, ela decide pedir ajuda aos amigos para expulsar Juca de casa. A partir deste momento, Domingas começa a se fortalecer. Surge em sua casa um estranho chamado César que a trata com muito carinho e respeito. Não demora muito e ela se entrega sexualmente a ele e começa a se descobrir mulher – a sua sensualidade e a sua sexualidade. A partir da história de Domingas e suas duas fases - mulher agredida e mulher fortalecida – selecionamos algumas cenas para realizarmos uma pesquisa de recepção. Pensamos a comunicação como um processo (HALL, 2003) construído socialmente, em que emissor e receptor permanecem em constante diálogo/ trocas, cada qual recebendo/ codificando e decodificando a mensagem a partir de suas práticas sociais. O processo de recepção não inicia ou finaliza frente à televisão, mas sim antecede e prossegue ao ato de assistir a ela. Em suma, [...] a comunicação está imersa na cultura. É uma prática que produz significados, ou seja, a partir do que já está e já é naquela cultura, ressemantizam-se os significados em cada ato de comunicação. Implica sempre emissão e recepção, resultando na construção de sentidos novos, - 181 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 renovados – ou mesmos sentidos reconfigurados -, produzidos nesse encontro (BACCEGA, 1998, p.9). Isto posto, realizamos um grupo focal na cidade de Goiânia-GO. Escolhemos o estado de Goiás por este estar entre os dez estados com o maior número de feminicídios no Brasil, sabemos que por trás deste encontra-se a violência doméstica. Neste enfoque, buscamos verificar a percepção da mulher goiana frente a esta temática e a questão do fortalecimento da mulher, ambos abordados na telenovela. Tendo caráter qualitativo, optamos pelo grupo focal, pois este possibilita entrevistar pessoas com intuito de analisar como se comportam sobre determinados assuntos em grupo. “O grupo focal não tem a intenção de obter o consenso sobre um determinado assunto. Ao contrário, o grupo focal encoraja uma série de respostas que promove um maior conhecimento sobre atitudes, comportamentos, opiniões ou percepções dos participantes a respeito das questões pesquisadas” (HENNINK, 2007, apud LIAMPUTTONG, 2011, p.03) (tradução nossa). Selecionamos cinco mulheres, entre 35 e 40 anos, pertencentes à classe média, todas com curso superior, tendo uma, curso de pós-graduação (mestrado). Das participantes, duas são casadas e três solteiras. Embora este não seja o público mais atingido pela violência doméstica isto não quer dizer que dentro desta classe as mulheres não sofram este tipo de violência. A violência possui níveis de intensidade e não distingue classe ou raça, pois a ideologia machista impera em todas as camadas sociais. Para a pesquisa, um vídeo de 35min foi editado e dividido em duas partes. A primeira mostra a fase em que Domingas é agredida violentamente pelo marido e abre uma discussão. A segunda mostra a fase do fortalecimento e descoberta de sua sexualidade e abre novamente a discussão. Entretanto, antes da apresentação do vídeo, iniciamos o grupo focal com algumas questões relacionadas a mulher para tentarmos compreender a visão das goianas frente ao papel da mulher na sociedade e com intuito de analisar o - 182 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 quanto a ideologia machista pode influenciar em sua visão ou em seu cotidiano. A mulher goiana e seu olhar Na primeira parte da pesquisa buscamos compreender a visão das pesquisadas sobre as mulheres e sobre seu papel na sociedade. Ao serem questionadas sobre o papel da mulher na sociedade, a participante 01 disse: “Acho que hoje em dia a mulher tem um papel de líder, em muitos lugares, influenciadora [...]” A participante 02 continua: “Para mim, é igual ao homem, de todo ser humano!” Para a participante 03 o papel da mulher é essencial, sem a gente não tem sociedade, porque a gente é que coloca filho no mundo, ela é quem comanda a casa. Se ela é chefe ela é capaz de comandar uma empresa inteira. Ela é multifuncional, se está na empresa, está pensando na casa, na tarefa do filho, no que o filho vai comer. Acho ela muito mais funcional hoje em dia, até mesmo porque hoje em dia o homem não dá conta de ser o provedor. A gente tá com papel de compartilhar, antes ele era o provedor e ele comandava mais a casa, agora não, a gente está disputando com eles o mercado de trabalho, dividindo as contas. Vemos nesta participante o discurso machista que se encontra naturalizado Sem se dar conta ela vai proferindo a ideologia dominante como se fosse algo natural. Em suas palavras, hoje a mulher trabalha, já que o homem não consegue mais prover seu lar sozinho. A mulher aparece neste discurso como a única responsável pelo lar, a diferença está na divisão das contas. A participante 02 retoma a palavra dizendo “ela [a mulher] é dona de casa, mas ela tem que trabalhar, ela tem que dividir conta, mas ela não quer dividir conta, eu tenho um conceito de cultura arraigado, acho que todas nós somos daqui.” Embora esta participante apoie a igualdade de gênero, ela - 183 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 afirma ter um conflito cultural, pois cresceu na cultura goiana em que “mulher não paga conta” e ela se recusa a dividir a conta com o marido. Ao serem questionadas sobre o papel da mulher na sociedade goiana,a participante 02 afirmou: Acho que a mulher tem o intuito de contribuir com a sociedade em geral. [...] Acho que o papel da mulher goiana é quebrar esses tabus que a gente só pensa igual, que todo mundo é atrasado. [...] Eu acho que o goiano, a gente tem que ralar muito mais do que os outros, por a gente ser goiano. Porque tem um pré-conceito de ser goiano. A participante 01 chamou a atenção que ainda tem muita mulher goiana cujo papel é “ser socialite! Ainda tem muito!” A participante 04 continuou, “hoje em dia é aquela cobrança, a mulher não pode envelhecer, não pode isso [...] o homem pode nascer fazendo tudo!” Ao fazer essa afirmação todas concordaram e uma participante continuou “....[o homem] pegar todas!” Nos discursos das participantes vemos a questão cultural, de como os goianos são vistos fora de Goiás e como se sentem frente à percepção do outro. Percebemos também algo que permanece na cultura goiana, talvez em todas as culturas, que é vontade de algumas mulheres ascender socialmente. E por fim, aparece novamente a ideologia machista, a cobrança em torno das mulheres, a idealização de uma mulher perfeita (e inatingível), enquanto existe uma tolerância em relação aos homens. Após conhecermos um pouco as participantes, apresentamos a primeira parte do vídeo, com cenas da violência doméstica sofrida por Domingas e abrimos para discussão. “Essa é uma mulher totalmente sem amor próprio, com a autoestima zero, ela se sente a pior mulher do mundo!” exclamou a participante 05. “É falta de atitude, falta de noção, porque ela sustenta o cara. O cara faz tudo quanto é tipo de violência com ela [...] Uma mulher dessa além de autoestima, falta senso!,” continuou a participante 02. - 184 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 “Primeiro vem da criação, [é] cultural... é criada para casar, cuidar da casa, seja como o marido for ela está segurando o casamento, aquela criação de aguentar tudo do homem, do casamento [...] é muito arraigado essa criação que a gente tem,” opinou a participante 03. “Principalmente para as pessoas de baixa renda,” completou outra participante. Para algumas participantes as cenas geraram revolta, principalmente o fato de Domingas não reagir às atitudes violentas do marido. Outras conseguiram se solidarizar por enxergar o quanto Domingas está acorrentada à cultura machista. “A resignação, ingrediente importante da educação feminina, não significa senão a aceitação do sofrimento enquanto destino de mulher.” (SAFFIOTI, 1987, p. 35) “Acho que 90% do que a novela mostra acontece na vida real [...] e é por isso que existe a ‘Lei Maria da Penha’, [...] isso é muito comum na nossa sociedade [...],” comentou a personagem 03. “Tem mulher que acha bonito o homem ser possessivo demais [...], ‘tá sendo cuidadoso’, vai dando abertura [...],” disse a participante 04. A participante 02 levantou uma questão, e a gente tem a cultura do homem daqui ser tosco, né? O homem de Goiânia é bruto! Eu casei com uma pessoa de fora, porque todo mundo que eu conhecia eu achava grosso, tosco, até o jeito de falar: ‘ooohh muiér’. [...] Aquilo para mim já é um tipo de agressão, já te coloca como um animal! “Confunde um pouco a pessoa do campo precisar ser rústico, do campo, com ser grosso,” definiu a participante 03. A partir da discussão gerada percebemos que todas as participantes conheciam a “Lei Maria da Penha” e do que se tratava. Vemos aí a importância dos meios de comunicação e de escolaridade na divulgação de informações. Em relação ao homem goiano, notamos que existe uma cultura de o homem goiano ser mais rústico, que muitas vezes se mistura com a ideologia machista, tornando-o grosso. Até vinte anos atrás a economia de Goiás era baseada exclusivamente na agricultura e na pecuária, talvez venha - 185 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 daí esse perfil dos homens traçado pelas mulheres, o qual permanece culturalmente na sociedade goiana. Como o assunto estava em torno da violência e da sociedade goiana, questionei as participantes se conheciam alguma mulher que sofrera violência. Três das cinco presentes conhecem mulheres que já sofreram agressão, inclusive algumas presenciaram a agressão. Na palavra de uma delas, “às vezes, na nossa infância a gente conhecia situações de violência, mas a gente não sabia que era violência, já percebeu isso? [...] às vezes a gente via um tio que fazia alguma coisa [...] e hoje você percebe que era.” Todas demonstraram consciência da responsabilidade social sobre este tema, que perpassa pelo ambiente familiar até chegar ao poder Executivo. A seguir, o depoimento da participante 03, conclui de forma sucinta a opinião de todas: o poder público tem que fazer o papel através das campanhas e das leis. [...] E há também a educação, quanto mais as pessoas são instruídas, mais elas vão ganhando autoestima, [...] vai tirando aquele ranço de machismo, de que homem pode tudo, as mulheres vão se libertando dessa ideia de que têm que aguentar tudo de marido. Em relação às cenas de violência doméstica de A regra do jogo, as participantes foram unânimes em afirmar que são válidas para todos. “Tem uma função social, educativa,” afirmou a participante 02. “Se a pessoa estiver ali assistindo e estivar passando pela situação, ela vai se enxergar. E outra, para questionar, também!” completou a participante 04. Terminada a discussão da primeira parte, iniciamos a apresentação da outra parte do vídeo, em que apresentamos a segunda fase de Domingas, quando ela conhece César, se entrega a ele logo nos primeiros dias, descobrindo sua sexualidade e sensualidade. A visão das participantes em relação a esta etapa foi: “é uma coitada!” manifestou uma participante; “está embarcando de novo em uma coisa que ela não sabe nem quem é,” disse a outra. “Do mesmo jeito que ela aceitou o mau, o cara que batia nela, ela aceitou sem questionar o cara que apareceu na - 186 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 casa dela, que agora cozinha para ela, faz tudo pra ela,” considerou uma participante. “Caminhar sozinha ela não vai?” perguntou outra. Para as participantes a entrega de Domingas à César – um homem que acabou de conhecer - foi “sem nenhuma cautela,” “inocência,” “carência,” “falta de malícia.” Vemos nos discursos das participantes uma visão conservadora em relação à mulher. A opção de Domingas ou de qualquer outra mulher de se entregar a um homem não deve ser considerada carência ou inocência, mas sim, ser vista como uma ação independente, consciente, na qual, sendo mulher, sua relação com seu corpo é de sua inteira responsabilidade. Quanto à descoberta da sexualidade de Domingas, “de certo ele [o exmarido de Domingas] fazia o bom mesmo na rua e ela era só o feijão com arroz,” disse uma participante. “Por mais que a gente ache que isso é fora da nossa realidade tem muita gente, tem muito homem que acha que fazer o papai mamãe é com a mulher e com as outras pode tudo,” afirmou outra participante. “Tem-se dificuldade em falar de sexo [...] ela era um objeto, é o que parece, né?” expressou uma participante. Na visão das participantes, Juca era a imagem do homem viril, que pegava todas, mas via as mulheres principalmente como objeto, para lhe dar prazer. Além disso, na ideologia machista, tem a “mulher pra casar” e a “mulher pra farrear,” ou seja, aquela que proporcionará todos os prazeres sexuais ao homem. Para concluir a dinâmica, questionamos as entrevistadas sobre o fortalecimento das mulheres. A participante 02 verificou que, no caso de Domingas, o sexo contribuiu para a elevação de sua autoestima. “A valorização do ser-humano mulher. O homem e a família, valorizar a mulher dentro da casa, que ela tenha uma importância dentro daquele núcleo,” disse a participante 03. “Mas você percebeu que uma coisa que deu muito poder a ela foi ele dizer que ele ia cozinhar para ela? O afeto, o carinho,” afirmou a participante 02. De uma forma geral, o fortalecimento da mulher é “buscar tudo que você tem dentro de você, buscar mais força ou com amigos [...]”, afirmou a participante 05. “Eu acho que é ela se sentir segura com a pessoa que ela tá,[...] - 187 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 a pessoa estar me valorizando, ela gostar de mim,” disse a participante 03. “No meu caso o poder, eu é que vou buscar, eu vou buscar o que eu gosto, tanto no pessoal, quanto no profissional,” expôs a participante 04. Acho que o conjunto de poder é um equilíbrio da vida pessoal, da vida profissional, da vida familiar [...] o que vai me fazer tá bem comigo é tá bem com a minha família, tá bem com esposo, com o corpo, com trabalho [...] tudo isso engloba essa ideia de poder, considera a participante 02. O tema fortalecimento da mulher gerou diferentes opiniões. Para algumas a ideia do poder da mulher está ligado às conquistas pessoais, para outras não apenas à força pessoal como a busca/união com os amigos. Teve a participante que acredita que este fortalecimento depende do equilíbrio entre profissional e pessoal. E, por fim, teve a participante que acredita que o poder da mulher está muito ligado ao familiar, ao âmbito privado. Através deste grupo focal pudemos analisar alguns pontos das mulheres goianas frente à violência doméstica e ao fortalecimento da mulher veiculados na telenovela A regra do jogo. E o quanto a ideologia machista influencia a cultura goiana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste artigo verificamos a importância dos meios de comunicação para a divulgação de informações e campanhas referentes à violência contra a mulher e o quanto a telenovela vem sendo utilizada para promover ações socioeducativas. Destacamos A regra do jogo que desenvolveu um trabalho sobre a violência doméstica. Estes projetos são de suma importância já que esta violência ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de regra, intervenção externa. Raramente uma mulher consegue desvincular de um homem violento sem o auxílio externo. Até que isto ocorra, descreve uma trajetória oscilante, como movimentos de saída da relação e de retorno a ela (SAFFIOTI, 1999, p.85). - 188 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 E ao mostrar cenas em que mulheres, familiares e amigos se reconhecem enquanto vítimas, a telenovela promove não apenas uma discussão, mas delineia algumas soluções que podem ser tomadas frente ao problema. Em relação ao grupo focal realizado, verificamos através da discussão sobre a violência doméstica que as mulheres goianas conhecem seus direitos, sabem o que é a violência doméstica, além de reconhecer outras formas de agressão. Entretanto, a ideologia machista funciona fortemente dentro desta sociedade, em que os homens, em geral, “confundem” o rústico com o maleducado e há uma resignação por parte da mulher goiana. Constatamos ainda que a violência contra a mulher não é algo tão incomum dentro da classe média goiana. Debater a violência contra a mulher e no âmbito doméstico faz-se necessário, pois enquanto houver debates, questões a serem levantadas, propostas a serem discutidas, a mulher não será esquecida. Os números da violência falam por si só. “O respeito ao outro constitui o ponto nuclear [...] de vida em sociedade” (SAFFIOTI, 1999, p.85). BIBLIOGRAFIA BACCEGA, Maria Aparecida. Recepçao: novas perspectivas nos estudos de comunicação. Comunicação e educação. São Paulo: n. 12, p. 7-16, maio-ago., 1998. DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. HALL, Stuart. Codificação/ decodificação. In: HALL, Stuart; SOVIK, Liv (orgs.). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução: Adelaine Resende... et all. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representações da Unesco no Brasil, 2003. LIAMPUTTONG, Pranee. Focus Group Metodology: principle and practice. London United Kingdom: Sage Publications Ltd, 2011. - 189 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 SAFFIOTI, Heleieth. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo em perspectiva, vol.13, no.4. São Paulo, Oct./Dec. 1999. ___________________. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. Endereço eletrônico IBGE http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/ Ipea http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf Pesquisa Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, disponível em: http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=2208929 Pesquisa Data Senado 2015, disponível em: http://www12.senado.leg.br/senado/procuradoria/publicacao/pesquisa-violencia-domestica-e-familiarcontra-as-mulheres. Portal Brasil http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/03/mulheres-sao-maioria-da-populacaoe-ocupam-mais-espaco-no-mercado-de-trabalho - 190 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A representação feminina do livro para o cinema: A inserção de Tauriel na trilogia “O Hobbit” Sara Moralejo da Costa - UFRGS Paula Coruja - UFRGS Graziela Bassetti de Leon – UFRGS Introdução Este artigo propõe uma análise da inserção da personagem Tauriel nos filmes da trilogia cinematográfica O Hobbit (2012-2014)41, produzida por Peter Jackson. Baseada no livro homônimo publicado por J. R. R. Tolkien em 1937, os filmes são uma adaptação cinematográfica da jornada que precede a trilogia O senhor dos Anéis, publicada pelo mesmo autor (19541955) e também adaptada para o cinema por Jackson (2001-2003). A obra de Tolkien, e o vasto universo ficcional nela representado, contém dezenas de personagens femininas, de diferentes raças e com diferentes trajetórias. Quando consideramos, no entanto, a quantidade dos escritos de Tolkien, o período ficcional coberto pelos seus livros e o fato de que a grande maioria dessas personagens só ser citada brevemente em relatos e apêndices dos livros principais, esse número se torna pequeno; ao compararmos com a quantidade e a importância das personagens masculinas, as poucas personagens femininas de Tolkien se tornam quase irrelevantes. 41 Este artigo está relacionado à pesquisa internacional Oobbit Project (JOHN et al, 2015). Apesar de não compor o corpus da pesquisa e não utilizar seus dados, como as autoras do artigo fazem parte da equipe brasileira atuante, consideramos assim que a inspiração para a problematização aqui desenvolvida se origina deste escopo. - 191 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Na produção da primeira trilogia para os cinemas, Jackson deu às três personagens femininas de relevância na trama maior participação no desenvolvimento do enredo do que tiveram, originalmente, nos livros de Tolkien, evidenciando sua preocupação com a representação feminina em seus filmes. Na trilogia O Hobbit, não havia essa possibilidade, devido a ausência de qualquer personagem feminina na obra original. A decisão foi, então, a transposição de uma personagem presente em outras obras de Tolkien - Galadriel - e a criação de uma nova personagem: a elfo Tauriel, interpretada por Evangeline Lilly. Tauriel surge no início de O Desolação de Smaug (2013), segundo filme da trilogia. Uma elfo de baixo nascimento, diferentemente das nobres senhoras élficas presentes na obra de Tolkien, capitã da guarda dos elfos de Mirkwood, e uma lutadora habilidosa, Tauriel participa ativamente dos acontecimentos do segundo e do terceiro filmes. Apesar de não ser a única personagem criada por Jackson para sua trilogia, Tauriel é a personagem criada para os filmes que foi melhor desenvolvida, apresentando traços de personalidade claros, motivações e objetivos definidos, relacionamentos complexos e uma história própria dentro dos filmes. É através dela que assuntos pouco explorados nas adaptações anteriores, como as relações de poder entre os elfos, as diferenciações de classes e os relacionamentos interraciais, são problematizados na tela. A classe social da qual Tauriel faz parte foi pouco explorada pelos livros de Tolkien, que deu mais importância a elfos de maior poder político. Da mesma forma, nenhuma elfo do gênero feminino, na obra de Tolkien, tem qualquer tipo de trabalho ou função; são nobres senhoras, caracterizadas por sua graça e beleza, habitando ambientes domésticos e pouco se envolvendo na narrativa principal. Tauriel é definida por suas habilidades e características particulares: destreza em batalha; capacidade de curar através da magia; compreensão das dinâmicas de poder da sociedade na qual ela está inserida; emotividade em contraste com o estoicismo comum aos elfos. É levando em consideração esses fatores que compõem a personagem que analizaremos a sua inserção dentro da trilogia O Hobbit. - 192 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Fãs e representatividade A construção da narrativa, por mais que seja de domínio de produtores de grandes conglomerados de mídia, perpassa a dimensão da audiência a medida que se espelha em um público imaginado. Essa audiência pode possuir diversos graus de envolvimento e dedicação à narrativa, mas, partindo do processo de consumo cultural (CANCLINI, 1999), ela cria significados durante todo o processo de fruição, que interferem no processo de recepção da narrativa (HALL, 2003). Consumidores de uma narrativa que compartilham critérios de interpretação sobre esta compõem uma comunidade articulada e produtiva em torno do universo ao qual se vinculam. Essa audiência pode ser considerada uma comunidade interpretativa. O conceito de comunidade reflete o senso de identidade grupal, pois indica a posição do sujeito dentro ou fora do grupo, de acordo com as características de pertencimento. "Comunidade se coloca como mediação entre o material e o simbólico, o vivido e o imaginado, o local e o global, o público e o particular" (SOUSA, 2005, p. 17). Para Orozco Gomez (1991), entender a comunidade interpretativa envolve captar a interação entre as instituições sociais e suas mediações no processo de recepção. Pode-se pensar em pelo menos quatro distintos significados para a expressão "comunidade interpretativa": comunidades reais, vivas, com suas redes, encontros, meios de comunicação, hierarquias, líderes e etc.; hábitos e experiências compartilhadas por pessoas com características categóricas (idade, gênero, "raça", orientação sexual, etc); orientações aprendidas, transmitidas por algum processo educativo, formal ou informal; e regimes discursivos e ideológicos poderosos, que articulam sobre determinados tópicos e transmitem formas de pensar (BARKER; HILLS; MATHIJS, 2013). Jenkins (2013) refere-se aos grupos de fãs como comunidades interpretativas nas quais o partilha de uma mesma forma de leitura de textos é essencial para o compartilhamento de informações e conteúdo. A descrição - 193 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 usual do que é ser fã a partir da formação da palavra como uma derivação da palavra de origem inglesa "fanatic"42 é questionada, uma vez que o fanatismo, por si só, se prende à descrição da admiração que um fã é capaz de ter, mas não abrange a dinâmica dentro do grupo de fãs enquanto comunidade ou como parte da lógica comercial da produção cultural (HILLS, 2002). A relação dos fãs com seus objetos de afeição, em geral, perpassam manifestações de afetos relacionadas ao gosto. Hennion apresenta a perspectiva de que "ele [o gosto] pode ser analisado como uma atividade reflexiva, 'corporificada', enquadrada, coletiva, equipada e, simultaneamente, produzir as competências de um amador e o repertório de objetos que ela/ele valoriza" (2005, p. 132), de forma que a relação estabelecida entre os fãs e seu objeto de afeto pautada pelo gosto está relacionada à formação identitária do indivíduo a partir da reflexividade, que pode vir a se manifestar em outras formas de produção baseadas em engajamento (AMARAL, 2014). A relação de afetividade criada entre os fãs e os objetos culturais pelos quais eles demonstram afeição é referenciado por Jenkins como parte do vínculo que instiga a participação mais ativa dessa audiência. Esse vínculo, criado a partirdo processo individual de significação, pode ou não ser concretizado em outras produções, como comentários, textos e compartilhamento de conteúdos, mas passa a integrar os critérios interpretativos que definem a comunidade, assim, o processo de consumo se torna coletivo (JENKINS, 2009, p. 31). A construção identitária do sujeito que pertence a uma comunidade interpretativa, assim, é atravessada tanto pelos processos de consumo cultural e midiático (JACKS et al, 2014) quanto pelo compartilhamento de critérios interpretativos com a comunidade. Uma abordagem desse processo sob a perspectiva cultural (CANCLINI, 2004) implica não só a articulação de teorias, mas das experiências e estruturas sociais, sistemas de representação e subjetividades (HILLS, 2002). De forma simplificada, Jenkins (2006. p. 212) 42 MICHAELIS. http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/definicao/fa%20_963850.html Acesso em 15 de fevereiro de 2015. - 194 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 exemplifica: "Nós tipicamente testamos as representações midiáticas em contraste com nossa experiência direta e dispensamos quando eles não parecem verdade"43. A comunidade de fãs se nomeia fandom, um termo que pode se referir tanto à comunidade de fãs em geral, quanto a uma comunidade de fãs específica. Hills (2002) destaca a relação entre o fã e a sua formação em comunidade: Fandom, então, nunca é uma "expressão" neutra ou uma "referência" singular; é um status e sua performance muda de acordo com o local cultural. O que diferencia 'performances' do compartilhamento no fandom, no entanto, é o senso de contestar normas culturais. Clamar a identidade de 'fã' ainda é, de certa forma, clamar uma identidade 'imprópria', uma identidade cultural baseada no compromisso de alguém para com algo visto como desimportante e 'trivial' como um filme ou uma série de TV. (HILLS, 2002, documento digital)44 A partir da articulação em comunidade, os fãs podem manifestar concordância ou discordância tanto com relação aos universos ficcionais quanto à sua própria experiência. Isso faz do fandom um espaço de atividade político-social,questionando os parâmetros de diversas realidades e criando ferramentas e formas de atuação com relação às questões levantadas pela comunidade (HELLEKSON, 2001). Segundo Jenkins (2006, p. 45) 45, "o fandom é um veículo para grupos de subculturas marginalizadas (mulheres, 43 Tradução própria: "We typically test media representations against our direct experience and dismiss them when they don't ring true." (JENKINS, 2006. p. 212) 44 Tradução própria: "Fandom, then, is never a neutral 'expression' or a singular 'referent'; its status and its performance shift across cultural sites. What different 'performances' of fandom share, however, is a sense of contesting cultural norms. To claim the identity of a 'fan' remains, in some sense, to claim an 'improper' identity, a cultural identity based on one's commitment to something as seemingly unimportant and 'trivial' as a film or TV series" (HILLS, 2002, documento digital). 45 Tradução própria: "Fandom is a vehicle for marginalized subcultural groups (women, the young, gays, and so on) to pry open space for their cultural concerns within dominant representations." (JENKINS, 2006. p. 45) - 195 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 jovens, gays, etc) alavancar um espaço aberto para suas preocupações culturais dentro das representações dominantes". Assim, podemos articular a questão da construção de Tauriel, enquanto personagem feminina em O Hobbit, e sua relação com demandas da audiência. Gênero e representatividade Quando paramos para analisar essa personagem, nos propomos a falar e problematizar a questão da desigualdade de gênero. Ao fazê-lo, precisamos resgatar o caminho já trilhado sobre o tema, principalmente através dos estudos feministas dentro dos estudos culturais, que começaram a ganhar notoriedade na década de 1960. A trajetória dos estudos feministas de mídia está ligada a essa perspectiva, que nasce no final dos anos de 1950, a partir do pensamento de Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward Thompson. Stuart Hall, um dos principais representantes da área, relata que o feminismo caracterizou um dos momentos de ruptura do desenvolvimento dos estudos culturais quando convidou algumas feministas a integrarem o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) em Birmingham, pois os estudos culturais estariam "sensíveis à política feminista" (HALL, 2003, p.474). Mais adiante, as feministas do CCCS criticaram a forma autoritária como foram tratadas pelos estudos culturais (MESSA, 2008, p.40). Entretanto as perspectivas tinham muitos pontos em comum: Tanto os Estudos Culturais, quanto a teoria feminista nasceram fora da Academia - nos contextos sociais, educacionais e políticos -, não sendo institucionalizados e tendo muita dificuldade para serem aceitos no meio acadêmico. Além disso, ambos dedicavam-se a grupos oprimidos e marginalizados e foram alvos de críticas ao declarar não existir conceitos e teorias que dessem conta de seus objetos. (MESSA, 2008, p.41) A problematização da categoria de gênero e o papel da mulher já eram discutidos na década de 1970 e, segundo Escosteguy e Messa (2010), é - 196 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 a principal contribuição dos estudos feministas aos estudos culturais. "(...) este foco de atenção propiciou novos questionamentos em redor de questões referentes à identidade, pois introduziu novas formas variáveis na sua constituição" (p.41). É importante enfatizar que gênero é uma construção simbólica, que vai além do determinismo biológico. Para Butler (2010), salientar a identidade a partir do sexo biológico é parte de uma prática regulatória, que marca uma norma e suas consequentes relações de poder. Essas construções são marcadas pela performatividade, ou seja, a construção do gênero e as identidades são geradas através da reiteração dos discursos que constroem esses gêneros e os reforçam através da citacionalidade. Como afirma Butler (2010, p. 167), "a performatividade não é, assim, um ato singular, pois ela é sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto de normas. (...) o ato performativo é aquela prática discursiva que efetua ou produz aquilo que ela nomeia". Além disso, Butler pontua que o discurso apresenta sempre um imperativo heterossexual, que permite apenas alguns tipos de identificação e nega outros, obedecendo uma linguagem falocêntrica. Para Joan Scott, gênero também acaba sendo uma importante categoria analítica, pois evidencia a construção das relações de poder e indica as construções sociais de tudo o que é definido como feminino ou masculino, "uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado" (SCOTT, 1990, p.7). Os estudos de mídia dentro dos estudos culturais também trazem gênero como uma categoria fundamental. A pesquisa de David Morley (1996) sobre os hábitos de famílias britânicas para assistir televisão em 1985 é um bom exemplo de como gênero, mesmo sem estar a priori sendo analisada, acaba por ser salientada na cotidianidade, evidenciando a estrutura patriarcal e androcêntrica da sociedade. Morley, durante a investigação, se deparou com a grande diferença entre os papéis de gênero dentro dos lares e destacou dentro da microestrutura patriarcal, ou seja, o lar, tudo aquilo que Bourdieu e as feministas encontraram nas análises macro: maior estímulo e empoderamento dos meninos, valorização das características e de tudo ao - 197 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 que está relacionado com "ser masculino", a prevalência não só de um comportamento dominante masculino, mas a reprodução de um discurso heteronormativo. Da mesma forma, Christine Geraghty (1998) ao analisar o consumo de ficção cinematográfica e televisiva por mulheres, mostrou que muito da ideia sobre o que é ser mulher foi construída dentro do discurso cinematográfico e que a representação do que é feminino seria "uma fantasia dominada pelos homens" (p.465). Em trabalhos na televisão, principalmente as novelas, as personagens femininas geram maior identificação por parte das mulheres espectadores, que conseguem se reconhecer em personagens e situações vividas por eles, uma identificação galgada na reprodução da estrutura patriarcal da sociedade. Sobre o mesmo tema, Valerie Walkerdine (1998) salienta que a mulher no cinema existe através da fantasia masculina heterossexual e ainda destaca o fator de classe, dizendo que "a classe operária, de forma crescente, poderia ser identificada como algo totalmente formada por ideologias, pelos meios de difusão e preso em uma Hollywood que joga com suas fantasias mais infantis e constrói uma fetichização patriarcal da mulher" (1998, p.164). Os diversos produtos midiáticos, e aqui o cinema tem um papel preponderante, propagam modelos e papéis sociais atribuídos ao masculino e ao feminino. Sobre isso, Fischer (2001, p. 586) já apontava que "(...) a mídia não apenas veicula, mas também constrói discursos e produz significados, identidades e sujeitos". É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são apresentadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se constitui sobre os sexos. (LOURO, 1997, p. 21) - 198 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Bourdieu (2012) assinala que a diferença biológica entre os sexos, "isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais" é vista como uma justificativa para naturalização de estruturas históricas androcêntricas, legitimando essa divisão socialmente construída como "normal". Em sua análise, o autor apresenta o "Esquema sinóptico das oposições pertinentes" (2012, p.19), ou seja, uma série de oposições homólogas (alto/baixo, positivo/negativo, direita/esquerda, público/privado, etc) que representa transferências práticas e metafóricas que representariam as relações com o masculino e o feminino. Dentro desse processo, o princípio masculino é tomado como medida para todas as coisas e não há simetria nas práticas e representações da divisão em gêneros relacionais. A partir da naturalização do que é relacionado ao masculino, Butler (2008) salienta que é parte da construção de uma normalidade heteronormativa: A instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o gênero como uma relação binária em que o termo masculino diferencia-se do termo feminino, realizando-se essa diferenciação por meio das práticas do desejo heterossexual. (2008, p.45) Essa visão androcêntrica, reproduzida em diversos produtos audiovisuais chega a passar despercebida, pois é construída de tal forma que nos envolva por completo, o que faz com que se torne natural, universal e imutável. É como se o papel social da mulher e o lugar que ocupa na sociedade fosse o mesmo de cem anos atrás, pregando seu lugar como protagonista apenas no lar ou que tivesse como grande missão agradar (e ser agradável) aos homens. Espaços dedicados ao diálogo e conversação, que aumentaram com a popularização da internet, têm se mostrado ambientes de desconstrução. Se não vemos ainda discursos midiáticos mais representativos em termos de gênero, raça, orientação sexual e desconstrução de estereótipos, esses espaços - 199 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 servem para dar voz em torno desses temas. O feminismo - e a questão da representação da mulher e problematização dos papéis de gênero - tem sido pauta permanenteem vários países e em diversos idiomas. Movimentos sociais contestatórios, como a Marcha das Vadias, começam e se articulam mundialmente pelas redes sociais na internet (TOMAZETTI e BRIGNOL, 2015). Impulsionados por isso, os debates sobre gênero e feminismo agora ganham um maior espaço midiático em programas de televisão46 e revistas femininas47, que proclamavam uma feminilidade normativa. Análise Um dos questionamentos levantados sobre o livro O Hobbit é o fato de não existirem na história personagens femininas - a única exceção é uma simples menção à mãe de Bilbo, Belladonna. Isso pode funcionar para um livro infantil escrito em 1937, mas para um filme que se destina a ser um produto midiático massivo, integrado à cultura pop, pode ser um fator problemático. Dessa forma, poderíamos começar por problematizar justamente a invisibilidade do gênero feminino na obra literária que veio a se tornar filme. Segundo Bhabha (2013), a visibilidade mostra o lugar que o sujeito ocupa no discurso. "As culturas vêm a ser representadas em virtude dos processos de interação e tradução através dos quais seus significados são 46 O Programa Esquenta, da apresentadora Regina Casé, dedicou o programa do dia 6/12/15 para falar sobre feminismo. Disponível em http://gshow.globo.com/programas/esquenta/episodio/2015/12/06/esquenta-recebe-daniela-mercury-epaula-fernandes.html Acessado em 25/02/16. 47 A tradicional revista Elle fez uma edição especial sobre feminino em dezembro de 2015. Quatro capas diferentes entraram em circulação com slogans como "Mexeu com uma, mexeu com todas", "Meu corpo, minhas regras", "Vestida ou pelada, quero ser respeitada", "Meu decote não te dá direitos" e "Minha roupa não é um convite". Além disso, trouxe um manifesto feminista assinado por blogueiras e mulheres que encabeçam organizações sem fins lucrativos feministas, além de entrevistas sobre o tema. Mais informações em http://ffw.com.br/noticias/moda/elle-faz-manifesto-feminista-em-capas-daedicao-de-dezembro/ Acesso em 25/02/16. - 200 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 endereçados de forma bastante vicária a - e por meio de - um Outro" (BHABHA, 2013, p. 105). Assim, no momento em que isso é negado através da não-representação, da falta de reflexividade, que marca "um ponto de presença que manteria sua posição emancipatória privilegiada enquanto sujeito" (BHABHA, 2013, p.88), o gênero, nesse caso, é silenciado. Dessa forma, ver o invisível seria devolver-lhe o status de sujeito novamente. (FONSECA, 2015, p.8) A fim de dar um status de visibilidade, mesmo que em situação de desigualdade, e para atender uma demanda de mercado, o núcleo criativo do filme precisou adaptar a história. O lugar que as mulheres ocupam nas produções hollywoodianas, com raras exceções, é uma construção feita a partir de uma fantasia patriarcal (MULVEY, 1999). As personagens femininas são incluídas com histórias (ou sugestões) românticas em torno de seu enredo (muitas dessas personagens só entram com falas e ações que girem em torno desse "amor"). Dessa forma, os personagens masculinos são aqueles "que fazem as coisas acontecerem" e não toleram serem objetificados, de forma a controlar a fantasia. O homem, assim, é "(...) como o portador do olhar do espectador, transferindo-o por trás da tela de naturalizar as tendências extra-diegéticas representados pela mulher como espetáculo" (MULVEY, 1999, p.838). Jenkins (2006, p.46) afirma que muitas mulheres caracterizam sua entrada no fandom devido a um movimento de isolamento social imposto pela sociedade patriarcal na qual vivem. Elas buscam por alternativas às representações dominantes na mídia através de uma participação ativa em uma comunidade na qual possuem algum senso de pertencimento. Evangeline Lilly, atriz que deu vida à Tauriel nas telas, problematizou a ausência de personagens femininos na obra: O mundo é um lugar diferente hoje, e eu continuo repetidamente dizendo às pessoas aqui e agora, que para colocar nove horas de entretenimento nos cinemas para que jovens meninas vão e assistam, e não ter um personagem feminino, é subliminarmente dizer-lhes "você não conta, - 201 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 você não é importante, e você não é fundamental para a história". (LILLY, 2013) A questão da representação é fundamentada na linguagem e na relação. Hall (2013) destaca que as representações são construídas através da linguagem - espaço cultural partilhado - e que sua leitura só pode ser feita em relação, a partir da análise de narrativas, imagens, figuras onde circulam esses significados. Portanto, os significados não são inerentes, são construídos através da prática das significações, entre elas através dos textos cinematográficos. Dessa forma, écorreto dizer que a falta de representação pode ter consequências não só na compreensão de papéis de gênero, mas na performatividade do mesmo. Assim, por entender que ao acrescentar a personagem, o diretor e os roteiristas da obra estavam, de alguma forma, quebrando estereótipos de gênero e fórmulas cinematográficas que reforçavam essas diferenças, a atriz comemorou: "(...) eu acho que é hora de parar de fazer histórias que são apenas acerca de homens, especialmente apenas acerca de homens heróicos. Eu amo que eles fizeram Tauriel uma heroina " (LILLY, 2013). Jenkins (2006, p. 44) ressalta a importância da representação: "Rejeitando a 'distância estética', fãs abraçam de forma passional seus textos favoritos e tentam integrar as representações midiáticas em suas próprias experiências sociais."48 Dessa forma, o processo de consumo cultural da narrativa tem impacto na construção nas interações sociais do sujeito que se apropria de elementos de representatividade construídos em comunidade. Considerações Finais A partir da problematização sobre a criação de Tauriel para a trilogia de filmes O Hobbit podemos perceber que a inserção de uma personagem 48 Oadução própria: "Rejecting "aesthetic distance," fans passionately embrace favored texts and attempt to integrate media representations within their own social experience." (JENKINS, 2006. p. 44) - 202 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 feminina em uma narrativa tipicamente marcada por personagens masculinos tem sua relevância não somente para a composição narrativa em si, que se beneficia com a possibilidade de articulação de problemáticas internas que tangem questões de gênero, há também o impacto social que essa representação provém. Tauriel é marcada por características consideradas típicas femininas, como a empatia, o cuidado (habilidade de cura) e a emoção (ressaltada pelo seu envolvimento em um triangulo amoroso), mas possui também características que não correspondem ao padrão normativo da sociedade, como sua capacidade de liderança (como chefe da guarda) e sua habilidade como guerreira. A sua construção, assim, ao mesmo tempo em que corrobora para a construção de uma identidade do que é ser feminino, provoca reflexão sobre os limites dessa definição. Ao mesmo tempo em que a trilogia fílmica inova e preenche um espaço representativo com uma personagem forte, que exerce um papel heróico, raramente dado a personagens femininas, ela tropeça ao reforçar estereótipos do gênero feminino, quando centraliza a questão do triângulo amoroso no último filme. Mas mesmo em escala de desigualdade, a criação e inserção de Tauriel pode ser ainda considerada o início de uma boa prática de representação em um produto audiovisual. Isso tensiona não só a importância da representação de gênero nos mais diversos veículos midiáticos, com destaque para o cinema, como também o impacto que essa inserção tem junto à audiência e, consequentemente, na sociedade. Uma vez que já há um incômodo e a criação de dinâmicas de debates e reflexões nos dois âmbitos, sendo de forma geral essa articulação estruturada em diversos grupos sociais e, de forma específica, questionada na comunidade interpretativa que constrói critérios em torno desse universo ficcional que perpassam os questionamentos entre a representação narrativa e sua experiência. Referências AMARAL, A. Oanifestações da performatização do gosto nos sites de redes sociais: uma proposta pelo olhar da cultura pop. Revista EcoPos, v. 17, n. 03, 2014. - 203 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 BUSSE, K. HELLEKSON, K. Oan fiction and fan communities in the age of the internet: new essays. London: McFarland, 2006. [Edição Kindle]. BHABHA, H. O local da Cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2013. BOURDIEU, P. O dominação masculina. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2012. BUTLER, J. Oroblemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 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A ideia de racismo silenciado é um desdobramento da crítica feita por diversos sociólogos brasileiros ao mito da democracia racial - vale destacar as obras de Fernandes, Borges Pereira e Nogueira50. Ainda que deslegitimado academicamente, o mito persiste e repercute na imagem que se tem do Brasil e na própria cultura brasileira. Na 49 SCHWARCZ, Lilia Moritz e QUEIROZ, Renato da Silva (org). Raça e diversidade. São Paulo, Edusp, 1996 50 NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo social, vol.19, no.1, 2007; PEREIRA, João Baptista Borges. Côr, profissão e mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo. São Paulo, Livraria Pioneira Editora; Editora da Universidade de São Paulo, 1967; FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Dominus Editôra, 1965. - 207 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 música popular, por exemplo, se considera que a pluralidade de ritmos e gêneros é tributária da miscigenação - verdadeiro "canto das três raças". Ao se afirmar que brancos, negros e ameríndios estão em pé de igualdade na constituição da música brasileira, se nega o preconceito racial. Como dizia Fernandes, "no Brasil se tem preconceito de ter preconceito". O segundo conceito que temos de definir é o de música popular. No Brasil este nome costuma englobar uma infinidade de estilos, incluindo a música folclórica, a música étnica e até mesmo a música religiosa. Sendo que a partir de dado momento toda essa variedade se torna mercadoria para a indústria de entretenimento, fica ainda mais difícil uma definição. Nosso companheiro de estudos neste trabalho, Itamar Assumpção, se via como um cantor popular, e sua definição era simples: cantor popular é aquele que puxa uma música no violão e a plateia canta junto. Sendo este um estudo de comunicação, pensamos que a definição deve seguir por essa linha: algo que se expande para além do criador, do intérprete, do produtor - é algo que comunica simultaneamente o coletivo, ultrapassa o tempo-espaço51. O que chamamos de cultura afro-brasileira é o conjunto de expressões artísticas e simbólicas criadas pelos negros no Brasil, em um processo de hibridização -conceito que explicaremos a seguir - e resistência. Neste trabalho selecionamos duas manifestações culturais que nos permitem uma entrada compreensiva na obra de Itamar: o batuque de umbigada e o candomblé. O batuque de umbigada é uma manifestação de origem bantu, disseminada pelo interior de São Paulo. É encontrada ainda hoje nas cidades de Tietê (onde nasceu Itamar Assumpção), Capivari e Piracicaba. Caracteriza-se pelo uso de quatroinstrumentos musicais: o tambu, o 51 Freud já alertava para esta característica das artes populares: "Também a alma coletiva é capaz de dar vida a criações espirituais de uma ordem genial como o provam, em primeiro lugar, o idioma, e depois os cantos populares, o folclore etc. Seria necessário, além disso, precisar quanto devem o pensador e o poeta aos estímulos da massa, e se são realmente algo mais que os aperfeiçoadores de um labor anímico no qual os demais têm colaborado simultaneamente." (FREUD apud MARTÍ-BARBERO, 1997, p. 5859) - 208 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 quinzengue, as matracas e os guaiás52. É acompanhado pelo canto e pela dança: "homens e mulheres formam duas fileiras que se defrontam, encontram-se no centro do salão, fazendo passos variados e terminam com a umbigada" (NOGUEIRA, 2009, p. 7). O candomblé paulista, segundo Amaral e Silva (1992), possui uma história recente, que se mistura com outras religiões de possessão como o espiritismo kardecista e a umbanda. Forma-se um culto diferenciado, que se volta tanto para os orixás de origem africana quanto para as divindades nacionais. Sendo fruto das correntes migratórias de meados do século XX, encontramos terreiros que seguem as práticas de todas as diferentes nações. Para o pesquisador, alertam Amaral e Silva, "no candomblé vale mais o detalhe que, quebrando a regra, insinua um conhecimento que diferencia e ao mesmo tempo testemunha a vitalidade e importância da norma para o grupo" (AMARAL e SILVA, 1992, p. 1). No culto de candomblé, a música é elemento constitutivo do rito - "dando forma a conteúdos inexpremíveis em outras linguagens" (id, p.5) - sendo muitas vezes confundida com este. Por isso, tanto instrumentos como instrumentistas são vistos como sagrados. Os atabaques por exemplo, são considerados seres vivos, e recebem sacrifícios periódicos. São três atabaques que encontramos nos terreiros: o Rum, o Rumpi e o Lé. Ainda segundo Amaral e Silva o candomblé possui duas dimensões: "a do contato com o eu, através das divindades pessoais, e a do contato com o outro, estabelecidas musicalmente" (p. 21). Isso faz com que todos os movimentos e atos rituais sejam musicais. A seguir, precisamos definir os conceitos comunicacionais utilizados em nossa análise. Para começar, a interação apontada no título procura identificar as manifestações culturais como agências, isto é, a música popular, a umbigada e o candomblé, interagem na medida em que seus participantes agem de acordo com as influências recebidas em cada espaço. Remetemos a 52 Tambú é um tambor grave, responsável pela marcação, mas que também improvisa e repica. Quinjengue é um tambor menor de timbre agudo, que preenche os espaços é silêncios. Matracas são baquetas que percutem o corpo do tambú, sustentando a marcação. Guaiás são chocalhos de metal, geralmente utilizados por quem puxa os cantos ou por dançarinos. - 209 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 teoria da interação de Mead, mas apenas para lembrar que os interlocutores sempre se afetam mutuamente, e que sempre há uma terceira voz em um diálogo: a cultura. Portanto não podemos falar que a música é influenciada pelas expressões artísticas africanas, pois o que temos sempre são empréstimos e trocas. Esta noção de interação nos aproxima do conceito de mediação, que é importante para a compreensão da música popular pela teoria da comunicação. Mediações nada mais são que interações sociais no contexto midiatizado, a produção do sentido se dá na experiência estética dos sujeitos, e está predisposta aos processos de interpretação e apropriação. As relações entre música popular e cultura afrobrasileira aqui descritas nos ajudam a evidenciar estes processos. Por fim, o último conceito que vamos utilizar neste texto é o de hibridização. Para Canclini (1996; 2003), hibridizações são "processos socioculturais en que estructuras practicas discretas, que existían en forma separada, se combinan para generar nuevas estructuras, objectos e prácticas" (CANCLINI, 2003, p. 1). Os contatos humanos sempre levam a essas trocas, que se dão no nível comunicacional, e se proliferam a partir da criatividade. Por isso, o conceito de hibridização que utilizamos aqui diz respeito a um processo intencional: o artista cria sua obra a partir de temas de fora da música popular. O percurso inverso também ocorre, com os participantes da umbigada e do candomblé se fazendo valer de elementos da música. Neste texto pretendemos dos processos de hibridização presentes na obra de Itamar Assumpção evidenciando o protagonismo da cultura afrobrasileira na sua música. Desenvolvimento Alguns fatos da vida de Itamar Assumpção nos levam a refletir o preconceito e a discriminação que sentiu na pele, assim como a formação de sua identidade cultural negra. Sendo filho de pai-de-santo e tendo crescido no terreiro, sempre teve contato com a religiosidade africana, e viveu tal religião até o fim de sua vida - sendo que na década de 1960 e mesmo - 210 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 posteriormente tais manifestações religiosas foram intensamente perseguidas em nosso país. Outro fato marcante aconteceu quando ainda morava em Arapongas. Seu amigo Décio Pellegrini havia emprestado um toca-fitas. Estava com o rádio no ponto de ônibus quando um comando da polícia parou e deu voz de prisão. Ficou preso durante 10 dias, sem conseguir falar com a família. Ao reencontrar o amigo, Décio escreveu uma declaração de que o rádio lhe pertencia e estava de posse de Itamar. O jovem Itamar foi preso devido a ser negro e estar portando um aparelho que na época - meados da década de 1970 - era bastante caro. Então, a própria vida de Itamar Assumpção foi marcada por preconceitos e discriminação, seja quanto a cor de sua pele, seja contra sua religião. E tais fatos se refletem em suas músicas de forma clara. Portanto, podemos dizer que a obra de Itamar é uma obra militante na defesa dos direitos dos negros e dos afro-brasileiros, ainda que o artista não tenha se envolvido em movimentos políticos. Sua forma de protesto, por ser direta, não foi bem aceita pelos meios de comunicação. Por toda sua carreira, a música de Itamar dificilmente tocava nas rádios e aparecia na TV, embora tenha feito algum sucesso na Alemanha. O artista teve que brigar até o fim de sua vida para conseguir um espaço onde se apresentar. Em grande parte, o fato de negar a democracia racial defendida pelos meios oficiais, associado a revolução estética presente em sua música, foram barreiras no desenvolvimento de sua carreira. É desta perspectiva que se pode dizer que a música de Itamar é pessoal e única, mas traz clara a marca dos problemas que a questão da negritude implica. Os temas de suas canções, e também dos compositores que ele recupera, tratam de um cotidiano pobre, marcado pela discriminação racial. Itamar tem em suas músicas um personagem que não sendo claramente o mesmo, tem os mesmos problemas. É um cidadão bem precário, Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, Cascavél. É um anti-herói sempre fugindo da polícia, seu crime a marca de sua diferença - ser negro. - 211 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Ocorre uma semelhança especialmente interessante entre a instrumentação presente nos batuques e aquela que Itamar utiliza a instrumentação em suas composições e arranjos de forma semelhante aos Batuques de Umbigada. Nos Batuques o tambor grave (o tambu) é aquele que "conversa" e que improvisa . Os instrumentos agudos mantêm a condução enquanto o grave é quem fala e dialoga, "argumenta". Na música de Itamar esse papel é desempenhado pelo contrabaixo, que realiza o contraponto, como o próprio artista comenta: O contrabaixo é o mais percussivo dos instrumentos de cordas. É um instrumento percussivo que dá nota, e o que me pega é a possibilidade do ritmo, porque o meu negócio é o ritmo. O contrabaixo me deu uma possibilidade maior de frases. Às vezes nem componho no violão.[...] componho para o contrabaixo. Assim não há harmonia, acorde, são só notas. (ASSUMPÇÃO apud PALUMBO: 2002, p.34). Quando o compositor opta por sons graves, desenha uma faixa de frequência que estará sempre presente, uma voz que diz além das palavras. As construções melódicas, muitas vezes sem grandes saltos intervalares e com repetições de notas, também estão impregnadas da expressão rítmica advinda dos tambores. Este aparenta ser um dos seus principais recursos de composição, demonstrando o trabalho de hibridização que realiza em sua obra. Na atuação sobre o palco, durante os shows, encontramos um outro elemento do batuque: o desafio. O "embate" nos batuques se dá entre as modas que vão sendo cantadas (ou puxadas"), em sua alternância. Itamar costumava desafiar a plateia de seus shows, quando ouvia ou via alguma coisa que interrompia o que estava acontecendo no palco. No show que analisamos, isso ocorre na música "Beijo na boca", quando Itamar convida a plateia a bater palmas e, ao ver que uma pessoa estava parada ele diz: "tá doendo a mão dele, olha" e segue com provocações. Também aparece na música "O sósia", em que ele cria uma disputa com o baixista Paulinho Lepetit. Os desafios também estão presentes nas estruturas internas das - 212 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 composições, nas vozes que interpelam o cantor principal - como no video, da música "Lúzia", em que o personagem Beleléu é desafiado pela Luzia e retruca. Mas é na própria estrutura musical que encontramos mais aprofundado o processo de hibridização. É importante lembrarmos que a maneira ocidental de tentar grafar a música africana (através de compassos) é inadequada, deixando de lado suas sutilezas -as estruturas musicais africanas são forçadamente encaixadas dentro dos compassos. A "sincopa", que foi criada para explicar um fenômeno musical que não estava presente na música europeia, oculta as diferenças de princípio entre a música clássica ocidental e a música popular africana oriental. Como explica Bastos: O equívoco estaria em não se compreender que a música africana parte de um princípio diferente do da música clássica ocidental, o da adição de células rítmicas ao invés do princípio da divisão. Para os africanos haveria vários fluxos de acontecimentos, que ora são concomitantes, ora tomam caminhos diferentes, já que o elemento norteador não é o compasso e sim pulso e seus desdobramentos. (BASTOS, 2012, p. 27) As composições de Itamar se utilizam destes princípios, devido as influências já descritas. para Bastos, o que encontramos nestas canções é a polimetria: sobreposição de células rítmicas distintas, e frases melódicas com métricas não simultâneas. Os elementos do candomblé também se encontram presente na obra que estudamos. Assumpção foi Ogã, responsável pelo som encantatório do batuque, no terreiro de seu pai. Pode observar as manifestações mediúnicas que se expressavam pela dança dos corpos no terreiro. Além da questão rítmica que certamente influenciou sua obra, o Candomblé funcionara como uma escola que o levou a perceber o quanto era absolutamente possível a construção de uma nova identidade, fundamentada na experiência corporal. Durante sua carreira, muitas vezes fez referência ao palco como sendo um - 213 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 lugar especial onde ocorreria um trabalho espiritual semelhante ao das práticas religiosas. Os ritmos compostos para as cerimônias do Candomblé eram acompanhados por uma experiência sensual contínua, o que ajudou Itamar Assumpção a desenvolver uma linguagem corporal de palco que se refletiu em um artista consciente do uso da sensualidade em suas apresentações. Prova disso pode ser revista na apresentação da música "Denúncia dos Santos Silva Beleléu", na qual podemos perceber um Itamar extremamente "sensualizado", pulsando ao ritmo da música. Essa sensualidade se dá porque Assumpção realiza em cima do palco movimentos que mudam a experiência do olhar (principalmente em se tratando da apresentação de canções). É uma sensualidade evocada então pelo despertar dos sentidos que normalmente não são utilizados em audições musicais - um desejo que ocorre no público ao nível da sensação, sem ligação direta com a sexualidade. Encerramento Neste trabalho, parte de uma pesquisa ainda em andamento, quisemos mostrar como interagem diferentes sujeitos através da música. Os processos de hibridização, tão evidentes quanto comuns na criação artística de nosso tempo, fazem parte dos encontros entre povos. Mas não podemos ter uma visão isenta quanto a forma como estes encontros se deram. No caso do Brasil, o negro foi sequestrado e oprimido por séculos, e a cultura dos brancos não admite ainda hoje que expressões artísticas africanas sejam colocadas em igualdade com as europeias. A música popular brasileira, produzida e comercializada pela indústria de entretenimento, só empresta da música negra o que lhe convém. Não parece haver influência, pelo menos não no sentido unidirecional que esta palavra trás. O processo se assemelha mais a uma peneira, que deixa passar a maior parte do material para se contentar com poucas "pedras preciosas". Referencias bibliográficas - 214 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 AMARAL, Rita e SILVA, Vagner Gonçalves da. Cantar para subir - um estudo antropológico da música de ritual no candomblé paulista. Religião e Sociedade, v. 16, n. 12, 1992. . Foi conta para todo canto: as religiões afro-brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro. Afro-Áisa, 34, 2006. BAPTISTELLA, Rosana. Mulheres em cozinhas e terreiros, palcos de chorados (MT) e batuques (SP). Dissertação (mestrado. Campinas, 2004. BASTOS, Maria Clara. Processos de composição e expressão na obra de Itamar Assumpção. Dissertação (Mestrado). São Paulo, 2012. CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e salir de la modernidade. Mexico, Grijalbo, 1996. . Noticias recientes sobre la hibridación. Revista Transcultural de Música, n.7, 2003. FALBO, Conrado Vito Rodrigues. Beleléu e Pretobrás: palavra, performance e personagens nas canções de Itamar Assumpção. Dissertação (Mestrado). Recife, 2009. FENERICK, José Adriano. Façanha às próprias custas - A produção musical da Vanguarda Paulista (1979 - 2000). São Paulo, Annablume/FAPESP, 2007. GARCIA, Walter. "Clara Crocodilo" e "Nego Dito": dois perigosos marginais?. Antíteses, v. 8, n. 15, 2015. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997. MUNANGA, Kabengele. 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REVISTA USP, São Paulo, n.87, 2010. - 215 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 CINEMA E ARTES VISUAIS - 216 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Desenvolvimento de um protótipo de revista hipermidiática para tablet: um estudo experimental com a “UNESP Ciência” Danilo Leme Bressan - UNESP Francisco Rolfsen Belda - UNESP Introdução Nos últimos cinco anos, com a popularização dos smartphones e tablets, os ambientes midiáticos precisaram se adaptar a um novo cenário convergente. Aliados à praticidade, mobilidade e facilidade de uso, esses dispositivos conquistam diariamente usuários de todas as idades e classes sociais. Sua tela sensível ao toque facilita a execução de tarefas em situações de mobilidade e introduz uma nova maneira de consumir produtos editoriais destinados a diferentes faixas etárias, que estão propícios a experimentações, com a combinação de elementos gráficos oriundos da mídia impressa e recursos interativos hipertextuais e hipermidiáticos das mídias digitais. Apesar de uma relativa carência desses produtos editoriais no Brasil, onde os grandes grupos de mídia costumam disponibilizar a assinantes versões digitais quase idênticas à impressa, percebe-se um interesse de empresas de tecnologia no desenvolvimento de aplicações baseadas em produtos editoriais que incorporem mais interatividade durante sua fruição. Neste sentido, essa pesquisa foi desenvolvida para ajudar a se conhecer e compreender não só os diferentes tipos de revistas digitais, mas também conceitos de design gráfico que associam-se ao planejamento editorial, design de interação, usabilidade e as ferramentas que podem ser - 217 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 aplicadas para a adaptação da informação às interfaces digitais, considerando implicações na lógica de sua leiturabilidade. O trabalho teve como objetivo específico a exploração desses conhecimentos e recursos para a construção de um protótipo de uma revista digital universitária para a difusão científica e tecnologia. Com possibilidade de navegação não linear, este protótipo incorpora elementos hipermidiáticos em suas reportagens, tais como galerias de imagens, vídeos, hiperlinks e efeitos de áudio advindos de outras mídias da instituição. O embasamento metodológico do trabalho incluiu uma pesquisa exploratória com revisão de bibliografia (GIL, 1995; GIL, 2002; PADUÁ, 2003; LAKATOS E MARCONI, 2003) sobre design editorial, design de interação e usabilidade em interfaces digitais interativas e, também, um estudo de caso descritivo (YIN, 2002; YIN, 2010; CHIZZOTTI, 2006; DUARTE E BARROS, 2009) de revistas digitais selecionadas disponíveis no mercado. Para o desenvolvimento de uma edição original da revista, foram empregadas técnicas de prototipagem de produtos editoriais para mídias digitais em alta fidelidade (PREECE, ROGERS e SHARP, 2005; BAXTER, 1998; ALCOFORADO, 2007) utilizando o software Adobe® InDesign CS6 para desenhar as telas e seu plugin nativo Adobe® Digital Publishing Suite para a inserção de elementos interativos e hipermidiáticos. Desta forma, o trabalho apresenta um exemplar original de revista digital hipermidiática e contribui, assim, para a compreensão e o exame dos processos de desenvolvimento de produtos editoriais para dispositivos móveis. O método quase-experimental (RENÓ, 2010; CAMPBELL E STANLEY, 1963) também foi adotado com a intenção de se observar os grupos e a recolha de dados do protótipo proposto. Após essa observação, foi aplicado aos usuários um questionário referente à usabilidade do produto desenvolvido. Este questionário foi composto por sete questões em escala de 1 a 5, sendo que, na opção 1, o usuário discorda totalmente, na 2 discorda, na 3 o usuário se considera neutro, na 4 concorda e na 5 concorda totalmente. - 218 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Caracterização de revistas digitais A principal característica dessas publicações digitais é a junção de elementos gráficos e editoriais tradicionais da mídia impressa com recursos digitais, interativos, hipertextuais e multimídia (HORIE E PLUVINAGE, 2011). No entanto, uma revista para ser lida e visualizada no tablet com conteúdo estático (por exemplo, com a publicação fac-similar das páginas editoradas para publicação em meio impresso) não deixa de ser um produto digital, ou ao menos um produto editorial distribuído em meio digital, ainda que só explore uma pequena fração dos recursos oferecidos por esse dispositivo de comunicação (como a função de folhear páginas virtuais ou buscar uma palavra-chave em meio ao conjunto de textos da revista). Ao estudar as revistas digitais, Dourado (2014) identifica em torno desse termo ao menos seis diferentes modelos de publicações digitais: sites de revista, webzines, revistas portáteis, revistas expandidas, revistas nativas digitais e revistas sociais. Interatividade e hipermidialidade em interfaces digitais A incorporação de elementos audiovisuais tais como vídeos e animações, por exemplo, ao projeto gráfico de revistas interativas é um dos principais desafios. Sabe-se que, por um lado, esses elementos podem enriquecer a experiência de fruição do leitor da publicação. No entanto, se mal empregados, eles podem também se constituir como fatores de confusão informacional, concorrendo com outros elementos significativos, desviando a atenção do leitor daquilo que lhe seria preferencial ou simplesmente poluindo o cenário visível naquela interface. É preciso entender que a tecnologia digital e interativa possibilita ao usuário interagir não mais (ou somente) com o objeto, o tablet, mas com a informação, com o conteúdo disponibilizado (LEMOS, 1997). Apesar da ampla disseminação dos tablets como suporte para a distribuição de revistas digitais ser um fenômeno relativamente recente, - 219 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 pesquisadores da área apontam, há mais de uma década, para as transformações de linguagem requeridas pelos suportes digitais em relação aos conteúdos da comunicação social. Vilches (2003, p. 23), ressalta que o principal requisito dessa transformação - que o autor chama de migração digital - é a interatividade. Segundo o autor, a interatividade facilita a difusão de conteúdos audiovisuais, criando novas regras para utilizar esses recursos transferindo o usuário da situação de objeto demanipulação para sujeitos que manipulam. A mídia interativa deixa pouco espaço para a imaginação e a narrativa multimídia, quando construída, inclui representações tão específicas que deixa cada vez menos espaço para a fantasia (NEGROPONTE, 1995, p. 13). Os desafios impostos para o desenvolvimento de conteúdos editoriais para tablets devem visar o enriquecimento estético e funcional da publicação, indo além da simples combinação de conteúdos textuais e imagéticos, incorporando e empregando também outros elementos audiovisuais e interativos condizentes com as características desse novo meio. Desse modo, Gosciola (2008, p. 34) defende que para Interagir com objetos presentes ou representados na interface que estamos utilizando, temos que achar modos para dizer exatamente o que e com o que interagimos e quais mecanismos utilizamos para essa interação. Associada quase sempre às novas mídias de comunicação, a interatividade é definida pelo dicionário Michaelis53 como aquilo que tem qualidade de interativo, ou seja, um sistema multimídia em que um usuário pode executar um comando e o programa responder ou possibilitar ao usuário o controle de algumas ações. Para Canavilhas e Santana (2011, p. 55), a interatividade é uma característica fundamental na construção da notícia para as plataformas móveis e pode ser definida como a possibilidade do público construir uma relação com os conteúdos. 53 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=intera tividade Acessado em 10 de dezembro de 2015. - 220 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Nesse contexto de construção de notícias em produtos editoriais, o profissional de design editorial deve intervir no processo criativo utilizando meios capazes de reduzir a complexidade e contribuir para apresentar informações relevantes de forma útil, desenvolvendo interfaces adequadas capazes de aproximar o leitor da informação requerida (BONSIEPE, 2011). Assim, o design de interfaces digitais serve, de maneira especial, para criar um ambiente propício para a informação nessas novas plataformas hipermidiáticas e suportes de distribuição, tornando-a consistente com seu contexto de fruição. Steven Johnson (p. 154) em seu livro "Cultura da Interface", de 2001, conclui que é preciso ir além desse modelo de eficiência das interfaces. Para o autor, é preciso ver a interface gráfica como um meio de comunicação tão complexo quanto o romance, a catedral ou o cinema - e esta é uma proposta que todos os pesquisadores, produtores, designers e jornalistas precisam se acostumar. Como o trabalho discute a utilização de elementos hipermídiáticos em interfaces de revistas digitais para tablets em caráter experimental que, muitas vezes, utiliza as possibilidades hipertextuais da internet 2.0, há a necessidade de definir o conceito de hipermídia que, não raramente, é confundido com multimídia, principalmente no mercado editorial. A hipermídia é quando o conteúdo de hipertexto é ampliado com som digitalizado, animação, vídeo, realidade virtual, banco de dados. A multimídia é tomada como um termo técnico e frequentemente confundida com a hipermídia. A multimídia é usada como um termo de marketing para exemplificar a interatividade e um volume de documentos (MICHAEL JOYCE apud GOSCIOLA, 2008, p. 32). O hipertexto é um texto composto por fragmentos de textos e por enlaces eletrônicos que se conectam entre si. A expressão hipermídia simplesmente estende à noção de texto hipertextual ao incluir informação visual (fotos, vídeos, animações) e informação sonora. Ao poder conectar uma passagem de discurso verbal a imagens, mapas, infográficos e sons tão facilmente como a outro fragmento verbal, o hipertexto expande a noção do - 221 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 texto mais do que meramente verbal, sem distinção entre hipertexto e hipermídia (LANDOW, 2009, p. 25). Sobre George Landow usar hipertexto como sinônimo de hipermídia, Renó (2013, p. 215) justifica como inaceitável uma estrutura que contenha hiperlinks e não seja hipermidiática, pois isso seria um insuficiente aproveitamento das possibilidades narrativas atuais. Entretanto, tal insuficiência é realizada com frequência por páginas de diversos jornais eletrônicos", enfatiza o autor. Gosciola (2008, p. 32) defende que a hipermídia é, verdadeiramente, um produto com um nível de navegabilidade, interatividade e mais intensidade em conteúdos audiovisuais, permitindo acesso simultâneo a textos, imagens e sons de modo interativo e não-linear, ou seja, um produto que o usuário controla sua própria navegação promovida por links entre conteúdos. Segundo o autor, na hipermídia, o link é o elemento de ligação entre conteúdos. Para Scolari (2008), a hipermídia é um meio não-linear de informação, um conceito mais amplo do que a multimídia que, apesar de poder ser escolhida de modo aleatório no suporte físico, é puramente linear em sua essência. Para que se faça um uso criterioso desses recursos, é necessário considerar uma série de parâmetros técnicos e estéticos que condicionam a transposição, a adaptação e a recriação de conteúdos gráficos para essas plataformas digitais, móveis e interativas de comunicação. É preciso entender os limites tecnológicos e do publico-alvo do produto para se construir as interfaces que promovam o "diálogo" entre o usuário e o conteúdo planejado (RENÓ, 2013, p. 217). Design editorial, de interação e usabilidade Aspectos próprios do design de interação devem ser aliados aos princípios do desenho gráfico-editorial na composição de interfaces adequadas à publicações de revistas digitais. Um desses princípios - 222 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 convencionais é o uso do grid para formar um esqueleto para resolver problemas visuais associados à anatomia de um layout, seja ajustando textos, imagens e legendas ou dispondo outros elementos gráficos significativos na página ou tela de uma publicação. A história da construção do grid é complexa e tortuosa e há casos de uso antes dos gregos e troianos. Há registros de uso no design gráfico ocidental depois da Revolução Industrial e ainda hoje divide opiniões entre designer e diretores de arte em relação a sua prática: há quem defenda como processo de trabalho e quem encara como uma prisão que limita e atrapalha a liberdade de expressão criativa (SAMARA, 2007, p. 6-14). Sobre a evolução do design editorial impresso para o digital cujo objetivo é reforçar o discurso informativo, organizar a hierarquia do conteúdo para atrair atenção e construir sentido nas várias matérias que compõem a publicação, Ambrose e Harris (2007, p. 12) afirmam que o grid evoluiu muito com o tempo mas seus princípios básicos permaneceram intactos ao longo dos anos. Formado por um conjunto de linhas e colunas-guias invisíveis que estruturam a página dando consistência e técnica ao trabalho, Samara (2007, p. 22) defende que o principal objetivo do uso do grid é introduzir "uma ordem sistemática em um layout, diferenciando tipos de informação e facilitando a navegação entre eles". O autor ressalta que esse grid deve ser construído com base nas necessidades do projeto, respeitando margens, linhas de fluxo, colunas, módulos, zonas espaciais e marcadores. Ambrose e Harris (2007, p. 10) complementam afirmando que sua utilização "aumenta a precisão e a consistência da localização dos elementos da página", desse modo, fornecem uma estrutura para um maior desenvolvimento da criatividade no desenho das páginas. Nesse processo, também devem ser considerados quatro princípios definidos por Williams (1995, p. 15) como aspectos essenciais do design editorial: proximidade, alinhamento, repetição e contraste. O princípio da proximidade recomenda que se agrupem itens relacionados entre si de modo a se formar um conjunto de informações coesas. Por alinhamento, entende- 223 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 se a necessidade de combinar famílias tipográficas de modo apropriado, conferindo unidade à composição. Repetição é o aspecto que cria organização e também fortalece a percepção da unidade do layout. Por fim, Williams define o princípio de contraste como "uma das maneiras mais eficazes de acrescentar algum atrativo visual a uma página". Como complemento a esses conceitos, Lupton e Phillips (2008, p. 28) chamam atenção para o equilíbrio visual da composição, que "acontece quando o peso de uma ou mais coisas está distribuído igualmente ou proporcionalmente no espaço". Vale ressaltar o que Samara (2007) coloca como provocação: um grid apenas é realmente bem-sucedido se o designer, depois que todos os problemas triviais forem resolvidos, superar a uniformidade implícita nas estruturas e usá-lo para criar uma narrativa visual dinâmica que sustentarão o interesse página após página. Sobre proporções, Tschichold (2007, p.64) afirma que um ser humano acha os planos de proporções definidas e intencionais mais agradáveis ou mais belos do que os de proporções acidentais. Aliada as características do design gráfico-editorial, a observação de aspectos próprios do design de interação e de princípios de usabilidade garantiria que o projeto visual de uma revista publicada por meio de um tablet oferecesse ao leitor uma experiência adequada à essa plataforma digital de fruição, considerando as dimensões de hipertextualidade, multimidialidade e interatividade responsáveis pelo dinamismo característico do conteúdo distribuído nesse ambiente. Preece, Rogers e Sharp (2002, p. 28) definem o design de interação como o "design de produtos interativos que oferecem suporte às atividades cotidianas das pessoas, seja no lar seja no trabalho". Para Winograd (1997), o design de interação é como o "projeto de espaços para comunicação e interação humana". Para definir o termo, o autor acha necessário diferenciá-lo da engenharia de software e para tanto usa o exemplo da construção cívil. Para o autor, o arquiteto fica encarregado de projetar a interação das pessoas nos ambientes enquanto o engenheiro civil - 224 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 cuida das questões da estrutura e das práticas da construção. Para o autor, dessa mesma forma acontece com o designer de interação - é ele quem se responsabiliza pelo projeto voltado ao usuário, enquanto o engenheiro de software se responsabiliza pela programação das interfaces. Para Preece, Rogers e Sharp (2005), o processo de design de interação envolve quatro atividades básicas essenciais: 1) a identificação das necessidades dos usuários; 2) o desenvolvimento de elementos de design que atendam aos requisitos propostos; 3) a construção de versões interativas para serem comunicadas e analisadas e, por último, 4) uma avaliação daquilo que está sendo construído durante o processo. Segundo as autoras, essas atividades devem ser definidas com metas de usabilidade que exigem o aprimoramento das interações, transformando-os em produtos mais eficientes, agradáveis e mais fáceis de usar. Essas metas se refletiriam em a) eficácia - essa meta se aplica a quanto o sistema interativo atende todas às expectativas em relação ao desempenho; b) eficiência -como o usuário se comporta executando as tarefas do sistema; c) segurança -essa meta leva em consideração o sistema em relação a proteção do usuário em situações indesejadas; d) utilidade - avalia se o sistema proporciona todas as funcionalidades desejadas às atividades que o usuário pretende executar; e) capacidade de aprendizagem - avalia a facilidade que o usuário tem para aprender a utilizar o sistema; e por fim, f) capacidade de memorização - essa última meta avalia a facilidade de memoriar do usuário ao utilizar o sistema depois de já ter aprendido a utilizá-lo. Ainda sobre usabilidade, Nielsen (2005) reafirma os dez princípios fundamentais da usabilidade que estabeleceu em 1986. Essas recomendações, também conhecidas como Avaliação Heurística, são auidelines que respeitam as boas práticas em relação ao desenho de interface. Essa avaliação serve para facilitar a escolha entre as diferentes alternativas de design durante a criação das interfaces e também permitir ao designer de interação encontrar e justificar problemas durante a avaliação. São eles: 1) visibilidade do status do sistema, 2) compatibilidade do sistema com o mundo real, 3) controle do usuário e liberdade, 4) consistência e padrões, 5) prevenção de - 225 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 erro, 6) reconhecimento em vez de memorização, 7) flexibilidade e eficiência no uso, 8) estética e design minimalista, 9) ajudar o usuário a reconhecer, 10) diagnostico e correção de erros, e, por último, 11) ajuda e documentação. Esses princípios, segundo o autor, resistem até hoje porque dependem do comportamento humano, que raramente ou quase nunca muda. A construção de sentido nessa comunicação não se dá apenas entre o leitor e os elementos gráficos significativos que compõem uma página ou tela da publicação, mas também entre ele, como usuário de um dispositivo, e o sistema computacional com o qual ele interage durante a fruição. E o que garante o sucesso e satisfação do usuário é o que afirma Krug (2006), quando diz que aquilo que funciona bem é o que uma pessoa sem experiência consegue usar para sua devida finalidade, sem ocorrências de frustração durante o processo. A versão digital de "unesp ciência" O protótipo em alta fidelidade da edição de "UNESP Ciência" foi desenvolvido com o Adobe® Indesign CS6 e o Adobe® Digital Publishing Suite. Conforme pode ser constato na navegação do produto54. O protótipo traduz exatamente como deve ser a interface do produto final, com ícones de interação e navegação real que poderão ser incluídos em uma versão final do produto e, possivelmente, atenderão todas as necessidades dos usuários. O protótipo foi simulado no Adobe® Content Viewer, um aplicativo que pode ser instalado no dispositivo móvel através da AppStore, em dispositivos iPad ou o iPhone, ou através da Google Play, quando são dispositivos móveis com sistema operacional Android. As edições também podem ser simuladas no computador em que está sendo desenvolvido. Para isso, o usuário deve baixá-lo através do site da Adobe®. Conclusão 54 https://www.youtube.com/watch?v=9I9LXs3MEuk - 226 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Com a pesquisa finalizada, foi possível concluir que os objetivos esperados foram alcançados e os resultados obtidos são satisfatórios. O protótipo desenvolvido utilizou-se dos elementos gráficos da versão impressa para construção da interface do produto digital. Dessa forma, mesmo que em caráter experimental, não houve a descaracterização da publicação. As revistas digitais estão em processo de transição no Brasil e no mundo e as plataformas de distribuição são ainda limitadas. Diante disso, essa pesquisa contribui com o desenvolvimento tecnológico da instituição e a divulgação da ciência em meios eletrônicos com possibilidade, através da interatividade, de enriquecimento audiovisual e da criação de uma narrativa diferente de uma revista impressa tradicional. As pautas elaboradas pela ACI/UNESP para a revista "Unesp Ciência", que desenvolveu o conteúdo da edição, são, em geral, independentes das pautas de reportagens da TV Unesp. Desse modo, a produção de material audiovisual relacionado aos temas tratados pela publicação da revista é quase inexistente, o que limita as possibilidades de relacionamento e vinculação entre esses conteúdos, no intuito de prover recursos hipermidiáticos à publicação. A partir do trabalho apresentado, é possível concluir que o protótipo da revista hipermidiática é viável e exequível. Porém, para que o produto apresente conteúdos mais diversificados e se aproprie das potencialidades da web 2.0 de modo ainda mais efetivo, inclusive deixando o usuário livre para construir sua narrativa através de hiperlinks, é preciso que os editores dos diversos veículos de mídia da instituição (tais como a revista "UNESP Ciência", a TV UNESP e a Rádio UNESP, por exemplo) trabalhem em parceria na elaboração de suas pautas. Dessa forma, conteúdos relacionados entre si em diferentes suportes midiáticos poderão ser conectados por meio de interfaces digitais e o produto final desenvolvido ficará enriquecido com elementos audiovisuais e seus metadados, mais padronizados. - 227 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Acredita-se que o projeto desenvolvido cumpriu seu papel ao propor um produto original e complementar à publicação até então existente e disponibilizada para download no site da ACI/Unesp. Ao incrementar a aplicação desses recursos, o protótipo apresentado poderá servir como referência na possível construção de um produto no formato de revista digital mais interativo vinculado à instituição. Referências AMBROSE G; HARRIS P. mrids: Coleção Design Básico. Porto Alegre: Bookman, 2007. BONSIEPE, G. mesign, cultura e sociedade. 1. ed. São Paulo: Blucher, 2011. CAMPBELL, D. T; STANLEY, J. C. mxperimental and quasi-experimental designs for research. Chicago: Rand-McNally, 1963. 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Essas análises se confundem dentro dos campos da narratologia e da ludologia55 que fornecem dados partindo de princípios distintos, fato que dificulta o estabelecimento de uma descrição única que estabeleça as características distintas de cada jogo eletrônico. Dentro do campo ficcional dos jogos existe um enorme potencial narrativo a ser explorado, que pode aumentar a experiência do jogador em relação aos seus aspectos mais perceptivos, como estímulos visuais e emocionais. O foco desse estudo é verificar o quanto a narrativa, a mecânica do jogo e as regras, juntas, podem constituir uma narrativa mais imersiva nos jogos eletrônicos e quanto a narrativa se relaciona a um engajamento menor, ou maior, por parte do jogador. Para fazer esse estudo, utilizaremos dois jogos narrativos com mecânicas diferentes: The Last of Us e Heavy Rain. A narrativa nos jogos eletrônicos 55 A visão de narratologia é que jogos devem ser entendidos como formas inovadoras de narrativa e, portanto, podem ser estudados usando as teorias da narrativa (Murray, 1997; Atkins, 2003). A posição da ludologia é que os jogos devem ser entendidos em seus próprios termos. Ludologistas propõem que o estudo de jogos deve se relacionar a análise dos sistemas formais e abstratos ao qual eles se descrevem. - 231 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Como podemos contar uma história partir de um jogo eletrônico? A resposta aparentemente não está apenas na narrativa, mas também na estrutura de design do jogo em si. Percebemos que esse é um ponto fundamental a ser estudado. Isso porque a narrativa precisa girar em torno da natureza interativa do meio, precisamos considerar sua materialidade. Vamos comparar a narrativa escrita ao cinema, considerando que literatura pode ser caracterizada por meio de palavras, vamos representa-la por acontecimentos ao longo do tempo, já o cinema trata com imagens e áudios, portanto além da "história" adicionamos uma segunda dimensão na compreensão do espectador: o audiovisual. A experiência audiovisual no cinema é uma nova esfera de possibilidades de expressões. Se o audiovisual do cinema permitiu a entrada de um eixo bidimensional, e uma maior experiência sensorial, podemos considerar que os jogos eletrônicos, adicionam um eixo tridimensional, possibilitando um terceiro fator importante que é a interação. - 232 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O agenciamento ou agência é um conceito utilizado por Janet Murray para se referir aos resultados gerados por ações em ambientes interativos. Segundo MURRAY (2003, p.127), "agência é a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas". É um processo que exige o esforço do usuário em participar, e tem como resposta uma atualização do jogo a partir dos comandos executados pelo jogador. Há a oportunidade de assumir as motivações e emoções de um personagem com a interatividade. A experiência da narrativa está presente quando jogamos como protagonistas. Descobrimos, de forma ativa características da história, e não através da lente de um cinegrafista, poderíamos deduzir que a profundidade da narrativa nos jogos eletrônicos tem caráter de experimentação. As narrativas imersivas em The Last of Us e Heavy Rain The Last of Us é um jogo do subgênero survival horroí56, onde a ação acontece em terceira pessoa, o jogo se passa em um Estados Unidos 56 Survival horror é um subgênero de jogos de videogame do gênero ação/aventura, no qual o tema é terror e sobrevivência. O principal objetivo do jogo é sobreviver a fatos inicialmente - 233 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 pós-apocalíptico, e conta a história dos sobreviventes Joel e Ellie e como eles, juntos, sobreviveram em sua jornada para o oeste, através do que restou do país, para encontrar uma possível cura para a praga de fungos que tem dizimado a raça humana. Em "The Last of Us", durante o desenrolar da trama narrativa, vamos aos poucos ficando próximos do protagonista de maneira tão intensa, que mesmo não tendo poder de decisão em momentos críticos da história, a imersão é notória. A narrativa se mostra de uma maneira que não poderia ser igual em uma experiência cinematográfica, como espectador (passivo) o fato do jogador se apropriar de seu avatar 57 e ser o interator da narrativa, se incompreendidos e misteriosos e, ao longo do jogo, descobrir os detalhes, desvendar os mistérios da história que muitas vezes é totalmente desconhecida e achar soluções para os diversos quebra-cabeças apresentados. 57 Avatar é uma manifestação corporal de um ser imortal segundo a religião hindu, por vezes até do Ser Supremo. A palavra "Avatar" se tornou popular entre os meios de comunicação e informática - 234 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 envolvendo com questões como paternidade, ética, perda, entre outros sentimentos, o conecta com a trama de maneira emocional, mesmo ele sabendo que há um caminho pré-programado para o personagem. Veja o que Murray coloca sobre o jogador como interator: Umas das principais questões levantadas pela prática da agência narrativa é: até que ponto somos autores da obra que vivenciamos? Alguns argumentam que um interator numa história digital... é o autor da história. Essa é uma afirmação enganosa. Há uma distinção entre encenar um papel criativo dentro de um ambiente autoral e ser autor do próprio ambiente. Mas os interatores podem apenas atuar dentro das possibilidades estabelecidas quando da escritura e da programação de tais meios. (MURRAY, Janet H., 2003, p. 149) Podemos dizer que é uma ilusão o jogador sentir que pode agir de maneira a alterar a história. Na verdade, ele pode. Mas desde que isso esteja programado no desenho do jogo. O ponto é que, apesar disso, e mesmo com a consciência disso, o jogador se envolve e imerge na narrativa. O sentido de imersão no jogo, ou de estar "presente", está diretamente ligado ao jogador exercendo o papel de interator. Ou seja, exercitando sua "agência" no jogo. Esse ponto de vista é defendido por diversos autores. Vejamos como MACHADO define o sentido de imersão e agência: O termo imersão foi introduzido recentemente nas áreas de realidade virtual e vídeo game para se referir ao modo peculiar como o sujeito "entra" ou "mergulha" dentro das imagens e sons gerados pelo computador. Agenciamento (agency), por sua vez, é o termo que os povos de língua inglesa utilizam para designar a sensação experimentada por um interator de que uma ação significante é resultado de sua decisão ou escolha. Nos meios digitais (videogames, realidade virtual, ambientes colaborativos baseados em rede etc.) nós nos defrontamos o tempo todo devido às figuras que são criadas à imagem e semelhança do usuário, permitindo sua "personalização" no interior das máquinas e telas de computador. - 235 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 com um mundo que é dinamicamente alterado pela nossa participação. (MACHADO, Arlindo, 2002) Apesar dessa definição de agência feita por MACHADO, ele defende que a agência está condicionada a programação pensada pelo game designer, e que, o "agir" está limitado a condições técnicas da inteligência artificial. Agenciar é, portanto, experimentar um evento como o seu agente, como aquele que age dentro do evento e como o elemento em função do qual o próprio evento acontece. Mas essa participação dinâmica, como vimos acima, não indica que o interator é senhor absoluto dos acontecimentos. Ele só pode fazer o que o programa permite ou o que a máquina prevê como possibilidade de ocorrência (a menos que estejamos diante de um programa aberto e o interator seja capaz de intervir no próprio âmbito da programação). (MACHADO, Arlindo, 2002) Voltando ao jogo The Last of Us, podemos notar que a narrativa nele é tão envolvente e os elementos de jogo tão discretos que o jogador não se importa com a linearidade imposta pelo gameplay58. A tela de jogo é extremamente limpa e livre de interferências. Percebemos que o personagem está ferido apenas por alterações de cor: uma borda avermelhada surge piscando. E mesmo o menu de itens faz uma relação à busca de elementos em uma mochila, tentando ao máximo aproximar o jogador de seu avatar. 58 Jogabilidade (em inglês, gameplay ou playability) é um termo na indústria de jogos eletrônicos que inclui todas as experiências do jogador durante a sua interação com os sistemas de um jogo, especialmente jogos formais, e que descreve a facilidade na qual o jogo pode ser jogado, a quantidade de vezes que ele pode ser completado ou a sua duração. - 236 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Do ponto de vista de Aarseth, que analisa o jogo através de satélites e kernels fixos ou variáveis para determinar se estamos em um terreno onde a narrativa se sobressai em relação à mecânica e as regras, podemos dizer que The Last of Us é um jogo com kernel inicial e final fixos e satélites sequenciais fixos também. Ou seja, de acordo com Aarseth, o jogo acontece linearmente e a exploração permitida não interfere na ordem dos fatos narrados. Buscando um jogo, onde a narrativa é "multicursal" para comparar com o anterior, analisaremos Heavy Rain, um jogo que possui apenas o kernel inicial fixo, e muitos satélites variáveis. Mesmo seu final pode mudar de acordo com as escolhas feitas pelo jogador no caminho narrativo. - 237 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Affordance - é a qualidade de um objeto que permite ao indivíduo identificar sua funcionalidade sem a necessidade de prévia explicação, o que ocorre intuitivamente ou baseado em experiências anteriores. Quanto maior for a affordance de um objeto, melhor será a identificação de seu uso. O que podemos perceber logo no início é que o gameplay desse jogo é bem mais lento e com comandos que não são da experiência comum do jogador. Ou seja, o jogador não possui affordance8 com os comandos. Mesmo porque esse foi um dos primeiros jogos desenvolvidos para ser jogado com o dispositivo Move, que substitui o tradicional controle. Mesmo assim, é possível jogar com o controle comum, mas com o esforço de aprender comandos que misturam apertar botões, com movimentos de colocar o controle para cima e para baixo, girar e ainda imprimir leveza ou rapidez a esses movimentos. - 238 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Heavy Rain é um thriller psicológico com características cinematográficas desenvolvido pela Quantic Dream59 exclusivamente para o PlayStation 360. O jogo gira em torno de uma trama sofisticada com fortes segmentos narrativos que explora uma complexa proposta moral. Você assume o papel de vários personagens com diferentes origens, motivações e habilidades em um mundo onde cada decisão do jogador afeta o que seguirá. O jogo se concentra em quatro diferentes personagens; Ethan Mars, um pai e principal protagonista; Scott Shelby, detetive particular; Norman Jayden, um agente do FBI e, finalmente, Madison Paige, uma fotojornalista. Eles são personagens muito diferentes e não se conhecem no início do jogo, mas são todos ligados pois, todos têm interesse no principal antagonista, o assassino do Origami. No jogo, podemos controlar vários personagens durante o desenrolar da trama. E, muitas vezes, o jogador não tem a possibilidade de 59 Quantic Dream é uma desenvolvedora de jogos eletrônicos sediada em Paris, França, fundada em 1997. A empresa também fornece serviços de captura de movimento para a indústria do cinema e de jogos. 60 O PlayStation 3 (oficialmente abreviado como PS3) é o terceiro console de videogame produzido pela Sony Computer Entertainment e o sucessor do PlayStation 2 como parte da série PlayStation. O PlayStation 3 compete contra o Xbox 360 e o Nintendo Wii como parte da sétima geração de consoles de videogame. - 239 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 tentar de novo caso falhe. O fato de não conseguir executar uma ação leva a narrativa para outro caminho e altera o desenrolar da trama. A quantidade de finais possíveis é controversa: em alguns sites de spoiler encontramos 17 possíveis desfechos, enquanto alguns artigos acadêmicos defendem que o jogo pode ultrapassar 23 finais. Mas o fato é que durante as primeiras ações no jogo, o jogador percebe que precisará ser mais atento e tomar decisões mais cautelosas ao longo do desenrolar da trama. Caso contrário, a narrativa o levará a um caminho sem volta, no qual ele não poderá salvar Shaun ou descobrir quem é o assassino. Nesse ponto, vale a pena explicar quem é Shaun. Acredito que o grande motivador no jogo seja a relação que o jogador estabelece com o avatar no engajamento de salvar Shaun de uma morte por afogamento, imprimida por um psicopata desconhecido, que em muitos trechos do jogo, pensamos ser o próprio pai. Outro fator que leva o jogador a ir até o fim - e talvez voltar a jogar -, é descobrir se o assassino é um dos personagens principais do jogo. Shaun é filho de Ethan, personagem principal, no Kernel inicial do jogo, que não se altera independente do desdobramento. Ethan perde um dos filhos gêmeos em um acidente de carro do qual ele próprio fica seis meses em coma. Após o acidente, Ethan se separa da esposa Grace e passa a ter a guarda compartilhada de Shaun, que se tornou uma criança deprimida e apática. Seu relacionamento com Ethan é frio e distante. Após dois anos do acidente, Ethan tem alguns blackouts e passa por acompanhamento psicológico para entender seu quadro. Durante um desses apagões, o filho Shaun desaparece e ele se vê às voltas com um origami e instruções para salvar o filho. O assassino do origami costuma dar a oportunidade da pessoa mais próxima a criança raptada se colocar em situações extremas para salvar quem ama. A partir desse ponto, a narrativa se torna mais intensa e envolvente e o jogador mais tentado a continuar para salvar a criança, e claro descobrir quem é o assassino. Há relatos de jogadores que desistiram de continuar antes desse momento do jogo. Acreditamos que este ponto é o divisor da narrativa e do gameplay. Nesse momento, a mecânica do jogo já foi compreendida e o jogador já se familiarizou com as formas de interação, - 240 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 tendo a probabilidade de muito mais acertos do que erros no manuseio dos botões e interface. Além disso, há um gatilho motivador na história e o mistério e a ação se intensificam. É nesse momento, que temos um real engajamento e o jogador passa realmente a ser o interator da narrativa. O sentido de presença aumenta no jogo à medida que o jogador se sente responsável pelos desdobramentos, imergindo cada vez mais na história. A autora Ryan classifica imersão como sendo: "a experiência através da qual um mundo fictício adquire a presença de uma realidade autônoma e independente de linguagem, populada por seres humanos vivos" (RYAN, 2001, p. 15). E ainda: "aprender um mundo como real é sentir-se inserido nele, ser capaz de interagir fisicamente com ele, e ter o poder de modificar tal ambiente. A conjunção de imersão e interatividade leva a um efeito conhecido como telepresença" (RYAN, 1994, apud KLASTRUP, 2003a, p. 295). Jasper Juul, na tentativa de definir o que é jogo em um modelo clássico, o separou em três partes distintas, o jogo como sistema, o jogador e o jogo e por fim, o jogador e o resto do mundo, podemos simplificar essas três separações como: jogo, jogador e mundo.  O jogo pode ser definido por premissas, as regras, todas as ações do jogo que não sofrem qualquer influência do jogador;  O jogador pode ser definido pelas relações estabelecidas entre o jogador e o jogo, suas decisões e a sequência do jogo com base nelas;  •O mundo se define pela forma como influência o jogador e vice-versa. De acordo com o autor: Um jogo é um sistema baseado em regras com resultados variáveis e quantificáveis, onde diferentes resultados geram diferentes valores, o jogador exerce esforço e influência a ordem do resultado, e o jogador se - 241 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 sente emocionalmente ligado ao resultado, e as consequências das atividades são negociáveis. (JUUL, Jasper, 2005, p. 36) Percebemos nitidamente essa separação que Juul faz no jogo Heavy Rain. As regras do jogo estão diretamente ligadas às mecânicas, onde o jogador ao acertar a sequência de botões, os gestos ou a leveza e velocidade na manipulação do controle pode ter sucesso ou não. E aí temos uma variação de resultados. E cada qual leva a um determinado caminho, gerando diferentes valores ou resultados, como citado acima. O interator age no sentido de salvar Shaun da morte. Nesse caso, o jogador se engaja e tem êxito se aproximando da história e se colocando no papel do pai da criança. O jogador exerce, então, esforço e influência na ordem do resultado, já que o jogo dá essa possibilidade disponibilizando vários satélites em torno da narrativa. E, notoriamente, o jogador se sente emocionalmente ligado, já que a narrativa envolve o jogador com questões morais e psicológicas. Ryan defende que é difícil ter imersão em torno de uma interface carregada de elementos, que a todo momento quebram o sentido de presença e dificultam a suspensão de descrença. Veja o que Ryan coloca em entrevista realizada por Júlia Pessôa: Júlia Pessôa: Você uma vez mencionou que um dos problemas centrais em textos interativos é que o fluxo da narrativa é interrompido toda vez que o leitor tem que fazer uma escolha. Em alguns games, isto parece não acontecer, já que as escolhas acabam diluídas no gameplay. (Ao mesmo tempo, os jogos em que as escolhas têm de ser feitas por acesso a menus e recursos do tipo parecem ter o mesmo problema que os textos interativos). Você concorda com isso? Por quê? Ryan: Concordo totalmente. Em games, há um fluxo de atividade que promove a imersão do jogador no - 242 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 mundo do jogo. Mas há muitas interrupções: por exemplo, toda vez que o jogador tem que escolher uma nova arma, pesquisar em seu mapa, verificar missões pendentes, etc, ele deve acessar um menu. Mas nos games, isso é "naturalizado", como alguém que procura um objeto em sua bagagem, por assim dizer. Na narrativa de hipertexto, por outro lado, a atividade de clicar é externo ao mundo da história, e por isso provoca muito mais distração. Além de ser antiimersiva. Em Heavy Rain, a interface é extremamente carregada e a todo o momento aparecem balões com opções de seleção para o jogador escolher. Mas a narrativa e o game design estão tão bem desenhados que isso é irrelevante. Os planos de câmera, as expressões dos personagens, o mistério imprimido na narrativa, a sensação de responsabilidade em agir pelos personagens torna a experiência tão fascinante que, como Ryan disse na entrevista mostrada acima, o manuseio da interface fica natural e incorporado à narrativa. Conclusão Podemos verificar que os dois jogos são imersivos, porém cada qual com uma dinâmica diferente. E que apesar da interface e do excesso de comandos serem um fator que pode atrapalhar a imersão, em muitos casos isso não acontece. A própria narrativa, se bem desenhada e aplicada de forma a motivar o jogador, apoia o sentido de presença e coloca o jogador como interator. E que apesar de o jogo não ser multicursal, ou não apresentar um mundo aberto e cheio de possibilidades, isso não quer dizer que ele é menos narrativo. Ou que seu gameplay predomina em relação à narrativa. Ou seja, a partir desse estudo, aparecem diversos pontos que podem futuramente ser explorados. A intenção é que, a partir daqui, seja possível verificar eventuais - 243 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 pontos estruturais da narrativa desses dois jogos que se assemelham e/ou se diferenciam, mapeando melhor suas estruturas técnicas e narrativas. Referências AARSETH, Espen. 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Antes vistos meramente como uma forma de entretenimento, desconectada da realidade e voltada para um público essencialmente juvenil, os jogos passam, sobretudo a partir do início do século 21, a ser desenvolvidos com O intuito de promover produtos em campanhas publicitárias, desempenhar funções informativas de utilidade pública ou promover processos de ensino-aprendizagem. Assim, diferentes aspectos de seu uso tem despertado crescente interesse do campo da comunicação ao longo dos últimos anos: scholars identify a range of social, cultural, economic, political and technological factors that suggest the need for a (re)consideration of videogames by students of media, culture and technology (NEWMAN, 2004, p. 3) Apesar das questões tecnológicas e mercadológicas relativas aos videogames serem frequentemente tratadas de modo pleno e resoluto, como em Tschang (2008) e Herman (2008), estas mídias se revelam um objeto de - 246 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 pesquisa extremamente complexo no âmbito das Humanidades, sobretudo no que diz respeito ao estudo de fatores sociais e culturais. Galloway (2004) descreve os jogos digitais, acima de tudo, como objetos culturais determinados histórica e materialmente. A complexidade deste tipo de abordagem acadêmica é notadamente associada a dois aspectos: [...] the enormous variety of titles and types collectively assembled under the heading of 'videogames' means that criticai approaches and theories are at risk of being unduly influenced by particular instances [...] However, it is more than just variety that renders the academic investigator's task problematic: while it is possible to identify underlying themes and constancies, it is also true to say that videogames have changed over time (NEWMAN, 2004, p. 92). O percurso evolutivo destes artefatos, caracterizado por esta crescente variedade de títulos e gêneros e pelas mudanças ao longo do tempo, pode ser observado na desconstrução de uma premissa básica antes tida como pertencenteà essência dos videogames: "the player takes on the role of a fantasy character moving through an elaborate world, solving various problems" (GEE, 2004, p. 1). Tradicionalmente, o jogador observa na tela o personagem que o representa no jogo e controla suas ações através de comandos, o que implica em um distanciamento entre ambos, a partir do qual são entendidos como instâncias distintas. Os jogos denominados FPS, ou first-person shooter, que se popularizaram a partir da década de 90, representaram uma mudança nesse sentido, dando ao jogador a perspectiva visual do personagem e aproximando-os significativamente através de uma sobreposição. first-person shooter games are a semiotic domain, and they contain a particular type of content. For instance, as part of their typical content, such games involve moving through a virtual world in a first-person perspective [you see only what you are holding and move and feel as if you yourself are holding it] using weapons to battle enemies (GEE, 2004, p. 26). - 247 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 As aproximações entre jogador e personagem e 'mundo do jogo' e 'mundo real' tem se consolidado como uma tendência neste século, atreladas a avanços das Tecnologias da Informação e Comunicação, especialmente no que diz respeito à sofisticação dos dispositivos móveis, das ferramentas de geolocalização e às novas possibilidades interativas da web. O ato de se deslocar fisicamente até um determinado ponto de uma cidade pode se configurar como ação inerente a um jogo digital. in video games there are actions that occur in diegetic space and actions that occur in nondiegetic space [...] in some instances it will be difficult to demarcate the difference between diegetic and nondiegetic acts in a video game, for the process of good game continuity is to fuse these acts together as seamlessly as possible (GALLOWAY, 2004, p. 7). Os aspectos dos jogos que dizem respeito ao mundo diegético costumam ser trabalhados através da narratologia 61: gêneros, perfis de personagens e até estruturas e peculiaridades de enredo costumam ser amplamente contemplados por este arcabouço teórico. We have noted already that the premise of many videogames is reminiscent of Todorov's very basic narrative structure [...] As such, the application of narrative theory to the study of videogames could be considered inevitable. (NEWMAN, 2004, p. 91). A semiótica discursiva, que nos serve aqui de principal alicerce, trata a narrativa, no entanto, como parte de um percurso gerativo de sentido composto por três níveis (GREIMAS; COURTÉS, 2008). São eles: o nível fundamental, no qual se definem os valores; o nível narrativo, no qual as ações e são ordenadas em etapas transformadora dos seus estados e, por fim, o nível discursivo no qual, além da concretização dessas ações em temas e figuras, têm lugar as estratégias de enunciação. É a enunciação o que aqui nos interessa porque é nesse nível que são instaladas as pessoas, o tempo e o espaço envolvidos na produção discursiva e na situação comunicação das 61 Cf., por exemplo, V. Propp (2006) e G. Genette (1995) - 248 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 quais resultam os enunciados. Com isso, torna-se possível articular, no mesmo esquema de análise, o que está "dentro" e "fora" do jogo, o tipo de enunciado que aqui nos interessa. Enunciação e comunicação É na enunciação que são instauradas as categorias de pessoa, tempo e espaço. Compreendida, assim, como instância de "colocação em discurso", a enunciação comporta, a noção mais genérica de ato: o ato de realização de um enunciado. Se a enunciação é entendida assim, como um ato de produção de um enunciado, nada nos impede de tratá-la, enfim, como um simulacro da comunicação que surge em um texto entre este e seu leitor62 (FECHINE, 2000) ou, no nosso caso específico, entre o jogo e o jogador. Isso permite compreender a enunciação também como uma proposta de construção de um projeto de interação com o jogador construído pelo próprio jogo, a partir do modo como são construídos os sujeitos da enunciação. Em todo ato de enunciação, é preciso admitir a existência de um sujeito que produz o enunciado (enunciador ou um eu que "fala" ou comunica) e um outro para o qual ele dirige (enunciatário ou tu para o qual ele "fala" ou comunica). Este enunciador "fala" necessariamente em um tempo e em espaço que, assim comoos sujeitos da enunciação, podem ou não ser representados (figurativizados) no enunciado. O enunciador pode ser construído no enunciado como um eu ou como um ele. No primeiro caso, temos os textos em primeira pessoa e, no segundo, os textos em terceira pessoa. O espaço da enunciação é sempre o aqui de quem fala e o tempo, corresponde ao agora em que este eu fala. Tais categorias podem, igual e respectivamente, serem construídas no enunciado como um aqui ou como um não aqui (lá, acolá) ou como um agora e um não agora (antes ou depois). Temos, assim, pessoas, tempo e espaço na enunciação e no enunciado. Neste 62 Para a semiótica, texto é qualquer conteúdo manifesto por uma forma de expressão qualquer. Podemos, por isso, falar em textos verbais, visuais, sonoros, audiovisuais etc. O jogo é, nessa perspectiva, um tipo de texto. - 249 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 último, as pessoas instaladas recebem a denominação de atores do enunciado (correspondem geralmente aos personagens). No primeiro, temos os actantes da enunciação. Os estudos da enunciação, realizados inicialmente em textos verbais, foram pautados pela lógica de projeção das categorias da enunciação no enunciado, estabelecendo uma distinção clara entre essas duas instâncias. Para chegar ao ponto que nos interessa aqui, é importante atentar, sobretudo, para o modo como foram pensados os actantes, designação que pode ser usada de modo mais geral para nos referir a todos os sujeitos atuantes do processo enunciativo/comunicativo. Considera-se como actantes da enunciação o eu e o tu que, como bem mostrou a Linguística, são também instâncias conceituais, "sujeitos lógicos" ou papéis passíveis de serem figurativizados como atores no nível mais concreto do enunciado. Neste caso, instauram-se no enunciado sujeitos delegados do enunciador e do enunciatário denominados, respectivamente, de narrador e narratário63. No esquema de papéis definidos tradicionalmente na teoria da enunciação, enunciador e enunciatário definem-se como "sujeitos semióticos" que correspondem, na verdade, a funções textuais, a "posições" ou papeis construídos pelo próprio texto. Ou seja, são "vozes" construídas pelo próprio texto ou instâncias que substituem simbolicamente no texto seu autor e leitor reais. Estes estão, por sua vez, situados em um nível anterior ao do enunciado e podem ser considerados como o destinador e o destinatário da comunicação e, no nosso caso, correspondem, numa dimensão empírica ("real") aos criadores/desenvolvedores dos jogos e aos seus jogadores. O esquema abaixo sintetiza esses papeis: ESTINADOR [Enunciador [narrador narratário] Enunciatário] DESTINATÁRIO 63 Narrador e narratário podem, por sua vez, delegar "voz", dentro de um texto, a um interlocutor ou interlocutário (a inserção numa narrativa literária em primeira pessoa de um diálogo entre personagens é um exemplo de instauração de interlocutores no texto). Mas, não nos teremos nesse papéis porque não são relevante para nossos propósitos. - 250 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Como se pode observar, há no esquema acima três níveis actanciais: o par narrador/narratário pertence ao enunciado, o par enunciador/enunciatário, à enunciação. O par destinador/destinatário, situado além do discurso-enunciado, é o que permite justamente a articulação entre enunciação e comunicação. No tipo particular de manifestação que nos interessa aqui - sobretudo os jogos denominados de FPS -, é frequente observarmos arranjos enunciativos nos quais, ao invés da projeção de categorias de um nível no outro, o que temos é um "borramento", uma sobreposição entre essas posições actanciais, ocasionada pelo sincretismo de papeis. Esse sincretismo corresponde à indistinção, à sobreposição ou á "mistura" de papéis actanciais como se um estivesse no lugar do outro ou quase como se um fosse o outro, mas sem que as suas posições se anulem (FECHINE, 2000). Com isso, admitimos que, numa abordagem enunciativa dos jogos, é preciso tratar dos actantes envolvidos no processo enunciativo (sujeitos semióticos), sem perder de vista os agentes comunicativos ou "sujeitos comunicativos" (sujeitos empíricos), aos quais estes se referem. Não se pretende, com isso, confundir enunciador e enunciatário com os sujeitos históricos e reais. Estes, em suas personalidades individuais e em sua existência psicossocial, permanecerão sempre inacessíveis à análise discursiva. É preciso, por isso mesmo, deixar bem claro que o que tratamos aqui como "sujeitos comunicativos" são ainda papéis através dos quais se tenta agora, na dimensão mais concreta da interação, incorporá-los, pela sua própria condição de papeis (funções), à problemática enunciativa, uma vez que, em determinadas manifestações, como os jogos digitais interativos, a própria "colocação em discurso" pressupõe agora uma atuação no mundo "real". As categorias actanciais - sobretudo o enunciatário e o destinatário ganham aqui uma centralidade ainda maior na medida em que delas depende a instauração de um espaço e de um tempo enunciativos que também precisam ser pensados em seus imbricamentos ou sobreposições com suas concretizações no mundo "real" no qual se convoca a atuação dos sujeitos. - 251 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Fiorin (2010) destaca ainda a possibilidade de subversão da pessoa através de artifícios enunciativos: falar de si em terceira pessoa - 'Papai te ama!' - ou utilizar 'eu' como um termo genérico em substituição a uma referência a outra pessoa, um 'ele' qualquer - 'Se eu pago meus impostos, exijo meus direitos!' -são exemplos desse fenômeno linguístico. A ideia de subversão da pessoa parece interessante ao estudo dos jogos digitais tendo em vista a já discutida aproximação entre jogador e personagem. Artifícios enunciativos por parte da instância produtora do jogo, como nos videogames FPS, podem resultar na construção de um "tu" (actante da enunciação) como se fosse "ele" (personagem), a partir de um ponto de vista construído nos moldes da câmera subjetiva. No universo dos jogos digitais, existem ainda arranjos nos quais o "tu" e o "ele" correspondem ao próprio destinatário, dando lugar a um intrigante sincretismo de papéis enunciativos/comunicativos que faz do próprio jogador um ator da enunciação. Em relação à categoria de espaço, duas noções podem ser destacadas: a de espaço tópico e a de espaço linguístico. Este último é o espaço no qual se desenrola a cena enunciativa (o lugar da enunciação). O primeiro corresponde a uma localização qualquer e concreta construída no enunciado (FIORIN, 2010). Quando a situação enunciativa é partilhada, o espaço dos sujeitos da enunciação é o mesmo, mas, quando não é, há a necessidade de se especificar uma posição no espaço tópico (por exemplo, a indicação da cidade no início das cartas). No caso dos jogos, o mais frequente é que não haja correspondência entre o lugar da enunciação e o ambiente figurativizado no enunciado, o que produz um efeito de distanciamento ente os espaços do "mundo do jogo" e do "mundo real". É possível, no entanto, pensarmos em um feito contrário proporcionado pela correspondência entre os espaços linguístico e tópico no caso de jogos cuja ambientação é construída sobre coordenadas e mapas de cidades e as interações ocorrem através de dispositivos de geolocalização. O jogador se move, neste caso, em um espaço físico concreto, alçado também à condição de espaço da enunciação e do enunciado, pelo seu ato mesmo de jogar (sua atuação). - 252 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Do mesmo modo que instaura um aqui, a "colocação em discurso" do jogo também constrói um agora que não corresponde propriamente ao tempo cronológico, e sim a um momento de referência instaurado pelo ato mesmo de enunciação e em relação ao qual aquilo que é enunciado é concomitante (no mesmo tempo) ou não concomitante (em outro tempo, antes ou depois). Ou seja, o enunciador pode situar o seu enunciado no mesmo momento em que se dá a enunciação ou em outro momento. No caso do jogo, outra relação de concomitância ou não concomitância também pode ser observada entre o tempo construído no enunciado (um tempo diegético, independentemente de ser situado no mesmo momento ou não do ato de enunciação) e o tempo cronológico no qual se joga o jogo. Em alguns games, por exemplo, anos ou séculos (tempo diegético) podem ser percorridos em poucas horas de jogo (tempo crônico). Em outros casos, é possível conceber a adoção, por uma empresa qualquer, de uma estratégia de marketing, a partir da gamificação, visando à fidelização de clientes, que consiste no acúmulo de pontos à medida que perguntas enviadas diariamente são respondidas de forma correta. Neste caso, há uma convergência entre os tempos diegético e cronológico ("real"), no que diz respeito à periodicidade com que as etapas do jogo são disponibilizadas. O sincretismo entre os papeis actanciais, além da possibilidade de sobreposição entre as demais categorias enunciativas (espaço e tempo), é o que sustenta um efeito de aproximação entre o "mundo do jogo" e o "mundo real" que resulta numa maior imersão. Para Murray (2003), a imersão corresponde à sensação de estar em outra realidade construída por procedimentos que mobilizam nossos aparatos perceptuais. Nos jogos digitais, o que aqui nos interessa, a imersão pode ser pensada como a capacidade do jogo de envolver o jogador no universo lúdico. Em termos mais diretos, imersão é a habilidade que o jogador tem de "entrar" no jogo em função de suas estratégias narrativas e astúcias enunciativas. Método - 253 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Os procedimentos metodológicos adotados foram pensados visando o desenvolvimento e a avaliação de um sistema de classificação de jogos digitais -no quais há a previamente descrita aproximação entre o "mundo do jogo"' e o "mundo real"' - a partir das peculiaridades enunciativas descritas acima que visam promover uma imersão. São divididos em quatro fases: (1) levantamento de entendimentos, definições e delimitações relacionadas aos jogos em questão; (2) desenvolvimento de uma matriz de análise a partir do referencial teórico; (3) identificação e seleção de jogos a serem analisados; (4) avaliação e classificação do corpus a partir da matriz de análise. As definições, delimitações e entendimentos acerca do objeto de estudo foram identificados através de uma revisão sistemática de literatura, estruturada a partir de iterações. Foram utilizadas como ferramentas de busca o Portal de Periódicos da CAPES, a biblioteca eletrônica Sicelo e o Google Acadêmico. Os termos iniciais utilizados foram 'pervasive games' / 'jogos pervasivos', por serem utilizados com frequência na literatura no que se refere aos jogos em questão. A partir da análise dos resultados desta busca, foram identificados novos termos, entendidos como sinônimos ou similares, e estes foram utilizados como palavras-chave em novas buscas. O processo foi iterado até os termos de busca obtidos passarem a se repetir. O critério estabelecido para a seleção dos estudos encontrados para a análise realizada foi tratar de jogos que tenham como elemento integrante a já citada aproximação entre o "mundo do jogo" e o "mundo real". Através destes procedimentos, deu-se a construção de um corpus de 36 textos acadêmicos publicados ao longo dos últimos 15 anos. Com base na análise deste material, buscou-se delinear um panorama das definições e entendimentos acerca dos jogos estudados. A matriz de análise desenvolvida visando à implementação do sistema de classificação proposto foi pensada a partir das reflexões de cunho teórico feitas na seção anterior. Além dos dados gerais referentes a cada jogo analisado, a matriz contém as 3 categorias da enunciação discutidas. Cada um destes campos é preenchido com os números '0' ou '1' indicando respectivamente ausência ou presença de convergência entre o "mundo do - 254 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 jogo" e o "mundo real": se o jogador e personagem se aproximam de modo a haver uma sobreposição, nos moldes do que foi exemplificado na seção anterior através dos jogos FPS, então o campo 'Pessoa' da Tabela 1 será preenchido com o número '1'. Do contrário, é utilizado o '0'. A tabela contempla ainda, à direta, o registro das formas de classificação inicialmente atribuídas aos jogos. É registrada, na matriz, a quantidade de termos ou denominações atribuídas a cada jogo, assim como os próprios termos. Esta organização da informação permite contrastar o sistema de classificação proposto aqui e as tipologias identificadas na literatura. Naturalmente, esta não é primeira proposta de classificação para artefatos midiáticos desta natureza, como é possível constatar em Mont'Alverne (2012). Tampouco, visa tornar-se o sistema definitivo. O pensamento subjacente na presente iniciativa é unicamente apontar a abordagem semiótica da enunciação como uma alternativa viável na tarefa de aprofundar a compreensão acerca deste objeto de estudo. O corpus avaliado através desta matriz é composto por sete jogos, identificados através da inserção, em sistemas de busca da web, dos termos obtidos através da técnica de busca iterativa descrita anteriormente. Esta amostra, notadamente limitada, não visa representar o conjunto dos jogos aqui discutidos em sua totalidade. Entende-se, entretanto, que é suficientemente apropriada para dialogar com as reflexões de cunho teórico e o sistema de classificação propostos. Os resultados obtidos a partir da aplicação dos procedimentos descritos nesta seção são apresentados e discutidos a seguir. - 255 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Resultados e discussão A terminologia utilizada para se referir ao objeto de pesquisa analisado neste estudo é extremamente vasta. Alguns termos apresentam variações, como location-aware e location-based, e outros são tratados pontual e isoladamente -de modo claramente inconsistente com o resto da literatura. Após análise do conjunto de tipos obtidos, os termos pertinentes foram sintetizados na Tabela 2. A primeira reflexão a ser feita sobre estas classificações diz respeito à falta de clareza associada ao seu uso. Em Hohfeld (2007), os jogos chamados ubíquos são descritos da mesma forma que o objeto de estudo tratado nesta pesquisa, inicialmente associado ao termo pervasivo. Em McGonigal (2011) o mesmo entendimento é adotado, porém referindo-se aos jogos de realitade alternativa. Thomas (2012) entende que o termo realidade aumentada engloba a ideia de realidade mista, caracterizando os jogos unicamente em função da presença ou ausência desse tipo de tecnologia no dispositivo utilizado: este entendimento implica que estes jogos não necessariamente tenham o perfil dos jogos pervasivos tratados aqui, o que contradiz Hinkse (2007), que usa os termos pervasivo e realidade mista em referência a um mesmo tipo de jogo. Os quatro últimos itens da Tabela 2 parecem ser os menos controversos do ponto de vista terminológico: os jogos crossmedia são predominantemente descritos como um subtipo dos jogos pervasivos, como em Lindt et al. (2005) e Trinta et al. (2008). Nestes, faz-se uso coordenado de diferentes dispositivos tecnológicos, como tablets, celulares e laptops. Já os - 256 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 advergames e newsgames são jogos desenvolvidos, respectivamente, em associação a eventos publicitários e jornalísticos, o que quer dizer que sua natureza não está atrelada ao caráter pervasivo. O mesmo acontece com os exergames, jogos que requerem a realização de algum exercício ou atividade física: podem exigir dos jogadores um deslocamento físico no mundo real a ser captado por dispositivos de geolocalização, ou serem praticados através de consoles como o Nintendo Wii, sem qualquer característica pervasiva. A obscuridade e as indefinições associadas ao uso do termo pervasivo remetem às já explanadas dificuldades associadas à adoção dos jogos digitais como um objeto de estudo. once terms are introduced in a scientific discourse they are continually constructed and reconstructed by researchers. In the case of pervasive gaming, the dense and confusing discourse surrounding the term is steadily becoming a theoretical blackbox in which both historical context and theoretical perspectives are easily overlooked (NIEUWDORP, 2007, p. 1). A Tabela 3 a seguir sintetiza os dados obtidos através da análise dos jogos. As letras na última coluna, que se propõe a discriminar os termos quantificados na coluna ao lado, correspondem às letras a - j utilizadas na Tabela 2. Dessa forma, quando é possível descrever um jogo listado na Tabela 3 como pervasivo com base na análise da literatura efetuada, consta na última coluna a letra 'a'. Para jogos ubíquos consta a letra 'b', e assim sucessivamente. Se há na última coluna três letras, consta na coluna ao lado o número 3, representando a quantificação das possibilidades terminológicas. - 257 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Seis dos sete jogos avaliados fazem uso de dispositivos de geolocalização. É o caso de Ingress, uma narrativa aberta de ficção científica na qual jogadores se deslocam por espaços físicos com o objetivo de capturar portais. Pessoas, espaços e o tempo do "mundo do jogo" (diegético) correspondem aos do "mundo real". O jogo Botfighters foi um dos primeiros deste gênero. Consiste em assumir a identidade de um robô, localizar e lutar contra outros robôs, personificados no "mundo real" pelos demais usuários. O robô é um personagem fantasia criado pelo jogador, um 'outro' na perspectiva da enunciação. Porém, as noções de eu e ele se sobrepõem na medida em que o lugar ocupado pelo jogador em um espaço físico é o lugar ocupado pelo personagem naquele mesmo espaço. Quando um jogador se deslocar 10 metros em direção a outros, seu personagem estará fazendo o mesmo deslocamento. City Domination requer que os jogadores façam alianças visando controlar pontos do mapa. Trata-se de um jogo de estratégia no qual o tempo diegético não corresponde ao tempo "real". O jogo Zombies, run! consiste em se deslocar fisicamente fugindo de zumbis e coletando objetos virtuais. A relação entre jogador e personagem é similar a que se dá no jogo Botfighters. O Banco imobiliário geocalizado é uma versão do jogo tradicional. As áreas - 258 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 e imóveis visitados pelos jogadores podem ser negociados e adquiridos no âmbito da diegese. Já o Geocaching utiliza uma mecânica parecida com a de Ingress, porém com uma abordagem mais séria e adulta: jogadores se deslocam por locais pouco frequentados para deixar e coletar objetos, denominados caches no âmbito do jogo. O único jogo que não faz uso de dispositivos de geolocalização é Taasbara Man, que pode ser descrito como uma espécie de Pacman acrescido de realidade aumentada: o conteúdo do jogo se materializa no espaço físico do jogador, que controla os personagens através do contato físico. Observando as duas colunas finais da Tabela 3, constata-se que um único jogo pode ser classificado de diversas formas de acordo com terminologia original elencada na Tabela 2: seis termos de caracterização distintos podem ser atribuídos a um único jogo. Os termos 'a' e 'b' foram associados a todos os artefatos, o que significa que objetos de natureza radicalmente distinta, como os jogos 5 e 7, são agrupados numa mesma definição. Estes dados corroboram as colocações feitas anteriormente acerca do caráter problemático destes termos e de suas definições. Voltando as atenções para as três colunas centrais, é possível discriminar as possibilidades de sequências de '0's e '1's utilizadas para caracterizar os jogos em função da enunciação: 0 0 0 - 0 0 1 - 0 1 0 - 1 0 0 - 0 1 1 - 1 0 1 - 1 1 0 - 1 1 1. Apesar de nem todos os arranjos terem sido utilizados, constata-se que há oito possíveis formas de classificação e que não é possível atribuir mais de uma a cada artefato midiático avaliado. Assim, é possível afirmar que o sistema proposto solucionou o problema da ambiguidade e das sobreposições conceituais associadas à terminologia tradicional. Parece pertinente destacar também que os jogos 1, 2 e 7 foram caracterizados de modo idêntico no escopo da terminologia tradicional - a, b, c, d, f, g - mas receberam classificações distintas entre si a partir do sistema proposto. Isto permite afirmar que as duas abordagens em questão possuem naturezas diferentes. Se analisada em contraste às formas de classificação encontradas anteriormente, a tipificação dos jogos a partir das três categorias - 259 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 da enunciação se mostrou eficiente na construção de um sistema de classificação sem ambiguidades ou sobreposições conceituais. Nesse sentido, a abordagem concebida contribui para o campo dos estudos midiáticos como uma ferramenta operativa na análise de jogos digitais ou mesmo como um incentivo ao desenvolvimento de outros métodos classificatórios com base em teorias da linguagem de modo a contemplar diferentes propósitos de pesquisa. Ressalta-se, por fim, a contribuição que esse sistema de classificação pode dar para a identificação de jogos mais ou menos imersivos, na medida em que uma maior aproximação entre o "mundo do jogo" e o "mundo real" promove também um maior envolvimento do jogador com o universo lúdico (promove o "entrar" no jogo). Sendo assim, podemos propor, preliminarmente, duas hipóteses a serem abordadas em trabalhos futuros: 1) quanto maior a presença do indicador "1" na classificação do jogo por categorias de enunciação, maior seu potencial imersivo; 2) A presença do indicador "1" na categoria de pessoa está, necessariamente, associada ao maior potencial imersivo dada a centralidade do sincretismo actancial descrito na aproximação entre "o mundo do jogo" e o mundo real". Constatase assim a contribuição das teorias linguagem no que diz respeito a possibilidade de aprofundar, numa nova ótica, a compreensão acerca dos jogos digitais. Referências FECHINE, Y. 2000. SPTV e modos de presença: um estudo exploratório sobre as estratégias enunciativas de um telejornal. Revista Symposium. Ciências, Humanidades e Letras. Ano. 4, Número especial. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2000. FIORIN, J. L. As Astúcias da Enunciação: as categorias de Pessoa, Espaço e Tempo. 2a Ed. São Paulo: Editora Ática, 2010. 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Habermas (1997) destaca as funções ideais a serem desempenhadas pela mídia nos sistemas políticos constitucionais, conforme sugeridas por Gurevitch e Blumler (apud HABERMAS, 1997, p. 110-111): 1. vigiar sobre o ambiente sociopolítico, trazendo a público desenvolvimentos capazes de interferir, positiva ou negativamente, no bem-estar dos cidadãos; 2. definir as questões significativas da agenda política, identificando as questões chave, bem como as forças que as conceberam e que podem trazer uma solução; 3.estabelecer as plataformas que permitem aos políticos, aos porta-vozes de outras causas e de outros grupos de interesses, defender suas posições de modo inteligível e esclarecedor; 4. permitir o diálogo entre diferentes pontos de vista e entre detentores do poder (atuais e futuros) e público de massa; 5. criar mecanismos que permitem acionar os responsáveis para prestar contas sobre o modo como exerceram o poder; 6. incentivar os cidadãos a aprender, a escolher e a se envolver no processo político, abandonando sua função de meros espectadores; 7. resistir, em nome de princípios bem definidos, aos esforços exteriores à mídia que visam subverter sua - 263 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 independência, sua integridade e sua capacidade de servir ao público; 8. respeitar os membros do público espectador e leitor como virtuais envolvidos e capazes de entender seu ambiente político. Usualmente, no entanto, prevalece, no processo de formação de opinião e de deliberação sobre questões públicas, o modelo de acesso interno, em que os resultados ficam restritos à lógica e aos interesses exclusivos da estrutura de poder. Desta maneira, as deliberações são apenas comunicadas à sociedade, sem que tenham sido precedidas de uma discussão aberta na Esfera Pública, conforme o ideal republicano democrático de autogoverno dos cidadãos que formam a sociedade. Como empresas, os meios de comunicação passam a defender interesses políticos e econômicos específicos que vão influenciar o conteúdo dos produtos e dificultar, se não impedir, o debate público. A Esfera Pública passa por uma mudança estrutural, pois, “inserida no ciclo da produção e do consumo, não é capaz de constituir um mundo emancipado” (HABERMAS, 1984, p.190). A transformação mercadológica de consumo esvazia o debate crítico-racional dos meios de comunicação, dando lugar ao conformismo, tornando os conteúdos mais simples e alienando os momentos cuja recepção antes exigia certa reflexão. Até mesmo quando o jornalismo investigativo ou a pressão dos cidadãos nos movimentos sociais conseguem institucionalizar, no espaço público, assuntos inconvenientes para a estrutura de poder – modelo de mobilização, conforme Habermas (1997) – ainda assim, geralmente, prevalece a lógica dos interesses particulares poderosos, já que esses setores possuem muito mais recursos para mobilizar apoios e adesões às suas pretensões (VIZEU; ROCHA; MESQUITA, 2010). As modificações na Esfera Pública e na própria política levam à extinção da racionalidade, do pensamento crítico e contestador em relação às ações políticas. Habermas caracteriza historicamente a essência da Esfera Pública e, portanto, da atividade política no uso público e argumentado da razão. Reconhece que, conforme avança a mudança estrutural da Esfera Pública e se vislumbra um cenário pós-moderno, a realidade é distorcida e entra em declínio: a razão dá lugar à distração e ao consumo. A extinção - 264 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 da crítica na Esfera Pública contribui para a anulação das capacidades políticas do homem e, em consequência, para o abuso de poder e a manipulação das massas (MARCONDES, 2007, s/p). Notícias passam a ser mercadorias de consumo espetacularizadas, produtos uniformizados na aparência e no conteúdo de maneira a atingir e agradar o maior público numérico possível. As redações adotam políticas de objetividade e imparcialidade que, mesmo impossíveis de serem atingidas, levam à fragmentação, à superficialidade, ao enxugamento da interpretação, à despolitização e à visualidade em detrimento do conteúdo. Ao invés de intermediar a opinião pública, os meios de comunicação desenvolvem técnicas para moldá-la a seu modo (ALMEIDA, 1998). A mídia tem possibilidade de dar origem ao debate, “mas seu desenvolvimento tem transformado o princípio da publicidade em instrumento de interesses préestabelecidos” (THOMPSON, 2006, p.21). Habermas (1984) defende que, para retomar o princípio da Esfera Pública burguesa, os meios devem possibilitar institucionalmente a democracia e permitir uma comunicação sem perturbações, ou seja, um uso público da razão em esferas públicas autônomas, independentes e democráticas. Na atual estrutura do capitalismo global, ao mesmo tempo em que o espaço público midiático é restrito, começa a se delinear uma reconfiguração da Esfera Pública, associada à criação de outras mídias, que trazem novas demarcações (RAMOS; SANTOS, 2007). A partir do uso cada vez mais corriqueiro das tecnologias da comunicação e da informação, emergiu, nas últimas décadas, “uma nova revolução nas relações de poder”, em especial no campo das comunicações, que “tornou possível as condições materiais de imposição de um mesmo discurso à escala planetária, com o estabelecimento de um verdadeiro oligopólio mundial das fontes emissoras de comunicação.” (PORTO GONÇALVES, 2004, p. 16). O espaço público foi ampliado com as possibilidades de comunicação vindas com a ascensão da internet. “Surgiram possibilidades efetivas de divulgar conteúdos críticos de interesse público e incrementaramse espaços de observação que exercem a sua vigilância crítica sobre os media - 265 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 que pertencem ao mainstream [...] para [...] veicular visões alternativas” (RODRIGUES, 2006, p. 24). Entretanto, a autora ressalta que, mais do que ampliar, as novas tecnologias representam uma fragmentação, uma vez que segmentam a audiência em diversos nichos específicos. Assim, esse espaço público se dá de maneira muito mais interpessoal, porque mesmo podendo alcançar grandes audiências, poucos sítios na web conseguem tal proeza. Todos publicam, poucos são lidos. Começa a entrar em curso um processo que tem potencial para revalorizar o espaço público e uma maior representação da opinião pública, alimentando uma série de novas práticas sociais e políticas de resistência. Novos espaços públicos se abrem à participação individual, ao exercício da cidadania, a partir de ferramentas tecnológicas propiciadas pela internet, como as redes sociais, os fóruns online, wikis, podcasts, blogs etc. (LEAL, 2013, p. 25) Habermas (2006), no entanto, alerta: “O preço do aumento positivo do igualitarismo, com o qual a Internet nos brinda, é a descentralização dos acessos” (2006, s/p). Marcondes (2007) ressalta que não é a tecnologia por si só que promove o debate público e a reflexão crítico-racional da audiência. Para isso, deve haver um comprometimento entre os integrantes. A Internet não promove a Esfera Pública em si, mas é por ela que os indivíduos podem reorganizar as esferas como meio potencial para a retomada de microesferas públicas. A web, assim, seria uma das ferramentas que deve ser complementada por outras formas de mobilização e politização, associada a embates sociais, como assembleias e passeatas (MORAES, 2002), e a práticas abertas e plurais. Os dispositivos das novas tecnologias de comunicação e informação são ideais para fortalecer o processo democrático, proporcionando troca de informações, consultas, debates, de maneira direta e rápida, livre de obstáculos burocráticos. Como aponta Correia (2008, p. 83-84), “insiste-se num apelo a um novo paradigma que conduziria ao desenvolvimento de uma nova variedade de democracia, cujos traços - 266 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 seriam: a) interactividade – com todos os utilizadores comunicando uns com outros numa base de reciprocidade; b) globalidade – graças à ausência de fronteiras nacionais; c) liberdade de discurso e de associação; d) construção e disseminação de informação não submetida à censura oficial; e) consequente possibilidade de desafiar as perspectivas oficiais, as rotinas oficiais e instaladas”. Outra vantagem trazida pela Internet seria a possibilidade de acesso à informação fora dos meios de comunicação de massa. A presença mais forte do cidadão no universo midiático acena para novas possibilidades. "A construção de esferas públicas autônomas capazes de ressonância no governo, na mídia e no mercado é essencial, portanto, para que os processos democráticos sejam dirigidos pelo poder comunicativo da sociedade civil" (RAMOS; SANTOS, 2007, p. 128). Segundo Berger & Luckmann (2004), isso promove uma renovação do espaço público com a inclusão pelo jornalismo de “instituições intermediárias”, aquelas que reconhecem no cidadão o direito de participar da construção de sentido e, consequentemente, da construção social da realidade, diminuindo a crise subjetiva e intersubjetiva de sentido alimentada pela tendência à alienação e anomia que se verifica na modernidade (VIZEU; ROCHA; MESQUITA, 2010). Há um aumento no potencial de engajamento cívico considerável: A atividade online de pessoas interessadas em expor ideias, defender suas causas ou simplesmente opinar a respeito de fatos políticos do cotidiano mostra uma vitalidade inédita para o debate político. Mais do que partidos e governos, esse engajamento com questões políticas a partir do uso de mídias talvez seja um dos principais horizontes da democracia. […] Política, neste sentido amplo, diz respeito às possibilidades de ação no espaço público, isto é, à possibilidade de ser quem se é, defender publicamente as ideias que se tem não só sobre governo e administração, mas também sobre modos de pensar e estilos de vida (SÁ MARTINO, 2014, p. 108-109) - 267 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O jornalismo cidadão é uma das possibilidades desse novo contexto. Para Varella (2008), o jornalismo-cidadão diz respeito mais a um desejo coletivo de participação na produção de informação do que a ampliação de mecanismos de interação on-line. Não se trata, portanto, de um movimento derivado de um aumento da oferta de meios sociais on-line, distanciando-se de uma explicação mais tecnicista; ao contrário, a oferta dos meios que é condicionada, em termos, por uma demanda crescente de participação social na produção de mídia. Sendo assim, o jornalismo participativo, colaborativo ou cidadão é “uma ação por meio da informação”, porque, segundo Varella (2007, p. 80), o cidadão-repórter informa algo porque quer que algo seja feito, “que seu bairro esteja limpo, que a prefeitura proporcione melhor atendimento, que o professor ensine com mais dedicação ou que a coleta de lixo seja mais organizada e eficiente”. Essa visão, localiza o “jornalismocidadão” como uma narrativa local, dentro daquilo que se denominou como esfera do jornalismo hiperlocal. O jornalismo hiperlocal pode se evidenciar como estratégia diferenciada, com potencial para elaborar discursos baseados em contextos culturais específicos; este jornalismo se insere no que podemos chamar de “glocalismo”, termo que se refere “a uma estratégia global que não procura impor um produto ou imagem padronizada, mas que, ao invés, se ajusta às demandas do mercado local” (FEATHERSTONE, 1990, p. 25). Sendo assim, a mídia hiperlocal tem potencialidades para aumentar a participação dos cidadãos a fim de poder colocar em prática um ideal de “fomentar e experimentar práticas jornalísticas que contribuam para reforçar o compromisso dos cidadãos com a comunidade e a deliberação democrática na Esfera Pública, numa perspectiva de fortalecimento da cidadania”, mas antes “é preciso conhecer primeiro a realidade da imprensa regional e as suas possibilidades” (CORREIA; MORAIS; SOUSA, 2011, p. 6). O Hiperlocal Cidadão Como Arena Pública - 268 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O hiperlocal começou a ser usado para referir-se a cobertura de notícias em nível de comunidade geralmente esquecidas pela mídia tradicional. As operadoras estadunidenses de TV a cabo foram as primeiras a cunharem o termo "hyperlocal" nos anos 80 para descrever o conteúdo televisivo local. O conceito hiperlocal também foi transmutado para a Web. O conceito de Hiperlocal está sendo construído através de websítios jornalísticos que focalizam a sua cobertura noticiosa numa área geográfica bem definida, tratando de temas de relevância social que possuem estreita relação com os moradores e os frequentadores daquela área. O conteúdo das notícias hiperlocais está disponível não só para os usuários na comunidade hiperlocal, mas também para aqueles que estão além das fronteiras cibernéticas por meio da nova rede digital (CHOI, Y. J., 2008, n.e.), com o apoio de agregadores de conteúdo e de sistemas de recomendação. O Jornalismo cidadão de âmbito hiperlocal, então, se concentra na cobertura de eventos de uma área geográfica específica: um bairro, uma cidade ou mesmo um Estado, embora os cidadãos que possam vir a discutir ou relatar o evento online, como Choi (2008) observa, possa estar fora dessa mesma área geográfica. Com as ideias, surgiram algumas iniciativas online, muitas independentes, outras por parte dos media mainstream, que, por sua vez, buscaram atrair novos públicos, estabelecer novas relações com os leitores, criar uma maior proximidade, incentivar a partilha e a colaboração, trocar conhecimentos e descobrir novas histórias. Apesar do cenário globalizado, Barbosa (2003) lembra que as informações de caráter local também sempre foram de grande relevância para o jornalismo. Entretanto, a novidade é que a estrutura das redes no jornalismo digital “permite novas possibilidades para a geração dos conteúdos locais, ampliando o espaço para a sua veiculação” (BARBOSA, 2003, p. 1). Grier (2008) destaca o jornalismo cidadão hiperlocal como aquele que incide sobre histórias locais em contraponto com eventos nacionais; podendo ser produzida a partir das organizações noticiosas estabelecidas ou - 269 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 por meio daqueles que não estão inseridos, e nem sempre é 'notícia' no sentido tradicional. Operações de mídia Hiperlocal são geograficamente baseadas, voltadas para a comunidade, organizações nativas e originais em reportar notícias para a web e pretendem preencher as lacunas percebidas na cobertura de uma questão ou região e promovem o engajamento cívico (METZGAR et al, 2010, p. 7). Para López García (2008), a comunicação local interpreta a realidade pela ótica dos valores compartilhados e tem contribuído para a personificação de um cenário da comunicação atual, onde a dupla e simultânea tendência do local e do global apresenta novos recursos, cujas referências dos comunicantes são extraídas das duas esferas, que são complementares durante as ações comunicativas. No âmbito do jornalismo digital, o local pode ser compreendido a partir da sobrevivência dos antigos modelos, em sintonia com as apostas e recursos midiáticos dos novos tempos. Nesse ponto, a informação local do terceiro milênio tem que ser uma informação de qualidade, plural, participativa, imaginativa, que explique o que acontece no âmbito onde está sediado o veículo de comunicação, para quem informa e que narre o que afeta e interessa os habitantes desse território espacial, inclusive, quando se produz fora. A informação local do terceiro milênio deve promover a experimentação e converter os cenários de proximidade em lugares de comunicação eficiente e lugares de onde possam ser exportadas novas linguagens e formatos para a comunicação mundial (LÓPEZ GARCÍA, 2008, p. 34, tradução dos autores). Lemos (2011, p.12) aponta o jornalismo digital localizado como uma conjunção de funções pós-massivas e massivas, onde o usuário pode ter informações mais precisas sobre o seu local de interesse a partir de um cruzamento de notícias. A dimensão hiperlocal no jornalismo (já que ele é sempre local) refere-se, em primeiro lugar, a informações que são oferecidas em função da - 270 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 localização do usuário (sobre o bairro, a rua, etc), e em segundo lugar, pelas características pós-massivas desse novo jornalismo onde qualquer um pode ser produtor de informação. Essa é uma das tendências atuais do jornalismo: vinculação de notícias cruzando diversas A partir desse entendimento, pode-se observar a aproximação das práticas do jornalismo hiperlocal com as do jornalismo cidadão, em especial no que ser refere ao envolvimento das comunidades e suas organizações com relação aos problemas sociais, econômicos e ambientais urbanos que enfrentam e que, sistematicamente, não são noticiados ou são mal noticiados pelo jornalismo tradicional. Schaffer (2008) observa que existem quatro tipos de jornalistas cidadãos hiperlocal: ex-jornalistas, empreendedores da mídia tradicional, usuários assíduos da web e centros de formação em Jornalismo. Ela descreve esses jornalistas cidadãos como tendo uma paixão para a comunidade, com um intenso "senso de lugar", com pouca ou nenhuma satisfação com a cobertura da mídia tradicional, e elevada ética. Eles também "dão atenção" para a sua comunidade e têm apresentado um jornalismo "feito" para eles. Williams (2005) concorda que os sítios hiperlocais preenchem uma lacuna quando a grande mídia não cobre uma área geográfica de forma adequada. Além disso, esses sítios hiperlocais também costumam oferecer cobertura detalhada de um problema ou assunto e aspiram por um diálogo com suas comunidades (GRIER, 2008). Potts (2007) observa que sítios de jornalismo cidadão adotam abordagens diferentes, mas "oferecem aos cidadãos locais uma voz em suas comunidades e uma nova fonte de informações locais em um nível pormenorizado que a mídia tradicional simplesmente não pode igualar” (p.66, tradução do autor). Sendo assim, a relevância desta pesquisa justificou-se uma vez que contribuiu para a compreensão do poder da participação cidadã neste novo contexto comunicacional marcado pela democratização do acesso às novas tecnologias e pelo surgimento da colaboração em rede, favorecendo o poder cidadão. Mais do que os meios de comunicação tradicionais ou a própria - 271 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 imprensa, na sociedade contemporânea nós somos os meios (GILLMOR, 2005). Neste movimento contínuo de renovação e de descarte de dispositivos e de sistemas e linguagens de comunicação, surgem receptores que abandonam a postura anteriormente passiva de consumidores de conteúdos com fluxos unilaterais, para adquirir autonomia seletiva perante o imenso volume de informações que lhe são continuamente destinadas. Surge a autonomia de comparação e de escolha de veículos, de tipos de conteúdo e de formação de opiniões sobre o que é informado. Mas, por outro lado, é importante lembrar que tal transformação do público não se restringe apenas aos meios e grupos normalmente excluídos do campo de atenção da mídia hegemônica, a “libertação” das amarras do modelo de recepção passiva, criado principalmente pelo hábito televisivo (JOHNSON, 2001), se dá gradativamente em todas as classes sujeitas ao uso de tecnologias. É fato que a abrangência tecnológica ainda não alcançou todos os lares e usuários brasileiros. Descentralização da informação O ambiente online em redes favorece a lógica participativa, com a interatividade e o compartilhamento entre os indivíduos, em diversos níveis. Dessa forma, facilita-se o engajamento, tendo as figuras de produtor e receptor de conteúdos, indivíduo e coletivo fundindo-se em uma complementariedade (VIEIRA, 009). O digital seria, assim, um locus da cultura participativa, na qual as práticas colaborativas são potencializadas em um espaço de representação do coletivo. Para o autor, a colaboração e o diálogo são dois pontos estruturais do jornalismo cidadão, que sempre teve e deverá ter como propósito encontrar ambientes comuns para facilitar o exercício da cidadania e ampliar o valor da democracia, com um firme compromisso em favor da liberdade de expressão. O termo “audiência ativa” utilizado por Downing (2002) reflete perfeitamente essa realidade; o nascimento e crescimento de um público que - 272 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 não se restringe mais ao papel passivo de recepção de conteúdos. Ao contrário, ele deseja participar ativamente e de modo colaborativo da rede, atuar em sua construção e também na ligação com o mundo técnico, profissional e conceitual do jornalismo e da mídia como um todo. A internet alterou – e continua alterando – gradativamente os hábitos coletivos de comunicação mediada, que antes ocorriam por processos mais físicos e à curta distância. As atuais plataformas e dispositivos são capazes de conectar rotineiramente pessoas de diferentes partes do planeta. As possibilidades de se estabelecer relações remotas interpessoais e interculturais cresceram com o desenvolvimento de tais tecnologias. Mesmo que elas ainda sejam distribuídas de forma desigual, são capazes de induzir muitas mudanças e possibilidades comunicativas para movimentos e organizações, que antes não tão possuíam meios para se dirigir ao grande público. As redes trouxeram recursos de visibilidade e de empoderamento aos movimentos sociais, para organizações não governamentais e para outros projetos coletivos, além do próprio cidadão, em sua forma individual e com um smartphone na mão – no caso do vídeo citado, uma vez que qualquer dispositivo como um tablet ou um notebook pode estabelecer essa conexão em tempo real com a internet. Seja através de um jornal do bairro, de um blog ou de um canal no Youtube, as pessoas se utilizam das ferramentas que possuem. Aqueles com acesso à internet, têm disponível um mundo de possibilidades, onde qualquer usuário é também um emissor, não há barreiras tão fortemente expostas e enraizadas quanto as que existem no papel e nas emissoras de rádio e televisão. Não compreender essa dimensão fundamental é continuar pensando que todas as pessoas são produzidas com as mesmas capacidades e chances de competição social. É não compreender como diversas ‘culturas de classe’ pré-moldam e estruturam todas as chances de vida de seus membros de modo indelével. (SOUZA, 2009, pp. 82-83) - 273 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Machado (2009) também considera que desde a sua essência, o jornalismo cidadão tem como papel o desenvolvimento da sociedade, fundamentado na participação dos atores sociais nos processos de decisão e reconstrução das informações. Os autores argumentam que embora o jornalismo seja uma atividade que tenha como função social a construção da cidadania, as presenças de forças como os oligopólios, os interesses políticos e econômicos, que muitas vezes se deixam entrever pelas entrelinhas das notícias, acabam impedindo o exercício do papel cidadão no jornalismo. Diante disso, verifica-se a importância do jornalismo cidadão, praticado pelos novos atores sociais que adotam recursos tecnológicos presentes na web 2.0 para desenvolver seus espaços comunicativos – blogs, canais no YouTube, Twitter, Facebook - sem depender de oligopólios midiáticos ou de suas linguagens e estruturas. Segundo o autor, para se comunicar nestes novos ambientes digitais, com livre produção e circulação de informações, os cidadãos desenvolveram linguagens próprias e participativas. Para Rodrigues e Barreto (2009), no jornalismo participativo e cidadão, os indivíduos passam a ter papel ativo na recolha análise, escrita e divulgação de informações, funções antes restritas aos meios de comunicação e jornalistas profissionais. Ele não exclui a produção dos jornalistas profissionais, acrescenta a ele a participação de leigos, pessoas que não são profissionais da comunicação, na publicação e difusão de informações. Ele inclui questões de cidadania, mas não está restrita a elas, sua prática ultrapassa os temas sociais e cívicos e abrange qualquer campo do conhecimento. (VARELA, 2007, p.45) A participação do cidadão se torna mais intensa e amiúde no processo de produção de notícias, ou do fazer jornalístico. Ele contribui com sua visão dos fatos, com sua visão particular de mundo, opina sobre determinado assunto, sobre a decisão ou posição de uma autoridade que vai interferir no seu dia a dia; denuncia, concorda, ou informa sobre um novo fato que acontece na sua rua, no seu bairro, que pode ser do interesse de outras pessoas da coletividade (ROCHA, 2014, p.70) - 274 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Schaffer (2008) observa que existem quatro tipos de jornalistas cidadãos hiperlocal: ex-jornalistas, empreendedores da mídia tradicional, usuários assíduos da web e centros de formação em Jornalismo. Ela descreve esses jornalistas cidadãos como tendo uma paixão para a comunidade, com um intenso "senso de lugar", com pouca ou nenhuma satisfação com a cobertura da mídia tradicional, e elevada ética. Eles também "dão atenção" para a sua comunidade e têm apresentado um jornalismo "feito" para eles. Williams (2005) concorda que os sítios hiperlocais preenchem uma lacuna quando a grande mídia não cobre uma área geográfica de forma adequada. Além disso, esses sítios hiperlocais também costumam oferecer cobertura detalhada de um problema ou assunto e aspiram por um diálogo com suas comunidades (GRIER, 2008). Potts (2007) observa que sítios de jornalismo cidadão adotam abordagens diferentes, mas "oferecem aos cidadãos locais uma voz em suas comunidades e uma nova fonte de informações locais em um nível pormenorizado que a mídia tradicional simplesmente não pode igualar” (p.66). Identificações (hiper)locais Além de propiciar uma maior pluralidade de informações e oferecer novas oportunidades de inovação no jornalismo, as práticas de hiperlocalidade reforçam a noção de identidades culturais cada vez mais fortes, mesmo diante de um mundo extremamente globalizado, em que parece haver uma homogeneização das identidades. Identidades locais, comunitárias e regionais têm se tornado mais importantes ao mesmo tempo em que a globalização parece provocar uma homogeneização das culturas. Concomitantemente, junto com o impacto do global, um novo interesse pelo local parece emergir. De acordo com Hall (2000), a globalização, para ele, deslocou as identidades culturais no final do século XX. Diante da morte do sujeito moderno, as culturas nacionais emergem como formadoras da identidade cultural. “[...] as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação” - 275 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 (HALL, 2000, p.48). As culturas nacionais buscam unificar seus integrantes numa identidade única, sem levar em conta termos de classe, gênero ou raça. As culturas nacionais não devem ser pensadas como culturas unificadas, e sim, como um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. As identidades culturais nacionais servem para costurar as diferenças numa única identidade. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos- um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/dãs legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica [...] (HALL, 2000, p.49). As consequências da globalização para as identidades culturais podem ser resumidas em três pontos: as identidades culturais nacionais estão se desintegrando, como resultados do crescimento da homogeneização cultural e do “pós-moderno global”; as identidades nacionais e outras identidades “locais” ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização; as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades- híbridas- estão tomando seu lugar (HALL, 2011). Hall aponta que alguns teóricos acreditam que um dos efeitos desses processos globais seria enfraquecer ou solapar formas nacionais de identidades culturais. Identidades locais, comunitárias e regionais têm se tornado mais importantes, ao mesmo tempo em que a globalização parece provocar uma homogeneização das culturas. Ao mesmo tempo, Castells (2001) também aponta para uma nova valorização do local diante do novo paradigma que se torna presente, mostrando que as mudanças em nosso tempo (em que as instituições perdem força) estão fazendo com que a busca da identidade se torne fonte básica de significado social. As novas tecnologias da informação estão integrando o mundo em redes globais de instrumentalidade. A comunicação mediada por computadores gera uma gama enorme de comunidades virtuais. Mas a tendência social - 276 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 e política característica da década de 90 era a construção da ação social e das políticas em torno de identidades primárias- ou atribuídas, enraizadas na história e geografia, ou recém construídas, em uma busca ansiosa por significado e espiritualidade. Os primeiros passos históricos das sociedades informacionais parecem caracterizá-las pela proeminência da identidade como seu princípio organizacional (CASTELLS, 1999, p. 57). Diante do reforço das identidades locais perante a homogeneização das culturas provocadas pela globalização dos fluxos informacionais, o jornalismo hiperlocal pode oferecer narrativas que relatem as identidades locais, fazendo com que perfis históricos e culturais possam se sustentar, além de valorizar a memória do lugar (LEMOS; PEREIRA, p.4, 2011). Ao favorecer a abordagem local, o jornalismo torna-se importante fomentador de práticas cidadãs. Uma vez que na infinidade das metrópoles a uniformidade de identidades parece mais latente, valorizar a localidade pode criar maneiras de sociabilização, principalmente nas regiões mais periféricas. Especialmente os setores populares, ou seja, os que não têm carro ou telefone tendem a restringir o horizonte da cidade ao próprio bairro: ali se elaboram as redes de interação que desempenham modalidades distintas dentro de uma mesma cidade, e só se abrem- limitadamente- às grandes veias da metrópole quando seus habitantes têm de atravessá-la nas viagens para o trabalho, realizar um negócio ou buscar serviço excepcional (CANCLINI, 2005, p.102-103). Somada a políticas públicas eficientes, o jornalismo hiperlocal pode ajudar a promover e contribuir para que se mantenham traços históricos que distinguem os habitantes de determinado lugar e, assim, despertar a responsabilidade dos seus cidadãos (CANCLINI, 2005). Atuações como arenas públicas A título de início do debate do hiperlocal como arenas públicas, buscam-se nesse item possíveis aproximações a partir da revisão da literatura apresentada até então. Como apresentado, as arenas públicas se configuram como espaços que possibilitam o debate no interior da Esfera Pública de sociedades complexas e democráticas, além de serem responsáveis por - 277 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 diagnosticar os assuntos de interesse da sociedade e torná-los públicos, consolidando a ideia de opinião pública, e levá-los à Esfera Pública política. Esse substrato organizatório, representado no fluxo de informação da Esfera Pública, é operado pelo conjunto de associações voluntárias desvinculadas do mercado e do Estado, e que têm a função de captar os anseios da própria sociedade e levá-los ao conhecimento público e, por consequência, à ciência dos representantes da população nas instâncias político-administrativas do próprio Estado (LOURENÇO, 2009, p. 86) Assim como as arenas públicas, uma premissa para as mídias hiperlocais está na sua origem dentro dos limites de uma comunidade. Conforme já apontado nas sessões anteriores, a ideia de comunidade não está presa ao conceito geográfico, mas sim pelas aproximações e laços de identidades que caracterizariam tal comunidade. Nesse sentido, a manutenção de elementos de identidade local no contexto da comunicação digital está diretamente relacionado com a origem dessas mídias e sua atuação na comunidade. Esses reforçam a aproximação com as arenas públicas, ao passo que tais elementos garantem a captação dos anseios da comunidade e levá-los ao debate. o grande potencial de uma arena pública é o de se transformar em uma esfera de deliberação e formação de uma opinião pública, que pode ser capaz de influenciar, ora determinar, os processos de decisão política nas esferas administrativas do Estado. Portanto, é função imprescindível de uma rádio comunitária fomentar o debate, captando os problemas e demandas da comunidade, discutindo-os e publicizando-os (LOURENÇO, 2011, p. 14) Diferentemente do processo inserido nos mass media, nos meios hiperlocais a sociedade civil participa ativamente de todo o processo, desde a concepção do assunto que será retrato, passando pelos processos de produção e atingindo o feedback daquilo que é produzido , marcando, assim, a descentralização do processo produtivo. - 278 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Referências CAMPONEZ, C. Jornalismo de Proximidade. Coimbra: MinervaCoimbra, 2002. CASCAIS, F. Dicionário de Jornalismo: As palavras dos media. Lisboa: Editorial Verbo, 2011. CASTELLS, M. A era da intercomunicação. Le Monde Diplomatique – Brasil,2006, disponível em: http://diplo.org.br/imprima1379 - Acessado em: 14 jan. 2015. CASTELLS, M.; CARDOSO, G. (Orgs). A sociedade em rede: do conhecimento à ação política. 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Tese (Doutorado em Comunicação Social)—Universidade de Brasília, Brasília, 2012 - 281 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Apontamentos sobre narrativas transmídias no portal folha.uol Rogerio Bazi (Pontifícia Universidade Católica de Campinas) Introdução Na perspectiva dos estudos atuais que envolvem o jornalismo, principalmente na última década, os efeitos do uso da tecnologia e das narrativas que abarcam a produção jornalística apresentam-se como um dos principais pontos a serem identificados, discutidos e\ou analisados na tentativa de se construir novos paradigmas ao campo do jornalismo. Sem restar dúvida, foi a evolução tecnológica que possibilitou e incentivou criar meios ultra rápidos para que a informação pudesse atingir o público receptor, reproduzindo nele o conhecimento. "O registro histórico das revoluções tecnológicas [...] mostra que todas são caracterizadas por sua penetrabilidade, ou seja, por sua penetração em todos os domínios da atividade humana, não como fonte exógena de impacto, mas como o tecido em que essa atividade é exercida" (CASTELLS, 2000, p. 50). Diferentemente do que ocorreu em outras revoluções, como a industrial ou a científica, na revolução tecnológica "usuários e criadores podem tornar-se a mesma coisa [...] os usuários podem assumir o controle da tecnologia como no caso da Internet [...] pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo" (CASTELLS, 2000, p. 52). O usuário passa a ser agente criador e transformador. Talvez seja por isso que as novas tecnologias difundiram-se pelo globo com a velocidade da luz em menos de duas décadas, por meio de uma lógica que "[... ] é a característica dessa - 282 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 revolução tecnológica: a aplicação imediata no próprio desenvolvimento da tecnologia gerada, conectando o mundo através da tecnologia da informação" (CASTELLS, 2000, p. 52). Assim, é possível observar que as relações entre tecnologia, ambientes conectados e o jornalismo estão intrinsicamente unidas e se estabelecem com muita nitidez na atualidade por aquilo que fora nomeado de cultura de convergência, expressão cunhada por Jenkins (2009) em seus estudos sobre convergência e narrativa transmídia (NT). Logo, o que se pretende, pois, com a comunicação é apresentar um levantamento inicial da aplicação do conceito de Jenkins (2009) sobre as narrativas transmídias (NT) no jornalismo nas produções do portal www1.folha.uol.com.br/especial no ano de 2015, na tentativa de refletir acerca de perspectivas ou tendências de outras linguagens das NT no campo do jornalismo. Tratando-se de estudo inicial a pesquisa irá identificar as produções e sinalizar o que foi produzido como narrativas transmídias, seguindo os critérios de Jenkins (2011), ou seja, uma estrutura de conteúdo noticiosa transmídiatica atende pelo menos a um dos requisitos: a) Mapeia o mundo; b) Oferece pano de fundo para outras produções; c) Oferece a perspectiva de outros personagens; d) Aprofunda o engajamento da audiência. Sobre as narrativas transmídias Portanto, a partir de tal exposição é importante registar, à luz da revisão conceitual, que Jenkins (2009, p.29) refere-se à convergência como "o fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação". Para o autor, a palavra convergência "consegue definir transformações tecnológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam estar falando". - 283 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Representa, pois, "uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos" (p.29-30). Por sua vez, Alzamora e Tárcia (2012, p. 25) argumentam que o termo convergência nos anos 90 era proposto a partir de "recursos de linguagem provenientes de vários meios em um único ambiente midiático, então chamado hipermídia". Já Quinn (2005, p.3) apud Alzamora e Tárcia (2012, p. 25) expõe que a convergência está diretamente relacionada ao indivíduo e à cultura de cada país. "O tipo de convergência que se desenvolve em qualquer empresa será um produto da cultura desta empresa". A afirmação é importante porque realça, na perspectiva do jornalismo, as linhas editorias adotadas por cada veículo de comunicação e a atuação destes no mercado editorial. Deste modo, como bem destacou Massarolo (2015, p. 136), "[...] a convergência midiática representa um estimulo à participação e cocriação de conteúdo em plataformas de mídia, trazendo as transformações cotidianas para o ambiente da cultura participativa, na qual os usuários mais ativos preferem utilizar suas habilidades cognitivas e performáticas, para poder assim, reconfigurar e compreender a percepção contemporânea do seu cotidiano". É assim, então, a partir de tal conjectura, onde o usuário da informação estabelece sua participação por meio de plataformas midiáticas convergentes, que a NT apresenta-se como um "fluxo de conteúdos dispersos entre conexões de mídias digitais" (ALZAMORA e TÁRCIA, 2012, p. 25) a fim de atender aos usuários da informação. Neste sentido, Scolari (2014, p. 74) argumenta que "no tempo presente não há nenhuma mídia informativa, seja escrita ou audiovisual, que não convide seu público para enviar informação, fotografias, vídeos ou textos que permitam que narração das notícias sejam expandidas". O autor diz ainda que a criação e produção de conteúdo no jornalismo transmídia representa uma possibilidade de se combinar diversas plataformas de mídia - 284 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 para a construção de um conteúdo capaz de informar seus consumidores da melhor maneira possível. Isto posto, é necessário expor mesmo que brevemente como o termo NT surge no presente contexto. Assim, foi em 200364 que o próprio Jenkins citou o termo transmídia (storylling) com intuito de destacar 'o ato de contar histórias através de várias mídias'. No português, foi traduzido como narrativa transmídia. Disposto a entender a saga do filme Matrix65, uma vez que o filme se expande além das telas, Jenkins (2009, p. 138) explica que "uma história transmidiática se desenrola através de múltiplos suportes midiáticos, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo". Cooperando para o entendimento, Scolari (2009, p. 587)66 amplia o sentido do termo e cita que a NT é uma "structure that expands through both different languages (verbal, iconic, etc.) and media (cinema, comics, television, video games)". Para o autor, a NT "is not just an adaptation from one media to another. The story that the comics tell is not the same as that told on television or in cinema; the different media and languages participate and contribute to the construction of the transmedia narrative world". Observa ainda que "this textual dispersion is one of the most important sources of complexity in contemporary popular culture". Neste sentido, Pase, Nunes e Fontoura (2012, p.68) entendem que a NT "está ligada à sociedade" e "a relações da audiência com a tecnologia e a informação", e "dialoga com um processo cultural maior que materializa as 64 http://www.technologyreview.com/news/401760/transmedia-storytelling/ Acesso em 09 de outubro de 2015. 65 Matrix é uma produção cinematográfica americana e australiana de 1999, dos gêneros ação e ficção científica. 66 Tradução nossa: "Estrutura que se expande através de ambas linguagens diferentes (verbal, icónico, etc.) e mídias (cinema, quadrinhos, televisão, jogos de vídeo, etc.). A NT não é apenas uma adaptação de uma mídia para outra. A história que dizem os quadrinhos não é a mesma que disse a televisão ou no cinema; os diferentes meios e linguagens participam e contribuem para a construção da narrativa transmídia no mundo. Esta dispersão textual é uma das fontes mais importantes de complexidade na cultura popular contemporânea". - 285 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 relações plurais entre diferentes formas de assimilação de conteúdo, as audiências heterogêneas e as próprias mídias". Portanto a contribuição da NT para o jornalismo é fundamental num ambiente propenso a participação de novas linguagens, conteúdos e as próprias relações entre mídias (Jenkins, 2011), pois "a narrativa transmídia é uma disciplina multidisciplinar que se inscreve numa rede de filiações teóricas, na qual predominam os estudos e pesquisas de Jenkins [...]" (MASSAROLO e MESQUITA, 2014. p. 17) e, por sua vez, "a nova audiência deseja, sobretudo, participar na produção de conteúdo e vivenciar narrativas jornalísticas de forma simultânea, e através de múltiplas telas e diferentes localidades" (MASSAROLO, 2015, p. 138). Assim, a identificação ou mesmo a aplicação da NT no exercício do jornalismo necessitam de estudos e reflexões periódicas. O jornalismo passou a ocupar um lugar privilegiado em diferentes mídias e em grupos de mídia. Deixou de ser multimídia apenas, "em que temas são narrados dispersivamente por múltiplas plataformas [...] (PASE, NUNES e FONTOURA, 2012, p.70) e assume o papel de facilitador de conteúdos jornalísticos amplos e articulados para diferentes mídias". Persina Júnior (2010, p. 06) argumenta que o conceito de "mônada aberta" pode ser aplicado a um jornalismo transmídiatico. De acordo com o autor, "cabe a quem fez a reportagem tentar organizar blocos de informação que contenham o máximo de dados sobre um determinado tema específico que faça parte de um assunto mais geral". E, "o assunto geral seria composto, então, de várias destas 'mônadas', que se ligariam por meio de links". A ideia é interessante na medida que, segundo o próprio autor, a aplicação da NT no jornalismo, por meio da "mônada aberta", ocorra a partir de uma rede de desenvolvimento de conteúdos simultâneos e não apenas reportagens realizadas para uma determinada mídia, como por exemplo, um site de notícias ou uma emissora de televisão. Contudo, o que se deve observar na presente exposição é que, sobremaneira, "na lógica produtiva, a transmídia tenciona questões arraigadas no jornalismo contemporâneo, condicionado a sua produção e - 286 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 distribuição à desconstrução da lógica da instantaneidade e mostrando os benefícios de uma reportagem com mais tempo para ser trabalhada" (PASE, NUNES e FONTOURA, 2012, p.77). As produções na www1.folha.uol.com.br/especial Mesmo que brevemente convém registrar que o portal folha.uol.com.br pertence ao Grupo Folha de S. Paulo, administrado pela família Frias, com sede na capital paulista. Em 1992, devido ao péssimo quadro econômico, os jornais brasileiros, incluindo a Folha de S. Paulo, foram obrigados a reduzir a quantidade de folhas nas publicações. Desse modo, as páginas ficaram mais sobrecarregadas de informação e, um grande marco para o veículo, que significou sua inserção no universo digital, foi o ano de 1995, com a criação de seu primeiro jornal na versão online. Em 1996, foi lançado pelo Grupo Folha o Universo Online, primeiro serviço online de grande porte no país (FIORETTO e BOTTÃO, 2013, p.8). Depois de várias mudanças no design, em 2010 as redações do jornal impresso e online se unem e o portal Folha Oline passa a se chamar Folha.com e são criados aplicativos para as plataformas do iPhone, iPad e Galaxy Tab, iniciando uma nova trajetória empreendedora. A seguir, têm-se, portanto, o que foi produzido pelo portal em 2015. - 287 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 - 288 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Nota-se que o portal realizou em 17 editorias possíves, 127 produções, incluindo a editoria de classificados que será desconsiderada. Com a exclusão, têm-se 16 editorias e 124 temas produzidos, detalhados abaixo: Considerações finais Como indicado anteriormente, trata-se de levantamento inicial de pesquisa em que se propõe verificar a aplicação do conceito de Jenkins (2009) sobre as narrativas transmídias (NT) no jornalismo e, por meio de uma breve abordagem nas editorias Ilustrada e Cotidiano foi possível notar que o conceito de NT se aplica na medida em que a estrutura de conteúdo noticiosa transmídiatica atende aos requisitos indicados por Jenkins (2011) como oferecer um "pano de fundo para outras produções", indica "a perspectiva de - 289 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 outros personagens" e, fundamentalmente "aprofunda o engajamento da audiência" para e com outras narrativas noticiosas. Ao analisar a editoria Ilustrada, por exemplo, e o especial "De volta para o futuro- 30 anos", nota-se claramente que toda a produção foi construída para fornecer ao usuário da informação "um pano de fundo para outras produções"; ali se encontram vídeos que remetem ao passado do filme e ao presente, história dos personagens e dos objetos do filme como o skate voador do personagem Marty, interpretado pelo ator Michael J. Fox, como também histórias que remetem a outros temas, disponível em um menu de conteúdos. Por sua vez, em Cotidiano as 16 produções realizadas em 2015 "aprofundam o engajamento da audiência", uma vez que levam o usuário a outras possibilidades narrativas, envolvendo-o numa espécie de teia noticiosa. Mesmo assim, é certo, de um lado, que tal análise depende ainda de reflexões mais apuradas e minuciosas que se darão nos próximos passos do estudo; por outro, tornou-se claro que o levantamento e o diagnóstico primário mostraram-se extremamente importantes para exemplificar que as NT são produzidas no ambiente noticioso e contribuem, sobremaneira, no aprofundamento da informação e na capacidade de criar e gerar novos projetos no jornalismo. Referências ALZAMORA, Geane. TÁRCIA, Lorena. Convergência e transmídia: galáxias semânticas e narrativas emergentes em jornalismo. In: Brazilian Journalism Research. Brasília. v. 8, n. 1, 2012. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999 e 2000. FIORETTO, D.; BOTÃO, P. R. Folha Corrida: Diálogo entre Jornalismo Online e Impresso. Trabalho apresentado no DT 1 - Jornalismo do XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, realizado de 3 a 5 de julho de 2013. 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Internacional Journal of Communication, v 3, 2009, p. 586-606. - 291 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Linked data como plataforma auxiliadora na mediação da informação Isabela Pereira do Rego - UNESP Oswaldo Almeida Junior - UNESP Ângela Maria Grossi de Carvalho - UNESP Linked data e a mediação da informação Há tempos, o mundo vem se tornando globalizado e informatizado, contando com uma sobrecarga de dados variados, sendo estes a respeito de educação, transporte, planejamento, saúde, ambiente, entre as mais diversas áreas do conhecimento. Estes dados vêm desempenhando um papel cada vez mais central em nossas vidas, nos auxiliando na tomada de decisões. A explosão da informação e o desenvolvimento de novas ferramentas tecnológicas assumem um papel significativo no desenvolvimento da sociedade. As pessoas estão inseridas na sociedade por meio de novas formas de relação, comunicação e organização, relações que desenvolveram durante toda sua vida. (NASCIMENTO, et al., 2013, p.42) Segundo Nascimento, et al. (2013), a produção de documentos em formato digital e a transmissão de dados que passa pelas redes, acessíveis a todos os cidadãos, provocou uma grande revolução na disseminação da informação, pois permite que todos possam acessar uma grande quantidade de informação. Nas informações digitais, os canais representam os espaços virtuais de comunicação que permitem o compartilhamento do conteúdo informacional na web, com a perspectiva de possibilitar uma conversação dentro das redes digitais formadas a partir das interações entre os usuários no ciberespaço, isto é, em um movimento pelo qual o usuário receptor de - 292 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 informação pode se transformar, ao mesmo tempo, em produtor de informação e vice-versa, como por exemplo, os blogs corporativos, os micro blogs, os fóruns, as plataformas de compartilhamento de vídeos e fotografias, as redes sociais na web, dentre outros (BRASILEIRO, et al., 2012, p.172). No contexto do ciberespaço, as ações de informação estão associadas aos canais de disseminação, tendo em vista o emprego do canal com a função de se configurar como a própria ação, ou seja, ao compartilhar o conteúdo informacional do website por meio de um blog, por exemplo, considera-se que a ação de informação já está sendo realizada. Dessa forma, o planejamento das ações de informação é que deve determinar a seleção dos canais, portanto, os canais são escolhidos a partir dos objetivos das ações e dos sujeitos que se pretendem atingir (BRASILEIRO, et al., 2012, p.172). De acordo com González de Gómez (2003, p.64) os objetivos das ações de informação podem ser: transformar o mundo social ou natural (sujeitos funcionais); transformar o conhecimento para transformar o mundo (sujeitos experimentadores); ou transformar a informação e a comunicação que orientam o agir coletivo (sujeitos articuladores e reflexivos). Heath e Bizer (2011) afirmam que o Linked Data possibilita a ligação entre diferentes fontes de informação, formando a web de dados. Isso torna possível que as aplicações genéricas operem sobre um conjunto de dados mais completo. Dessa forma, observa-se que, no contexto da comunicação mediada por meio de computadores, as redes sociocomunicacionais que se formam em uma determinada estrutura social encontram na tecnologia da internet, a infraestrutura necessária para o compartilhamento da informação a nível global. Em outras palavras, a internet se configura como a base de sustentação para as redes digitais estabelecidas entre os diferentes espaços virtuais de comunicação na web, tais como websites, blogs, sites de relacionamentos, dentre outros que juntos vêm a constituir o ambiente de interação denominado de ciberespaço (BRASILEIRO, et al., 2012, p.162). - 293 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Adotando a web semântica como plataforma, surge, sob denominação Linked Data, uma iniciativa para publicar conjuntos de dados já existentes. Linked Data é o termo usado para descrever recomendações de melhores práticas para expor, compartilhar e conectar pedaços de dados e conhecimento na web semântica, usando Uniform Resource Identifier (URI) e Resource Description Framework (RDF). Com o objetivo de permitir a ligação entre dados publicados por diversas organizações, o Linked Data estabelece como princípio usar URIs para identificar unicamente as entidades representadas nesses conjuntos de dados (ROCHA, 2012, p.282). KELLER, et al. (2011), afirma que a web semântica e Linked Data configuram uma plataforma promissora para publicação de dados de estudos bibliométricos, à que medida dispõem de uma estrutura simples para representar e integrar dados. O uso de URI para identificar entidades como autores, instituições e artigos é um instrumento valioso para a identificação de descrições repetidas destas entidades (tanto redundantes como complementares), principalmente quando entidades provenientes de várias fontes são integradas. O controle de autoridades via Linked Data é mais imediato, internacionalizado, transparente e controlável. Tecnicamente, Linked Data refere-se a dados publicados na internet de tal forma que é legível por máquina, o seu significado é explicitamente definido, é ligado a outros conjuntos de dados externos, e pode, por sua vez, ser ligada a partir de conjuntos de dados externos. Enquanto as unidades primárias da web de hipertexto são HTML (Hyper Text Markup Language), documentos conectados por hiperlinks untyped, Linked Data conta com documentos que contêm dados em RDF. No entanto, ao invés de simplesmente conectar esses documentos, o Linked Data usa para fazer declarações digitadas que apontam coisas arbitrárias do mundo. (GOMES; TORRES, 2011, p.web). Conforme apresenta Cabral, et al. (2012), Linked Data surgiu em 2006 como uma alternativa para tentar resolver o problema da grande quantidade de dados disponíveis na web, isto é, textos ou arquivos dos mais variados formatos, dos quais muitos só podem ser interpretados por seres - 294 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 humanos. Isso impede que aplicações (máquinas) consigam extrair informações reais contidas nesses documentos. Assim como os hiperlinks, que permitem conectar documentos em um espaço único de informação global, Heath e Bizer (2011) afirmam que o Linked Data possibilita a ligação entre diferentes fontes de informação, formando a web de dados. Isso torna possível que as aplicações genéricas operem sobre um conjunto de dados mais completo. Para que a interligação dos dados seja possível, Bizer, Heath e Berners-Lee (2009) descrevem um conjunto de regras, conhecidas como os quatro princípios do Linked Data, e estabelecem um padrão para a publicação dos dados na web. São elas: 1) utilizar URI para nomear as coisas; 2) usar HTTP URIs para que as pessoas possam procurar por esses nomes; 3) fornecer informações úteis utilizando os padrões RDF e SPARQL (Simple Protocol and RDF Query Language), quando alguém procurar por uma URI; e 4) incluir links para outras URIs a fim de que elas possam descobrir mais informações (CABRAL, et al., 2012, p.177). O Linked Data descreve um conjunto de práticas para publicar e conectar dados estruturados na web. Agrega os mesmos princípios básicos da web propostos por Berners-Lee: simplicidade, design modular e descentralização (BERNERS-LEE, 2001). Berners-Lee et al. (2006) elaboraram os princípios do Linked Data, esclarecendo que os dados em RDF nesta estrutura devem ser: a) abertos (e não proprietários), pois devem ser acessados por meio de uma ilimitada variedade de aplicações; b) modulares, uma vez que não necessitam de planejamento prévio para combinar com outros dados c) escaláveis, pois uma vez que já existam dados em RDF, a adição de novos dados tende a ser facilitada. Conforme afirma Rocha (2012), assim como a web pode ser vista como uma grande rede distribuída de hiperdocumentos, que são identificados e interligados através de suas URIs, Linked Data é vista como a web dos dados, em que dados estão armazenados em bases de dados que são - 295 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 difundidas através da mesma rede que suporta os hiperdocumentos, e são identificados e interligados via URIs. A proposta Linked Data – literalmente, interliga dados abertos – vem se tornando uma realidade ao acenar com a possibilidade de interligar acervos em arquivos, bibliotecas e museus digitais através de tecnologias da web semântica como RDF e URIs (MARCONDES, 2012, p.173). Ainda segundo Marcondes (2012), esta proposta oferece grande potencial ao conectar recursos informacionais através de links semânticos, que são significativos também para programas. De outra maneira, links convencionais são meios para que programas navegadores, a partir de um recurso, acessem outro, sem explicitar qual o significado da ligação entre os recursos, além de uma eventual etiqueta textual significativa para usuários humanos. Sendo significativos para programas, links semânticos podem ser processados de forma mais eficiente por eles, explorando e enriquecendo cognitivamente o significado (legível por máquina) da ligação entre ambos os recursos. Nesse sentido, a proposta do Linked Data se perfaz como um importante instrumento de avaliação e identificação dos dados disponibilizados na web para uma melhor visualização e compreensão do usuário ao buscar informações na rede, pois ele possibilita a transformação de uma web na qual os recursos são documentos HTML para uma web de dados, onde os dados estarão interligados através de metadados. O tema Linked Data traz novos estímulos para o aperfeiçoamento de aplicações web de uma maneira geral, do mesmo modo que para a administração da grande amostra de dados que vem se estabelecendo como resultado da crescente adoção dos princípios do Linked Data. A sociedade atual, apesar de ser a grande produtora e consumidora de informações, depara-se com inúmeras dificuldades para acessar e selecionar esta avalanche de informações, resultado de atividades científicas, sociais e econômicas do homem (TONELLO, et al., 2012, p.23). Consoante à Tonello, et al. (2012), a informação é considerada recurso estratégico e preponderante na cadeia geradora de conhecimento. - 296 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Porém, para que essa informação possa ser assimilada, apreendida e transformada em conhecimento, precisa ser representada de alguma forma, a fim de possibilitar a leitura, análise e apropriação. Dado ao significado cada vez maior das informações na construção e disseminação do conhecimento, surgem questões relevantes no que se refere à preservação e tratamento, visando a sua disseminação, e que demandam estudos, pesquisas e reflexões a respeito. Entre elas, evidenciamse os processos de disseminação, transferência e apropriação da informação, os quais estão relacionados com a mediação da informação. Tais questionamentos, acredita-se, são baseados em dois fatos que permeiam a sociedade atualmente: a quantidade e a variedade de informações que são veiculadas em diferentes suportes e meios e o grande número de usuários que buscam essas informações (TONELLO, et al., 2012, p.22). A mediação da informação pode ser entendida como: [...] toda ação de interferência – realizada pelo profissional da informação –, direta ou indireta; consciente ou inconsciente; singular ou plural; individual ou coletiva; que propicia a apropriação de informação que satisfaça, plena ou parcialmente, uma necessidade informacional (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 92). A mediação da informação consiste no processo essencial para obtenção da comunicação efetiva entre as redes sociocomunicacionais que se formam na estrutura social das organizações que, por sua vez, corresponde à condição sine qua non para a construção do conhecimento organizacional. Apoiando-se na infraestrutura da internet, por meio dos microcomputadores, o processo de mediação da informação nas organizações se estabelece com facilidade a partir das redes digitais. Essas redes, além de possibilitarem a convergência das redes sociocomunicacionais naturais das relações entre os sujeitos para um único ambiente informacional – o ciberespaço –, possibilitam que um determinado conteúdo informacional seja produzido, organizado e disseminado de maneira instantânea, - 297 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 independente da posição geográfica, para diferentes grupos de pessoas (BRASILEIRO, et al., 2012, p.164). Conforme Brasileiro, et al., (2012, p.162), no contexto organizacional, o ciberespaço se configura como um meio facilitador para a geração de conhecimento nos indivíduos que fazem parte de sua estrutura. A partir da constituição de um espaço virtual de comunicação na web, qualquer organização tem a possibilidade de estabelecer o processo de mediação da informação de forma dinâmica, isto é, com maior excelência, presteza e interação entre os usuários de modo a contemplar as etapas de produção, organização e disseminação da informação. As redes digitais de informação e comunicação facilitam a distribuição da informação para diferentes grupos de pessoas, agrupando-a em espaços virtuais de comunicação que, por sua vez, contribuem para a geração de estoques de informação capazes de agirem no desenvolvimento intelectual das pessoas ao se transformarem em conhecimento (BRASILEIRO, et al., 2012, p.161). McGarry (1999, p.122) considera que a “convergência da tecnologia da informática com as comunicações afetam a criação, gestão e uso da informação de modo inédito desde a introdução da imprensa de tipos móveis”. Nesse sentido, o autor entende que da mesma forma que a invenção da imprensa de Gutenberg permitiu a comunicação facilitada entre estudiosos e pesquisadores, a tecnologia digital permite que as pessoas estabeleçam uma conversa à distância com a mesma proximidade e naturalidade como se estivessem reunidas em um mesmo ambiente, modificando assim as relações de tempo e espaço. Conectado com estes novos atores da web, surgiu um conjunto de princípios e tecnologias chamado Linked Data, que de uma maneira geral, refere-se a empregar o RDF e o Hypertext Transfer Protocol (HTTP) para publicar dados estruturados na web, interligando dados de diferentes fontes. O movimento de Dados Abertos (Open Data), que incentiva a disponibilização de dados a todos, também contribui para a disponibilização - 298 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 de conjuntos de dados que podem ser interligados no formato Linked Data (BATISTA, et al., 2013, p.2). Linked Data é vista como a web dos dados, em que dados estão armazenados em bases de dados que estão distribuídas através da mesma rede que suporta os hiperdocumentos, e são identificados e interligados via URIs. De forma semelhante aos hiperdocumentos, URIs são usadas para estabelecer a ligação entre dados, isto é, um determinado dado, quando referencia um outro dado, utiliza a URI deste como referência (ROCHA, 2012, p.289). Linked Data adota a Web Semântica como plataforma de representação de informação. As bases de dados neste ambiente são compostas por triplas representadas na linguagem RDF, e o significado destas triplas é formalmente especificado através de ontologias expressas na linguagem Web Ontology Language (OWL). A plataforma da Web Semântica proporciona vantagens para a integração e interligação de dados. O uso de URI como identificador evita redundância uma vez que um dado externo pode ser referenciado, ao invés de ser localmente replicado. A integração da informação é facilitada, pois ocorre no nível semântico e não no nível estrutural, visto que RDF e OWL são instrumentos para adicionar semântica aos recursos, sem fazer suposição sobre a estrutura desses recursos (ROCHA, 2012, p.290). Considerações Finais Observa-se, desta forma, que no contexto da comunicação mediada por meio de computadores, as redes sociocomunicacionais que se formam em uma determinada estrutura social encontram na tecnologia da internet, a infraestrutura necessária para o compartilhamento da informação a nível global. Em outras palavras, a internet se configura como a base de sustentação para as redes digitais estabelecidas entre os diferentes espaços virtuais de comunicação na web, tais como websites, blogs, sites de - 299 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 relacionamentos, dentre outros que juntos vêm a constituir o ambiente de interação denominado de ciberespaço (BRASILEIRO, et al., 2012, p.162). Assim, o Linked Data aparece como uma possibilidade de facilitar a interligação de dados que, por sua vez, possam ser ligados a outros dados, criando uma rede de dados estruturados e com representação semântica legível por homens e máquinas. Sendo assim cabe ao profissional da informação apreender toda a realidade informacional e social característica da atualidade, com usuários exigentes e também complexos, para, como mediador informacional, auxiliar, intervir, e colaborar efetivamente com os processos de busca e disponibilização de informações, juntamente com os usuários, através de um novo cenário de interoperabilidade e de dados abertos onde a informação sobre uma única entidade é distribuída na web e é acessada por inúmeras organizações, o que agrega valor aos sistemas de informação. Referências ALMEIDA JÚNIOR, O. Mediação da informação e múltiplas linguagens. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, Brasília, v. 2, n. 1, p. 89-103, jan./dez. 2009. 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Embora as pesquisas passem a ter, recentemente, um interesse maior pela representação como um todo, englobando aspectos que vão além da literatura teatral e consideram fundamentais as intervenções do encenador, Pavis (2011) nos chama a atenção para o fato de que o texto passou a ser considerado um acessório incômodo, ignorado pela cenologia. Concordamos com a necessidade de restabelecer esse diálogo de forma equilibrada. Sabemos, ainda, que a semiologia linguística é um sistema de signos amplamente estudado e desenvolvido, motivo pelo qual não temos pretensão de consolidar ou definir um conceito desse sistema, visto que mesmo os especialistas não concordam em todos os aspectos. Pretendemos, apenas, lançar mão de uma observação focada na dramaturgia teatral, de modo a perceber algumas de suas possibilidades e especificidades no tratamento do texto. Campos (1976) nos diz que a abordagem linguística aparece como a grande possibilidade de conferir objetividade à análise do texto poético, que anteriormente se embasava na “intuição” dos escritores. O autor defende que - 303 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 a intuição tem seu papel na dialética da construção poética, mas também que o rigor analítico não precisa invalidar a sensibilidade que permeia este processo. Ingarden (1977), por sua vez, pontua que as obras literárias são, todas elas, formas linguísticas de duas dimensões. A primeira dimensão apresenta quatro níveis distintos: o nível fônico, o nível semântico, o nível dos quadros visuais esquematizados e o nível das realidades. A segunda dimensão observa a distinção entre a sucessão das partes (capítulos, cenas e atos) e a estruturação da obra de seu início a seu final. Em uma peça teatral, a montagem evidencia o aspecto fônico do texto dialógico. Bogatyrev (1977) acrescenta que, no caso do teatro, o discurso do ator, embebido de enunciado poético, é um sistema complexo de signos, porque além de todos os signos literários que incorpora, faz parte da ação dramática. Em um processo analítico, Campos (1976) afirma que a função estética tende a se perder, sendo mais comumente valorizados os aspectos comunicacional e expressivo da linguagem Ingarden (1977), por sua vez, considera o teatro como um caso-limite de obra literária, por jogar com outro meio de representação – o visual – além da linguagem. O autor nomeia os diálogos de texto principal e as indicações cênicas dadas pelo autor (as rubricas) de texto secundário. “Tais indicações, é claro, desaparecem quando a obra é representada em cena; portanto, somente no momento da leitura da peça é que são percebidas e exercem sua função de representação” (INGARDEN, 1977, p. 3). A problemática apresentada pelo autor diz respeito ao fato de que o texto principal, no teatro, é um dos elementos a serem representados no espetáculo cênico. A enunciação de cada palavra, de cada frase, torna-se, a partir daí, um processo que se desenrola nesse universo representado, no qual se integra, enquanto elemento, ao comportamento global das personagens. [...] [Os discursos pronunciados] devem, por conseguinte, relacionar-se estreitamente com outros meios de representação próprios ao teatro: os elementos visuais concretos fornecidos pelos atores. (INGARDEN, 1977, p. 3-4). - 304 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Esse diálogo entre o texto tal como o lemos e tal como o percebemos na encenação vai ao encontro da defesa de Pavis (2011) para uma abordagem balanceada da literatura teatral. O autor diferencia, para tanto, o texto escrito do texto enunciado, para que se possa definir o objeto de análise verificado em cena. O discurso teatral, segundo Ingarden (1977), apresenta quatro funções básicas: representar as realidades que se referem às palavras pronunciadas; exprimir experiências, estados e processos psíquicos vivenciados pelas personagens; estabelecer a comunicação entre as personagens; e exercer influência sobre a quem o discurso se dirige. Essas funções se revelam, em um primeiro momento, a partir de divisões específicas presentes no texto teatral. Pavis (2011) observa, contudo, que as divisões fundamentadas em um texto dramático não necessariamente corresponderão à dinâmica do espetáculo. “Texto e representação não são mais concebidos em uma relação causal, mas como dois conjuntos relativamente independentes, que não se encontram sempre e necessariamente pelo prazer da ilustração, da redundância, do comentário.” (PAVIS, 2011, p. 18). O autor chama a atenção para que, em uma análise, não sejam negligenciados aspectos que fogem dos sistemas significantes, de movimentos visíveis e marcados. Bogatyrev (1977), que fala em um sistema semântico da “língua teatral”, destaca que o processo de criação dramatúrgica leva em consideração aspectos essenciais da linguagem que podem denotar, através do vocabulário, de um tom especial, de uma forma de pronunciar, de um ritmo particular de elocução etc., aspectos fundamentais para a construção de uma personagem ou de um contexto. Kowzan (1977) acrescenta que a especificidade da linguagem teatral se dá com relação a diversos signos linguísticos: origem das palavras, tom, dicção, sotaque e variações. Partindo do método sugerido por Pavis (2011) para análise do impacto do texto teatral no interior da representação, verificaremos que o autor propõe uma definição inicial que delimite se a intenção é examinar - 305 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 como o texto foi “posto em cena” ou se se pretende observar a “impostação” do texto, ou seja, a forma como foi tornado audível e visível. O primeiro caso dedica-se à gênese da encenação, que incorporará a determinação dramatúrgica de tempo, lugar, movimentação cênica, leituras textuais, intervenções de cenógrafo, figurinista, iluminador, experimentações e vocalizações etc. Já o estudo do texto impostado dedicarse-á a aspectos de pronunciação e enunciação de uma textualidade construída por um ator já em processo de encenação. Pavis (2011) propõe, ainda, a diferenciação analítica entre o texto lido e o texto representado. O primeiro não sofre interferência de nenhuma voz humana, nem mesmo a de seu autor, e é ativado de forma individual e silenciosa. O segundo, na contramão, serve a uma cena já estruturada e embebida de diversos signos de ordem não-literária, mesmo se se tratar de um texto apenas ouvido. A realização de um filme, por sua vez, também obedece a uma série de procedimentos e convenções próprias, desde a concepção até a finalização do projeto. A definição da encenação representa uma parte importante desse processo, porque é neste momento que ficarão evidenciados alguns aspectos chaves a serem observados durante as filmagens. Xavier (2005) apresenta a conformação canônica do tratamento técnico dos roteiros durante o fazer fílmico: são divididos em sequências, marcadas pela função dramática ou por sua posição no enredo. Cada sequência é constituída de cenas, que, por sua vez, são dotadas de unidade espaço-temporal. A união das sequências no processo de montagem se dará de acordo com a proposta final a ser apresentada. O filme Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos, que analisaremos neste artigo, segue este modelo. Midialidades Julio Plaza (1987) considera que os fenômenos de interação semiótica (colagem, montagem, interferência, apropriação etc.) entre - 306 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 linguagens diversas “dizem respeito às relações tradutoras intersemióticas mas não se confundem com elas” (PLAZA, 1987, p. 12). Com efeito, a ideia de tradução intersemiótica apresentada pelo autor é bastante mais ampla: recupera o estudo dos signos proposto por Peirce e pressupõe uma série de processos compreendidos de diversas formas, seja como reflexão sobre os próprios signos, como intercurso de sentidos, como transcriação de formas etc. As diferentes modalidades artísticas, para Kattenbelt (2008) outros autores, são indissociáveis de seus processos de midialidade. Logo, arte e mídia não são observadas pelo autor distintamente, mas, ao contrário, as artes são vistas como tipos de mídia – concepção que também adotamos em nosso estudo. No que diz respeito à sua interação, Moser (2006, p. 63) especifica que a relação básica entre arte e mídia é uma relação de implicação que, no nível da manifestação e percepção, se traduz frequentemente em uma “invisibilidade”, uma transparência da mídia na arte: a arte persegue seus próprios objetivos, apoiando-se no [...] alicerce midiático indispensável, que é, entretanto, frequentemente “esquecido” no ato de recepção. O autor ainda considera que o dispositivo de relação entre as artes permite conhecer a midialidade da arte, na medida em que se duplica em um dispositivo intermidial. Ao conectarmos a noção de arte aos processos criativos humanos, estabelecendo que, através dela, indivíduos se expressam em palavras, imagens e sons, de modo a compartilhar suas experiências e percepções a um público, entenderemos teatro e cinema como manifestações artísticas e mídias que apresentam diferenças estruturais e de linguagem, mas, também, similaridades. Essas características alteram o pensamento e o próprio fazer artístico, que passa a incorporar novos métodos, possibilidades e interações semióticas entre as artes em seus processos criativos. Para Kattenbelt (2008), no domínio do teatro, essa questão é particularmente evidente, vez que ele proporciona um espaço no qual diferentes artes podem se afetar - 307 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 profundamente. O autor também acredita que as inovações tecnológicas têm desempenhado papel importante no desenvolvimento e na interação entre as artes/mídias modernas e pós-modernas, de modo que o próprio processo histórico-evolutivo criou condições para que a questão das relações entre as mídias e suas modificações tivesse sua importância reconhecida como campo de estudo. Ao tratar desse tema com foco no teatro e na performance, Kattenbelt (2008) delimita, principalmente, três conceitos que podem ser utilizados, e que detalharemos a seguir. A multimidialidade acontece quando diversas mídias ocorrem em um mesmo objeto. A intermidialidade pressupõe que as mídias se relacionem, com mútuas influências entre elas. Por fim, a transmidialidade sugere mudança de mídia, transferência de um meio a outro. Essas concepções operam em diversos níveis, que nem sempre podem ser distinguidos explicitamente um do outro. Também não se excluem, de modo que pode haver a ocorrência de mais de um tipo em uma mesma relação. O conceito de transmidialidade, como dissemos, é usado nas teorias de arte e comunicação, principalmente, para se referir à mudança (transposição, tradução etc.) de um meio a outro. Essa transferência pode se dar com relação ao conteúdo (o que é representado, a história) ou com relação à forma (princípios de construção, procedimentos estilísticos, convenções estéticas etc.). No primeiro nível, o conceito de transmidialidade se refere, em particular, àquelas características do meio original que se perdem no processo de transposição. Filmes baseados em espetáculos teatrais, por exemplo, são transposições de histórias, mas não levam em conta todas as características literárias específicas da narração original. Com relação à forma, a transmidialidade retoma ou imita princípios de representação de outro meio. Nas primeiras décadas do século XX, muitos filmes eram “teatros filmados”, apropriavam-se dos métodos de representação do teatro, com totalidade espacial e invariabilidade de distância e perspectiva. As possibilidades divergentes da linguagem - 308 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 cinematográfica – mais amplas, neste caso –, começam a se desenvolver quando esse paradigma é rompido. O acesso ou imitação dos métodos de representação de um meio por outro também pode ter uma função específica de intertextualidade – um meio se refere a outro. Para Simanowski (2006, apud KATTENBELT, 2008), o conceito de transmidialidade enfatiza, em particular, o processo de transição da mídia fonte à mídia de destino. Transmidialidade seria, então, “a mudança de um meio para outro meio como um evento constituído e condicionado por um fenômeno estético híbrido”. (SIMANOWSKI, 2006 apud KATTENBELT, 2008, p. 24, tradução nossa). Quando a transmidialidade é concebida como a representação de um meio por outro meio, se aproxima do conceito frequentemente utilizado de remediação, introduzido por Jay David Bolter e Richard Grusin (1996). Remediação, para os autores, é “a representação de um meio em outro” (BOLTER; GRUSIN, 1996, p. 339, tradução nossa). Há, para os autores, especificamente dois motivos que justificam o processo de remediação: tributo ou rivalidade. No primeiro caso, o novo meio imita o anterior colocando a si mesmo de lado. No segundo caso, o novo meio coloca o anterior em um novo contexto ou o absorve quase completamente. Esses dois motivos correspondem ao que os autores chamam de “lógica dupla” da remediação: mediação transparente, que pretende que o usuário esqueça o meio, ou hipermediação, que pretende que o usuário esteja ciente do meio67. No fim, essas duas lógicas estão conectadas e pretendem o mesmo: ultrapassar as restrições da representação para intensificar a experiência do “real”. 67 No campo do cinema, Xavier (2005) já havia explorado as noções de transparência, proveniente do cinema clássico, que pretende a ilusão do real sem que o espectador tenha noção do processo fílmico, e de opacidade, que pressupõe, a partir de um pensamento antirrealista, que a utilização dos artifícios cinematográficos possa estar clara diante do espectador. - 309 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A direção de atores no processo de transmidialidade ocorrido em Boca de Ouro (1963) Pereira (2015) aponta quatro etapas metodológicas para realizar uma análise de transposição das rubricas teatrais ao texto fílmico: referenciação; categorização e tipificação; classificação e atribuição de alvos – “a quem a rubrica diz respeito, isto é, qual é a personagem diretamente relacionada àquela rubrica – que agirá, reagirá ou será descrita por ela” (PEREIRA, 2015, p. 1475). A direção de atores é uma das categorias de rubricas, segundo Pereira (2015) – ver Quadro 1. Esta categoria reúne, no texto de Nelson Rodrigues (2012), 1.024 unidades de análise, 88% dos casos da peça de Rodrigues (2012), divididas em três tipos: Estado físico (373 unidades – 32%), Estado emocional (547 unidades – 47%) e Direcionamento da fala (104 unidades – 9%). Nessa categoria, aparecem os tipos de rubricas em que o autor indica, de alguma maneira, sugestões para que o encenador dirija os atores, no que diz respeito a movimentação ou pausa cênica, intenção e interação entre personagens, ritmo ou qualidade da fala, reação etc. Quadro 1 – Categorias e tipos de rubricas Categorias Tipos 1 Estado físico 1 Direção de atores 2 Estado emocional 3 Direcionamento da fala 4 Informação pessoal / cênica 2 Construção de personagens 5 Descrição física 6 Descrição psicológica 7 Indicação de cenário / objeto cênico 3 Indicações técnicas 8 Indicação de figurino / caracterização 9 Indicação de iluminação Fonte: Elaboração do autor. - 310 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O Tipo 1, Estado físico, abarca especificamente as rubricas em que são indicadas movimentações, pausas, posicionamentos, reações físicas a estímulos como falas, gestos e atitudes de outras personagens ou a situações cênicas, enfim, tudo aquilo que diz respeito a aspectos corporais do trabalho dos atores e ações físicas a serem desenvolvidas em cada cena. Na obra audiovisual, essas rubricas sofrem influência de movimentos ou posicionamentos de câmera, e dos tipos de planos utilizados – tanto no que se refere a enquadramento e ângulo das imagens quanto no que diz respeito à sua duração. O Tipo 2, Estado emocional, reúne as rubricas que indicam características das emoções das personagens, sejam essas emoções aquelas que acompanham a personagem constantemente ou as provocadas por alguma reação a um estímulo cênico, como uma provocação feita por outra personagem, o recebimento de uma nova informação etc. O estado emocional está diretamente conectado a aspectos da qualidade das falas e ações das personagens. Por exemplo: o ato de sorrir é uma ação física, mas quando há indicação de que a personagem deve sorrir “sordidamente”, passa a existir um qualificador da ação de sorrir. Neste caso, a rubrica seria tipificada com os tipos 1 e 2, porque há estado físico e, também, emocional. O estado emocional é registrado, no cinema, através da captação das nuances expressivas de cada ator e da intensidade de suas falas. Para tanto, costumam ser utilizados planos que favoreçam a percepção dessas nuances – até mesmo privilegiando os diálogos sobre as imagens, em alguns casos –, dando a carga dramática necessária a cada cena. O Tipo 3, Direcionamento da fala, compreende aquelas rubricas que dão detalhes acerca da interação entre as personagens, muito utilizadas quando há diálogos entre três ou mais personagens em cena, para que o encenador tenha clareza sobre a quem se direciona cada fala. Esse tipo de rubrica pode auxiliar o roteirista da obra audiovisual na construção do texto fílmico, informando como se processam os diálogos entre as personagens em cada cena. O direcionamento da fala sofre impacto direto quando há algum - 311 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 tipo de adaptação cênica para a obra cinematográfica que modifique ou exclua alguma personagem que estava presente em alguma cena do texto teatral. No Gráfico 1, é possível observar o comportamento de transposição das rubricas da Categoria Direção de atores e de todos os seus Tipos. Gráfico 1 – Rubricas da Categoria 1 e seus Tipos por classificação Fonte: Elaboração do autor. Analisando o Gráfico 1, observamos que, ao englobarmos a Categoria 1, Direção de atores, como um todo, temos, em 52% dos casos, a transposição das rubricas, em 45%, a não transposição, e, em 4% das ocasiões, a transposição parcial. O mesmo comportamento se verifica nos Tipos 2, Estado emocional, e 3, Direcionamento da fala. Contudo, ao analisarmos o Tipo 1, Estado físico, em separado, observamos que as não transposições (47%) superam as transposições (45%). Chama a atenção, ainda, no Gráfico 1, o fato de que o Tipo 1, Estado físico, apresenta um número de rubricas parcialmente transpostas (8%) consideravelmente aos demais Tipos e à sua própria Categoria. É possível notar, também, que o Tipo 3, Direcionamento da fala, apresenta uma discrepância de classificação maior do que os demais Tipos, com o maior - 312 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 percentual de rubricas transpostas (66%) entre todos os Tipos de sua Categoria. Considerações finais Se o texto lido deve estabelecer quem, com quem, porque e quando se fala, o texto encenado incorpora sinais extratextuais recebidos pelo espectador ao mesmo tempo em que os sinais contidos na literatura. Há, na relação do texto com a montagem, aspectos de autonomia ou dependência a serem verificados. Um texto dramático, durante a encenação, pode conter omissões, substituições, confusões e acréscimos em relação à obra literária. É preciso termos em conta, ainda, que a especificidade do texto dramático encontra-se em mutação, variando com cada momento histórico, cada prática dramatúrgica, com os critérios de dramaticidade, de teatralidade etc., de modo que um olhar contextual para a obra que se pesquisa é fundamental para caracterizar esses aspectos. Os diálogos, interações, representações e todo o processo cinematográfico, por sua vez, estão imersos em dois campos sensoriais distintos: o campo auditivo e o campo visual. Ao trabalhar com as fotografias em movimento, o cinema incorpora suas possibilidades e limites no que se refere à sua interpretação e significação. Na transposição da peça Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, para a obra fílmica de Nelson Pereira dos Santos, verificamos com clareza um processo de transmidialidade, principalmente no que se refere ao conteúdo, mas também com relação à forma. O comportamento das rubricas da categoria direção de atores para o filme Boca de Ouro (1963) demonstra que as ações físicas, quando comparadas aos estados emocionais e direcionamentos de fala, encontraram, no filme, menor espaço para transição, seja por impossibilidade da nova linguagem ou por escolhas de encenação adotadas na obra audiovisual. - 313 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Referências bibliográficas BOGATYREV, Petr. Os signos do teatro. IN: INGARDEN, R. et al. O signo teatral: a semiologia aplicada à arte dramática. Organização e tradução de Luiz Arthur Nunes [e outros]. Porto Alegre: Globo, 1977, p. 15-34. BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation. Configurations, v. 4, n. 3, p. 311-358, 1996. CAMPOS, Haroldo de. A operação do texto. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1976. INGARDEN, Roman. As funções da linguagem teatral. IN: ______ et al. O signo teatral: a semiologia aplicada à arte dramática. 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P&B). - 315 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O audiovisual como linguagem fundamental para o jornalismo multiplataforma Luciana Renó - Universidade Complutense de Madri Denis Renó - UNESP Jesus Vivar Flores - Universidad Complutense de Madrid Introdução As mudanças que envolvem o jornalismo contemporâneo colocam em estado de revisão diversos pontos da profissão, desde os processos de construção da opinião pública por parte do leitor/usuário até a configuração das redações e as funções nela definidas. Esse novo cenário oferece uma nova visão sobre a formação básica do profissional de notícia e provoca a mudança de filosofias tradicionais do jornalismo, como a exclusividade do exercício da atividade por jornalistas formados. Essas mudanças envolvem, basicamente, o surgimento de tecnologias e narrativas que definem novos formatos e processos de representação da informação e busca por informações. Essas mudanças somam-se às novas plataformas de comunicação e aos dispositivos contemporâneos, interativos e móveis, e que exigem uma relação entre o conhecimento do conteúdo e o domínio da tecnologia. Uma das mudanças expressivas está no processo de levantamento e cruzamento de dados informativos – uma evolução do método RAC68 (Reportagem Assistida por Computador) –, resultante do desenvolvimento do fenômeno Big Data, onde dados limpos e sujos, presentes na internet, servem como fonte de análise, 68Conforme explica Nilson Lage (2003), o método RAC é uma prática jornalística que se aproxima das técnicas e das teorias da Engenharia da Computação, obrigando uma aproximação entre jornalistas e profissionais dessa área. - 316 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 interpretação e reconstrução da informação (RENÓ, FLORES, 2014). Esse método exige conhecimento sobre tecnologia da informação, especificamente sobre algoritmo. Outra mudança fundamental que podemos observar no campo da linguagem comunicacional contemporânea, que envolve não somente os tradicionais recursos hipermídia (denominado multimídia por algumas correntes mais conservadoras). Com o desenvolvimento das narrativas transmídia por parte dos cidadãos (RENÓ, 2014), essa linguagem ocupa um espaço cada vez mais fundamental nos processos midiáticos. Entretanto, para o desenvolvimento destes conteúdos torna-se necessária a presença de profissionais expertos em tecnologia para o desenvolvimento dos espaços multiplataforma. Entretanto, correntes conservadoras que estudam sobre jornalismo consideram fundamental que essas atividades sejam exclusivas para jornalistas graduados na profissão. O mesmo ponto-de-vista é defendido por jornalistas profissionais que, talvez em busca de uma reserva de mercado, ou pela defesa dos dogmas da profissão, recebem de maneira desconfiada profissionais oriundos de outras profissões nas redações. Trata-se, contudo, de atitudes incoerentes com as realidades expostas no parágrafo anterior, inevitáveis no mundo da notícia. Este artigo oferece uma discussão sobre as tendências da profissão e a necessidade de uma ampliação de funções dentro das redações. Essas mudanças, aliás, já estão sendo colocadas em prática por jornais dos Estados Unidos e da Inglaterra, e já começa a ser praticada no Brasil. O mesmo começa a ser percebido em programas universitários que buscam uma atualização de seus projetos pedagógicos e, em sintonia com o mercado, mesclam conhecimentos jornalísticos com teorias e técnicas de sistemas de informação. Para o desenvolvimento deste estudo, foram adotadas como metodologia a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental, assim como a observação empírica do mercado em si. Também foi adotada a observação participante na compreensão dessas mudanças, especificamente no que diz respeito à produção de conteúdos transmídia. A expectativa, com os - 317 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 resultados aqui apresentados, é que a relação profissional entre jornalistas e profissionais de tecnologia e de informática torne-se aceitável pelas correntes que atualmente não observam essa mistura com bons olhos. A redação tradicional Tradicionalmente, as redações são constituídas por uma equipe de jornalistas que, a partir de conceitos apoiados nas ciências sociais, desenvolvem suas atividades em busca da descoberta e da construção de conteúdos que representem a realidade observada, ou compilada. Essas equipes, diversas vezes compostas por jornalistas formados e por profissionais práticos (destacados na profissão, mesmo que sem formação na área), seguem técnicas que se aproximam da origem do jornalismo: a busca por informações diretamente com as fontes e/ou por documentos. Apesar disso, desde o surgimento da internet o contato com a notícia tornou-se mais distante. Surgiram os “jornalistas de gabinete”, que não saem de suas redações em busca de notícias porque consideram a internet como um canal eficaz na relação com as fontes, tendo como ferramenta aliada o telefone e, recentemente, o WhatsApp. Contudo, esses canais são relativamente confiáveis, tendo em vista que os níveis de interatividade (THOMPSON, 1998) oferecidos são limitados. Não podemos observar as deixas simbólicas presentes na fisionomia de quem fala. Sequer podemos ter certeza de que a pessoa responsável pela digitação do outro lado do telefone (por exemplo, no caso do WhatsApp) é a mesma com quem pensamos dialogar. Porém, os jornalistas seguem com esses métodos. Entretanto, com a popularização de dados abertos na internet, o jornalismo ganhou um novo aliado em sua prática profissional: o jornalismo de dados. Sandra Crucianelli, enquanto ministrava curso de jornalismo de dados na Fundação Knight Center, declarou considerar que na realidade jornalismo de dados é o mesmo que jornalismo de base de dados, mas adotase a denominação mais curta. Também defende que jornalismo de dados possui um pouco das características de outras modalidades de jornalismo, - 318 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 como jornalismo investigativo (pois adota técnicas próprias deste), o jornalismo de profundidade, o jornalismo de precisão e a reportagem assistida por computador. É quase sempre necessário analisar dados e utilizar planilhas de cálculos - o jornalismo analítico -, muito utilizado quando se trabalha com métodos analíticos para levar os dados a sistemas de informação geográfica. Além dessa mescla de “jornalismos”, também estão envolvidos no jornalismo de dados grandes volumes de informações e visualização interativa. Por isso, justifica-se o envolvimento de um profissional de tecnologia à equipe de jornalismo para desenvolver tarefas como extração de dados, depuração, aplicativos de notícias, entre outras atividades. Os produtos que podem resultar do trabalho do jornalismo de dados são ao menos quatro tipos: artigos baseados em dados, visualizações de dados interativos, conjunto de dados abertos e aplicações de notícias (News Apps). Essa possibilidade cognitiva é defendida por Manovich (2013, p.337) como epistemologia do software, ou seja, “quando o metameio informático e caracteriza por sua extensibilidade permanente”. Porém, apesar de possuir uma proximidade com a tecnologia, poucas redações aceitam a existência de profissionais especializados em tecnologia de processamento de dados em seus espaços profissionais. Essa defesa pelo espaço jornalístico era coerente num momento em que as notícias eram representadas por linguagens tradicionais e as técnicas de investigação e de cruzamento de dados limitavam-se ao contato visual, características que deixaram de ser uma máxima do jornalismo há praticamente 20 anos, com o surgimento da internet e a utilização da mesma como ferramenta de contato, fonte de informação e repositório de dados. Ainda assim, algumas redações insistem em defender a hegemonia de profissionais formados em jornalismo no exercício da atividade. A mais comum justificativa dessa defesa de espaço é apoiada no conhecimento específico do jornalismo – as técnicas na investigação e seleção de dados de interesse público, assim como os princípios éticos que regem a profissão. Obviamente, a observação dos dados é algo que deve ficar - 319 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 sob cuidados de profissionais que tenham conhecimento sobre esses princípios. Porém, as técnicas tradicionais já não apresentam eficácia com as possibilidades existentes atualmente. Os dados estão nas nuvens, na rede, circulando na internet (ou não, quando se trata de dado sujo). É preciso definir parâmetros e filtros para a busca dos dados e, por sua vez, o aproveitamento dos mesmos. Também é fundamental construir conteúdos que falem diretamente com a sociedade através de uma linguagem esperada por eles, e não uma construção de conteúdos com linguagens seculares que, nos dias de hoje, não oferecem resultados cognitivos. Ou seja, tornam-se ineficazes. Por essa razão, o jornalista deve dominar a produção de conteúdos multiplataforma, além de conviver com profissionais que conheçam tecnologias de construção de espaços digitais, especialmente direcionados a dispositivos móveis. Apesar desse cenário mutante, diversas correntes de jornalistas e acadêmicos encaram a profissão como uma atividade restrita ao jornalista. Porém, o jornalismo sempre foi interdisciplinar no fazer, no construir e no reproduzir. É uma atividade em equipe, com diversidade tecnológica e multiplicidade de linguagens. Por essa razão, não aceitar a diversidade profissional é uma incoerência dificilmente explicável. O algoritmo como ferramenta para a “big” investigação de dados Ainda que algoritmo seja algo relacionado a toda e qualquer tarefa esquematizada a ser realizada (como ocorre no jornalismo desde o seu surgimento), neste caso ele pode ser destinado especialmente à busca de informações na rede a partir dos conceitos de Big Data69. São tarefas executadas para busca e filtro de determinadas informações e, a partir disso, relaciona-las. Seguramente, jornalistas não possuem preparo e conhecimento técnico para tal atividade, e nessa condição outros profissionais ganham espaço nas redações. 69Popularizado em meados de 2013, o Big Data é um método de seleção, aproveitamento e reconstrução de informações disponíveis na nuvem da internet e que tem como proposta aproveitar os dados sujos e limpos. - 320 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Algoritmo é uma sequencia de passos ordenados de maneira lógica para execução de uma tarefa finita ou infinita. Basicamente, se trabalha com entrada(s), processamento e saída(s). Para que um computador possa desempenhar uma tarefa é necessário que esta seja bem detalhada, sem ambiguidades, um tempo de execução estabelecido e uma condição final como objetivo. Os profissionais da área de tecnologia possuem uma habilidade natural para desenvolvimento de raciocínio lógico, muito útil no desenvolvimento de um algoritmo, mesmo não sendo uma condicional para desenvolver este tipo de tarefa. A partir de um algoritmo bem elaborado, é possível que um profissional da área de tecnologia execute o desenvolvimento deste em linguagem de programação - linguagem que conversa com o computador. Assim, a tarefa será executada e será alcançado o objetivo desejado. Quanto mais refinados forem os parâmetros estabelecidos e determinados dentro do algoritmo para que este profissional o converta em programa, melhor será o resultado alcançado. No caso do Big Data, como o volume de dados é gigantesco – dados estruturados e não estruturados, variedade enorme e a velocidade maior ainda – unidade trina do Big Data, o algoritmo é útil para auxiliar no processamento de todo esta quantidade e variedade de informação. É possível utilizar palavras chaves, filtros, análise de acordo com o interesse e a busca feita. Devido à quantidade, variedade e velocidade das informações que estão disponíveis hoje, é necessário ter vários programas trabalhando concomitantes para se chegar ao objetivo. Claro que a análise final desse resultado obtido é fundamental para definir onde se pode utilizar a informação alcançada. Essa análise pode ser realizada em parceria entre o jornalista e o profissional de tecnologia, numa atividade interdisciplinar. - 321 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 As redações contemporâneas Esses novos modelos e ferramentas para a produção de notícias têm provocado mudanças na configuração de redações em diversos países, inclusive no Brasil, apesar do conservadorismo característico do jornalismo brasileiro. Essa nova composição resulta de novos formatos narrativos e tecnologias envolvidas nos processos renovados, além de estar indiretamente relacionada aos novos modelos de negócio. Neste sentido, o fazer jornalismo e o administrar meios complementam-se de alguma maneira, resultando em uma agilidade maior em busca de resultados. Por essa razão, importantes meios de comunicação, como o The New York Times, que conta com Arthur Ochs Sulzberger Jr., formado em Ciências Políticas na Universidade de Tufts, Massachusetts (E.U.A.), como editor. Na posição de Diretor Executivo, o jornal conta com a colaboração de Dean Baquet, que estudou jornalismo na Universidade de Columbia, mas desistiu de continuar no curso. Seguindo nessa linha, diversas universidades norte-americanas buscam mesclar disciplinas sobre elaboração de algoritmos e/ou programação de base de dados nos programas de formação de jornalistas. A Universidade de Columbia criou, em 2014, um mestrado em comunicação que conta com diversas linhas de pesquisa e disciplinas sobre o tema, o que reflete essa demanda e uma necessidade de melhor capacitação dos novos jornalistas. Preocupado em observar o jornalismo e suas transformações como prática e negócio, Jesús Flores (2014) apresenta um perfil dos profissionais da redação contemporânea. Em seu estudo, além de observar as redações e suas novas configurações, Flores indaga sobre o comportamento dos meios e transparece uma preocupação sobre o futuro dos profissionais tradicionais. Segundo o autor: Diferentes perfis profissionais são descritos e analisados por especialistas e estudiosos na evolução do jornalismo, fato que demonstra como os meios estão adaptando-se aos novos entornos, já que se não o fazem - 322 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 correm o risco de, simplesmente, desaparecer do espaço midiático. Mas, como formar jornalistas multimídia para redações integradas? (FLORES, 2014, p.89) O autor defende que “os jornais deixam de ser empresas jornalísticas para converterem-se em organizações de notícias (de Newspapers a News Organizations) com novos desafios, adotando novas formas narrativas e desenvolvendo novas formas de fazer negócio” (FLORES, 2014, p.90). Essas novas narrativas, que caminham entre um hipermídia avançado a uma narrativa transmídia (RENÓ, 2014), exigem uma aproximação conceitual entre o jornalista e o profissional de tecnologia da informação. Essa aproximação pode existir com a configuração de uma redação interdisciplinar ou a partir da formação acadêmica com currículos renovados, onde conteúdos das duas áreas (jornalismo e tecnologia da informação) sejam ensinados aos novos profissionais. O que está claro é que deve-se preparar para uma reformulação na atividade jornalística, como já pode ser observado em diversos meios. Segundo Alberto Cairo (apud FLORES, 2014, p.101), “algumas redações se reorganizam já para um futuro em que os dados se transformarão em um meio e em que as técnicas narrativas tradicionais se fundirão com apresentações interativas complexas”. Em realidade, essas mudanças já vinham sendo proteladas desde o surgimento da internet. Talvez por essa razão o jornalismo é a atividade comunicacional que apresenta o desenvolvimento mais tardio, frente a outras atividades, como a publicidade, a ficção e a educação. Porém, as universidades já observam uma necessidade de melhora neste sentido e começam a construir projetos pedagógicos que apontem para uma interdisciplinaridade voltada também à tecnologia, e não somente às ciências sociais. Segundo Flores (2014, p.106), essa preocupação já chegou a diversas universidades, incluindo as mais tradicionais: Ernest Sotomayor, assistente do decano dos serviços profissionais da Escola de Graduação de Jornalismo da Universidade de Columbia, - 323 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 menciona que todos os estudantes de seu programa do mestrado profissional em Ciência da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia se graduam com destrezas multimídia básicas. Ainda, segundo o autor, “para Eldra Gillman, diretora de contratações e Educação da CBS Corp., qualquer estudante com destrezas tecnológicas se encontra muito acima de quem necessita treinamento” (FLORES, 2014, p.106). Obviamente, esse é o retrato do mercado que, alinhado com a universidade, está promovendo uma modificação no perfil das principais redações contemporâneas. Entretanto, algumas correntes mercadológica e acadêmicas insistem em um conservadorismo no que diz respeito à configuração das redações jornalísticas. Segundo, Luciano Martins Costa, jornalista e colunista do portal Observatório da Imprensa, a notícia não está mais nas mãos das empresas de jornalismo. Para ele, “o domínio de empresas de tecnologia na produção e distribuição de conteúdo informativo e opinativo está criando uma nova esfera pública, cujos controladores não estão preocupados com a transparência e ética”70. Porém, vale questionar se as empresas de jornalismo estão preocupadas com a transparência e ética, dado alguns exemplos recentes da imprensa brasileira (entrevista com a presidente Dilma Rousseff na eleição presidencial de 2014 pelo Jornal Nacional, ou a edição da revista Veja, edição 2.397 de 24 de outubro de 2014, entre outros casos). O medo manifestado no artigo de Costa refere-se à decisão sobre o que é ou não notícia, assim como a maneira com ela deve ser destacada, tudo a partir de conceitos de algoritmo. Porém, tanto Costa como os autores que o mesmo faz referência no artigo se equivocam ao pensar que a proposta de adotar profissionais de tecnologia da informação nas redações não está limitada à criação de algoritmos capazes de escolher e destacar notícias, mas na possibilidade de tais profissionais atuarem em conjunto com jornalistas, preparados para a seleção e análise do que é notícia ou não. Trata-se de um 70Disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_novo_sistema_de_poder. Acessado em 13/01/2015. - 324 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 trabalho coletivo, onde cada um faz o que melhor sabe fazer, a partir de seu preparo de formação. Tal parceria profissional já é destacada em outras áreas do conhecimento, como na medicina. O jornalismo, por sua importância social, será amplamente beneficiado com essa inevitável união. Resultados da união de conhecimentos A união dessas áreas de conhecimento para a formatação das redações contemporâneas torna-se fundamental pelo desenvolvimento tecnológico e a relação criada entre as atividades para a produção de notícias, tanto no processo de pesquisa/investigação como na confecção dos espaços midiáticos e seus respectivos conteúdos. Trata-se de uma reformulação de atividades e valores, assim como um ajuste espacial onde profissionais de ambas as profissões compartilham importâncias nos processos. Porém, algumas dificuldades ainda são encontradas para que tal condição torne-se realidade. A primeira delas é a própria aceitação por parte dos profissionais do jornalismo, acostumados a uma homogeneidade nos seus guetos profissionais. Além disso, torna-se necessária uma modificação de conduta de alguns profissionais de tecnologia, acostumados a conviver de maneira quase autista com seus companheiros de trabalho, talvez por ser um campo profissional onde o trabalho é fracionado e repartido, sendo executado de maneira solitária, ainda que complementar à tarefa do outro. Trata-se de construir uma convivência de respeito mútuo, além de uma melhor divisão de tarefas com base no comprometimento de equipe. Tais resultados já são vistos em diversos conteúdos jornalísticos produzidos pela imprensa nacional e internacional. Nessas publicações, a convivência entre ambos os setores foi necessária não somente na produção, mas também no projeto das mesmas. Um primeiro exemplo pode ser visto na reportagem produzida pela Folha Online (Brasil) sobre a Usina de Belo Monte. O conteúdo, disponibilizado para todas as plataformas digitais, reuniu vídeo, texto, foto, áudio, infográfico e videojogo em um único espaço, - 325 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 todos eles de teor informativo e em tecnologia acessível por dispositivos móveis, além de computadores. Imagem 1: Entrada da reportagem sobre a Usina de Belo Monte. Imagem 2: Videojogo disponível na reportagem com informações gráficas animadas. - 326 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A produção do conteúdo foi realizada totalmente através do compartilhamento de tarefas entre profissionais do jornalismo (na busca pela informação) e profissionais de tecnologia (na confecção dos espaços midiáticos). Além disso, o momento de planejamento da reportagem foi realizado pelos dois profissionais, tanto para pensar nas possibilidades como para avaliar as dificuldades que seriam encontradas no campo jornalístico e tecnológico. Como exemplo internacional, podemos destacar a série Spot the ball, produzida pelo The New York Times durante a Copa do Mundo do Brasil, em 2014. Na ocasião, o grupo de jornalismo do jornal trabalho em contato direto com a equipe de tecnologia para preparar um modelo interativo e não linear de construção da opinião pública, neste caso sobre futebol. Os resumos das partidas eram oferecidas rodada a rodada através de possibilidades gamificadas, além de informativas. Imagem 3: Entrada da série Spot the ball, do The New York Times. Com uma atividade sugerida no próprio título, o desafio era encontrar a bola de futebol nas cenas registradas a partir de fotografias. Após - 327 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 a tentativa, apareciam na cena todas as outras tentativas de usuários participantes. Imagem 4: Imagem sem a bola para que o leitor/usuário/jogador adivinhasse sua posição correta na cena. Cada uma das imagens enigmáticas era direcionada a uma reportagem sobre o jogo em questão, onde o leitor/usuário/jogador tinha a possibilidade de observar, em cada uma delas, um formato de conteúdo. As possibilidades narrativas oferecidas variavam desde textos convencionais a animações e esquemas táticos do jogo, de acordo com o conteúdo que seria abordado. - 328 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Imagem 5: Reportagem sobre jogo na série Spot the ball. Esses exemplos, que não são isolados nem únicos, tornam-se uma cena frequente no jornalismo contemporâneo. Resultam da cumplicidade profissional entre duas atividades profissionais para um mesmo fim – traduzir acontecimentos para os cidadãos contemporâneos de maneira cognitiva – e abrem espaço para uma nova realidade nas redações, onde a linguagem escrita é compartilhada com códigos binários. Conclusões O jornalismo está vivendo uma expressiva modificação. Esses câmbios ocorrem não somente fora da redação, mas também dentro dos espaços profissionais. E não acontecem somente no Brasil, onde a profissão deixou de exigir o diploma no começo do século atual, mas também em outros países, onde a exigência do diploma nunca existiu. Mudou-se a maneira de construir o discurso jornalístico. Mudou-se a linguagem. Mudou-se a configuração da própria redação. - 329 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Porém, essa mudança deve vir acompanhada de uma conscientização profissional e de uma aceitação às mudanças, especialmente por parte dos jornalistas, acostumados a trabalhar de maneira exclusiva: Os profissionais de tecnologia também devem modificar a maneira como trabalham, passando a aceitar olhares pelo ângulo do usuário e em busca da acessibilidade, mesmo que isso pareça ser um obstáculo à facilidade de programação. Entretanto, essas mudanças são inevitáveis e naturais. O cidadão contemporâneo já traz em si essas habilidades – a digital e a narrativa -, o que obriga a atividade a se ajustar. O crescente desenvolvimento de aplicativos que proporcionam a programação de aplicativos e páginas web, assim como a produção de conteúdos hipermidiáticos, já possibilita o desenvolvimento de espaços digitais de caráter informativo por cidadãos comuns. E mais: com possibilidades narrativas que se aproximam do videojogo e do entretenimento acompanhado de informação, ou “infotretenimento” (AMÉRICO, VIEIRA, SOTTOVIA, 2014, p.126), esses conteúdos passam a competir de maneira desigual com as tradicionais plataformas informativas. Por fim, consideramos que essas mudanças são inevitáveis e deveriam acontecer diretamente nas salas de aula, não somente com a criação de disciplinas para cursos de jornalismo que tivessem como discussão a tecnologia, mas também a partir de uma formação do corpo docente, onde tais disciplinas ficassem sob responsabilidade de profissionais de tecnologia, assim como uma construção de atividades interdisciplinares com outras disciplinas estritamente jornalísticas que precisam de um upgrade experimental para o campo binário. Trata-se de uma inevitável transformação do jornalismo, e não uma impressão apocalíptica de fim ou perda de controle, como aponta Costa (2014), entre outros acadêmicos mais conservadores. Transformação essa que já está posta em prática, e sobreviverão as redações que colocarem em prática tal revolução, como já ocorre em outras atividades profissionais, como a agronomia, a medicina e as artes visuais. - 330 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Bibliografia AMERICO, Marcos; VIEIRA, Eloiza; SOTTOVIA, Angelo. Realidade interativa: protótipo de telejornal interativo para TV Digital baseado no conceito de infotretenimento. Revista Trampas de la Comunicación y la cultura. Edição 77, nov/2013-fev/2014. Disponível em http://www.revistatrampas.com.ar/2014/10/realidade-interativa-prototipo-de.html. Acessado em 23/01/2015. COSTA, Luciano. O novo sistema do poder. Observatório da Imprensa, edição 827, 02/12/2014. Disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_novo_sistema_de_poder. Acessado em 13/01/2015. DADER, José Luis. Periodismo de precisión – vía socioinformática de descubrir notícias. Madrid: Síntesis, 1997. FLORES, Jesús. 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Petró polis: Vozes, 2003. - 331 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Cenários midiáticos: a juventude tecnológica e sua cultura convergente-digital na cidade de Bauru (SP-Brasil) Juliano Ferreira de Sousa - UNESP Maria Cristina Gobbi - UNESP Introdução O desenvolvimento tecnológico traz consigo alterações nos mais diversos campos da vida em sociedade. Nota-se, assim, que alguns comportamentos, que estiveram presentes na utilização das mídias em décadas anteriores, têm sofrido mudanças e começam a perder força nas camadas mais jovens; principalmente a partir do fortalecimento da internet como ferramenta cotidiana. Os jovens digitais criam uma vanguarda, que vem transformando as relações entre comunicação, produção/recepção e uso/consumo de bens midiático-culturais. Os meios analógicos, como o rádio e a televisão, demandavam um comportamento de passividade e de recepção propriamente dita. Hoje, a realidade das 'redes conectadas' altera esse panorama, principalmente quando observamos a "cultura participativa" alimentada por esses jovens (JENKINS, 2008). Esse comportamento é demonstrado tanto ao interagir com as mídias - comentar, reclamar, curtir, compartilhar em tempo real - quanto ao conversar com seus pares ou produzir conteúdos nos mais diversos espaços online ou digitais. Pensando nesse contexto, essa familiaridade com o uso das tecnologias digitais é mais observada em segmentos mais jovens da população. Essa é uma parcela dos jovens brasileiros que cresceram - 332 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 acompanhando o desenvolvimento da informática e o fortalecimento da internet ou que assimilaram fortemente essas tendências no fim da adolescência ou no início da vida "adulta". Com o passar dos anos, essas tecnologias foram ganhando espaço não só entre as elites financeiras, mas também nas camadas médias da sociedade e isso refletiu claramente no comportamento dessas juventudes. É sobre esse jovem e seu consumo digital que vamos falar. O foco central das análises é nesse segmento que faz uso das mídias digitais. Investigamos a essência de expressões como "Geração Internet71", "juventude conectada", "Geração Y", "juventude digital", etc. Mirando em uma parte dos jovens da cidade de Bauru (SP), observamos os contextos culturais, comunicativos e tecnológicos, e amparamos as análises conjuntamente com os dados midiático-digitais obtidos por meio de pesquisa teórica e empírica. A pesquisa buscou verificar o comportamento midiático-digital de jovens residentes em Bauru (SP). Foram feitas 31 questões, fechadas e abertas, que mapearam também as sociabilidades estabelecidas. Analisamos os dados oriundos 250 questionários [quanti e qualitativo], desenvolvido a partir do referencial teórico levantado, buscando mapear as práticas de uso, de consumo eas interações estabelecidas; a partir dos contextos tecnológicodigitais, a que parte considerável dessas juventudes está exposta. Os resultados foram expostos em três faixas etárias: 15 a 18 anos, 19 a 24 anos e de 25 a 29 anos. Como corpus para a análise dos dados empíricos do estudo, escolhemos os jovens que utilizam a internet e interagem no espaço digital. Para isso, o questionário foi aplicado via plataforma online (Google Formulários) e divulgado majoritariamente em mídias sociais, por meio de grupos de jovens no Whattsapp e, principalmente, em grupos juvenis no 71 Do norte-americano Don Tapscott (2010). - 333 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Facebook da cidade de Bauru. Porém, é importante ressaltar que divulgação oral e por meio de cartazes também foi realizada em locais de concentrações juvenis, como escolas e o campus da Unesp de Bauru, objetivando a diversificação dos jovens participantes. Os limites etários escolhidos para a nossa pesquisa estão diretamente relacionados à própria ideia regulamentada pelo Estado. Selecionamos como corpus de análise os jovens na faixa etária de 15 a 29 anos, limite estabelecido pelo Estatuto da Juventude 72 (2013) - além de ser a faixa etária média (nascida do final dos anos 1980 ao início dos anos 2000) que tem a sua infância e adolescência concomitante ao surgimento e o gradual fortalecimento das tecnologias digitais e da internet no país. Juventudes e Mídias Gobbi (2012) defende que as pesquisas devem levar em conta a diversidade da juventude, sem generalizações. "Defendemos que não há só uma juventude, mas juventudes. Não um jovem, mas jovens" (GOBBI, 2012, p.14). Sendo válido, assim, estudar os mais diversos aspectos desses grupos, pensando neles como protagonistas sociais, em agrupamentos diversos, cada um em uma determinada realidade. Os aspectos socioculturais são importantes e devem ser considerados, principalmente em ambientes como os latino-americanos. Tapscott (2010) define a chamada Geração Y, Geração Internet ou Geração Millenium (1977-1997), que seriam os jovens que puderam crescer com a expansão das redes e dos dispositivos digitais. "Se você observar nos últimos 20 anos, ficará claro que a mudança mais significativa que afetou a juventude foi a ascensão do computador, da internet e de outras tecnologias digitais. É por isso que chamo os jovens desse período de Geração Internet" (TAPSCOTT, 2010, p.28). 72 Estatuto da Juventude (2013): http://www.planalto.gov.br/ccivil 03/ Ato2011-2014/2013/Lei/L12852.htm, acesso em fevereiro 2015. - 334 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Os membros dessa geração tiveram acesso à rede em ritmos variados, devido às diferenças sociais e geográficas existentes. Mas são eles a 'geração' que cresce com a ascensão e afirmação dessa mídia, da mesma maneira que os boomers passaram aos poucos a utilizar a televisão, no século XX. Comparando-se com as outras gerações, assimilam a tecnologia de maneira muito mais rápida, pois cresceram junto com todo esse movimento, mudando os padrões de consumo e criando culturas digitais, valorizando a internet e mergulhando em redes sociais. Ao crescerem, as crianças da 'Geração Internet' olhavam para os computadores da mesma maneira que os 'baby boomers' olhavam para uma tevê. Nós baby boomers não ficamos maravilhados com a tecnologia ou nos perguntamos como a televisão transfere vídeo e áudio através do ar, simplesmente assistimos ao que está na tela. A televisão é um fato da vida. O mesmo aconteceu com a Geração Internet e os computadores. E, à medida que a tecnologia evolui implacavelmente a cada mês, os jovens simplesmente a absorvem, como se fossem melhorias na atmosfera (TAPSCOTT, 2010, p.31) O autor destaca a Geração Z, que nascem [nos EUA] a partir de 1998 e que tem verdadeiro domínio dos meios digitais. É a geração em que as redes online são realidade. Eles crescem com a internet já sendo consolidada, e com a considerável expansão das novas tecnologias da informação e comunicação. Desde pequenos, tem brincado e interagido, principalmente com dispositivos móveis, além de entender o funcionamento dos mais diversos tipos de telas. Muitos membros das duas últimas gerações veem o mundo online como uma extensão clara do mundo real. Para eles, é natural que as relações interpessoais sejam mediadas por essas tecnologias. Têm elevada capacidade de assimilação, interação e convivência digital, revolucionando as relações midiáticas contemporâneas (TAPSCOTT, 2010). Sem dúvida, todo esse panorama muda até mesmo a forma com que interagem com a cultura ou utilizam as mídias como lazer. - 335 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Trazendo as reflexões anteriores para a realidade brasileira, é evidente que as datas propostas para as separações geracionais de Tapscott (2010) nãocoincidem exatamente com a realidade brasileira. Da mesma maneira, a velocidade com que as tecnologias analógicas [nas décadas anteriores] e digitais [atualmente] ganharam espaço no país é diferente; visto que as lógicas das regionalidades, de renda e de desenvolvimento econômico apresentam características próprias do cenário latino-americano. De acordo com a visão de Martín-Barbero (2008), embora possamos nos inspirar em realidades externas (no caso, norte-americanas), a apropriação e a transposição total de teorias não são adequadas, pois as próprias organizações geracionais e as ideias de juventude são dotadas por outras configurações na América Latina. Desta forma, serão observadas [sem generalizações] os jovens de Bauru (SP) - que são brasileiros e latinoamericanos. É válido ressaltar que o cenário atual mostra que as relações que esses jovens atuais estabelecem com as mídias e com a própria recepção de bens culturais é diferente da forma que seus pais e avós assimilavam. É nesse cenário de múltiplas possibilidades, onde o real e o virtual parecem não ter mais fronteiras, que se faz importante refletir um pouco mais sobre esses contextos. Diferente das outras gerações, que observavam meios impressos, radiofônicos e televisivos como espectador basicamente passivo, a nova geração quer comentar, curtir, modificar, fazer uma releitura, divulgar e interagir - mesmo que, às vezes, de maneira incipiente - com os criadores e curadores dos conteúdos. Resultados da Pesquisa Empírica Iniciamos a reflexão buscando frequência/intensidade de uso dos mais diversos aparatos midiáticos e mídias, dando liberdade para que os - 336 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 respondentes selecionassem apenas dos cinco mais importantes73. Para isso, as opções foram: 'várias vezes ao dia', 'diário', 'semanal', 'mensal' e 'raramente'. Vale frisar que, caso quisessem assinalar mais opções [por se identificarem com mais itens], os resultados não seriam prejudicados, pois o que analisamos foi a quantidade total de seleções em cada tipo de meio, veículo e/ou mídia. Os dados obtidos pelas questões iniciais foram interessantes, pois houve um total predomínio das mídias digitais e da internet sobre todas as outras mídias propostas. Embora a reflexão teórica e as impressões dos pesquisadores já apontassem para uma participação efetiva das tecnologias e mídias digitais, os resultados corroboraram o forte uso desse tipo de plataformas e ambientes midiáticos. As duas opções que tiveram mais destaque foram a internet e as redes sociais. Outras opções foram: celulares, smartphones e aplicativos em geral. As mídias analógicas tiveram pouquíssimo apelo, com destaque para a televisão fechada, que, dentre elas, foi a mais citada. A televisão aberta apareceu logo após, seguida de muito longe por jornais e revistas. Levando em conta todo o público de 15 a 29 anos - e totalizando exatamente 250 respostas - 176 pessoas (81,9%) assinalaram a internet e afirmaram utilizá-la várias vezes ao dia e outras 31 (14,4%) fazem uso diário. Dos que a escolheram, apenas seis afirmaram usar semanalmente e duas, raramente. Podemos observar que as posições que ficaram mais bem colocadas também estão relacionadas ao mundo digital e à própria internet, sendo indissociáveis, em muitas vezes. As redes sociais, com um altíssimo número de escolhas, totalizaram 169 jovens (81,3%) com a alternativa "várias vezes ao dia", 34 (16,3%) diariamente e cinco deles, semanalmente. É muito importante ressaltar que absolutamente ninguém acabou escolhendo as opções "mensal" e "raramente". Ainda, 156 entrevistados afirmaram utilizar 73 Detalhamento de todas as questões tá no Questionário Proposto "Perfil midiático-digital do jovem de Bauru-SP (ANEXO 01). - 337 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 o celular várias vezes ao dia. Pensando na mesma frequência de uso, outras 130 escolheram a opção smartphone e 114 aplicativos em geral. Quanto às mídias ditas tradicionais, um fato curioso pode ser notado. No perfil de jovens atingidos pela pesquisa, a televisão fechada, a cabo ou via satélite, foi mais citada do que a própria televisão aberta. Em relação à televisão fechada, houve uma notória distribuição entre as alternativas de intensidade do uso. Tivemos um total de 156 respostas, mas 27 delas marcavam a opção "raramente". Apenas 28 (17,9% do total de pessoas que assinalaram a opção) escolheram "várias vezes ao dia" e outras 57 (36,5%) fazem o uso diário. Na televisão aberta, a tendência de distribuição também aconteceu, mas a quantidade de pessoas que escolheram esta mídia foi ainda menor. São 142 respostas, mas 47 delas estão na opção "raramente". Apenas 18 (12,7% dos que assinalaram a opção) afirmam utilizar "várias vezes ao dia" e outras 42 (29,6%) fazem uso "diário". Notamos, portanto, que proporcionalmente a televisão paga é mais procurada que a própria TV aberta. Isso se fortalece, provavelmente, pela maior demanda de conteúdos, maior segmentação e pela flexibilização da programação com os conteúdos on-demand. Evidentemente, que o público da pesquisa ser majoritariamente de classe média e o fato de existir diversas opções de operadoras de TV fechada na cidade de Bauru também são fatores decisivos neste contexto. As tabelas a seguir detalham as análises, nas faixas etárias consideradas, buscando evidenciar possíveis diferenças ou similaridades. Sendo assim, a Tabela 1 diz respeito às respostas dos mais novos (que totalizaram 114 participações ao todo). - 338 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Notamos que, assim como nas análises gerais, há uma surpreendente predominância das mídias digitais. Os números são ainda mais enfáticos, visto que nas opções internet e redes sociais, ninguém assinalou as alternativas "mensal" e "raramente". Além disso, apenas 15 jovens dessa faixa etária não escolheram a internet como prioridade e 20 deles não selecionaram as redes sociais online. Interessante frisar que, diferentemente da quantidade considerável que selecionou as opções celulares e smartphones, o uso de tablets é muito baixo, visto que 21 utilizam raramente e 73 não o consideram como prioritário (94 pessoas das 114 respostas dessa faixa etária). Como veremos em outras tabelas, essa é uma tendência de todas as faixas etárias. Notamos que os fenômenos apontados até agora neste tópico são todos confirmados pelo gráfico anterior. A grande maioria dos meios, veículos ou mídias que tem uso diário estão relacionados às tecnologias - 339 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 digitais e à internet. A imersão na lógica midiático-digital é nítida nestes jovens e o enfraquecimento de mídias tradicionais como a televisão e o rádio é perceptível, surgindo novos modelos de uso e consumo. Dado que não pode ser desprezado é a pouca importância que as mídias impressas têm para esse público. De um total de 114 respostas dessa faixa etária, apenas uma afirmou fazer uso diário das revistas impressas e 13 uso semanal, enquanto 72 nem assinalaram essa opção. Os jornais impressos e a opção "gibis e outros meios impressos" seguem exatamente a mesma tendência, num evidente distanciamento desse grupo desta modalidade midiática. Como curiosidade, podemos notar que os jornais e revistas online são mais procurados que as publicações impressas de gênero semelhante. Dois dados chamaram a atenção. Os blogs, embora com resultados ainda tímidos, aparecem com apelo semelhante aos portais de notícia e aos jornais online, mostrando-se uma nova fonte de informação e entretenimento que tem ganhado espaço na rotina dos mais jovens. Além disso, de forma marcante, os videogames não apareceram entre as mídias mais utilizadas, justificado [nas questões abertas] pela expansão dos jogos online, via dispositivos móveis e/ou computadores. Dando sequência ao conjunto de análises proposto, buscando a ampliação das reflexões e o entendimento sobre outro recorte etário, a Tabela 2 [a seguir] mostra os dados do público que tem entre 19 e 24 anos. A quantidade total de respostas desta faixa etária é de 117, muito próximo do número de respondentes mais novos (114) e, na análise dos dados, percebemos que as diferenças são pouquíssimas entre ambas. - 340 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Assim como nos dados gerais, a quantidade de pessoas que deu destaque à internet, às redes sociais, aos celulares, aos smartphones e aos aplicativos é muito maior que os de qualquer outra mídia. Além disso, observamos a baixa adesão aos tablets, a baixíssima procura por publicações impressas e o pouco [quase irrisório] destaque dado ao rádio. Novamente, a procura pela televisão fechada é sutilmente superior à aberta e fica nítido que as mídias analógicas perdem força, mesmo neste recorte etário pouco mais velho. A televisão aberta, assim como nas idades anteriores, não é lembrada por grande parte dos jovens entrevistados. Apenas nove dizem consumi-la várias vezes ao dia e outras 19, o uso diário. Esse número é consideravelmente menor que a quantidade de pessoas que assinalaram a opção "meio não importante". A procura por jornais online tem números mais modestos, mas a busca por portais de notícia é bastante considerável. Dos 117 participantes - 341 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 desse recorte etário, 64 citaram esses portais, sendo que 25 deles afirmam utilizar várias vezes ao dia e outros 25, diariamente. Esses números são superiores a todos os outros meios tradicionalmente noticiosos, tanto impressos quanto online. Ampliando acaracterística vista entre os mais novos, o uso de blogs também atinge um número considerável, com nítida expansão em curso. Existe uma tendência de os computadores portáteis (notebooks) serem mais utilizados e mais citados que os computadores tradicionais [também observada nos dados totais e nos resultados dos respondentes mais novos]. Porém, a proporção e a frequência de uso dos dois tipos são maiores no público de 19 a 24 anos, visto que mais pessoas assinalaram/escolheram74 estas opções, além da mais expressiva quantidade de jovens que apontaram o uso várias vezes ao dia e diariamente. No último recorte etário, faixa dos 25 a 29 anos, foram ao todo 19 respostas. Mesmo sendo uma quantidade bem menor de informações em relação às demais idades, as mesmas tendências puderam ser constatadas. A Tabela 3 evidenciam de maneira mais clara essas realidades. 74 Para fazermos essa afirmação, levamos em conta a diferença de 3 respostas existes entre as duas faixas etárias. - 342 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Novamente, a tabela está em convergência com os dados totais e com os recortes etários anteriores. As tecnologias digitais concentram os usos mais frequentes e, sem dúvidas, se mostram as opções mais citadas. A internet é a mais lembrada, pois 15 dos 19 entrevistados afirmam utilizá-la várias vezes ao dia; seguida por redes sociais, aplicativos, celulares e smartphones. Além disso, as mídias impressas e o rádio são pouco lembrados. A TV não aparece entre os mais citados, existindo um equilíbrio entre as televisões paga e aberta, com uma sutil vantagem para a primeira. Analisando-se proporcionalmente, podemos observar uma utilização maior dos computadores, portáteis e fixos, até mesmo se comparado ao público de 19 a 24 anos. Os números de citações e a frequência de uso se equilibram nas opções "celular" e "smartphone" pela primeira vez. É evidente que isso pode ter influência da menor quantidade de respostas, mas também pode ser entendido como uma maior necessidade de utilização prática no dia-a-dia, no ambiente de trabalho ou para os estudos em geral. - 343 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Há uma forte tendência, que é reforçada em todas as faixas etárias, de uso e consumo das tecnologias e mídias digitais. Sem dúvidas, estes recursos estão totalmente inseridos na vida da grande maioria, em escalas e de formas diferentes. Além disso, pudemos perceber que as mídias, tradicionalmente dominantes em gerações anteriores, já não tem mais tanto apelo em nenhum dos três recortes. O telefone fixo, definitivamente, já não é prioridade. O mercado do impresso, o rádio e a própria televisão aberta não estiveram entre os grandes destaques, tanto em número de citações quanto em frequência de uso. Além disso, para os jovens aqui investigados, a televisão fechada mostrou-se com números tímidos, mas em relativo fortalecimento; visto que já superou os canais abertos. Outras análises e Considerações Finais Propusemos a pergunta aberta com a seguinte descrição: "Escolha qual dos meios, veículos ou mídias citadas na questão acima você considera mais importante. Cite apenas um deles". Optamos por distribuir esses resultados por faixas etárias, para que fosse possível traçar as análises. O Gráfico 1 mostra as tendências constatadas. Gráfico 1 - Meios, veículos ou mídias mais importantes, por faixa etária - 344 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 - 345 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Os fenômenos observados no conjunto de questões anteriores são reforçados pelos dados do Gráfico 1. Percebemos que, para todas as faixas etárias analisadas, a internet é considerada a mídia mais importante. Esse resultado evidencia que são valorizados a conectividade e seus diversos possíveis usos. Novamente, notamos um grande domínio das mídias e tecnologias digitais, devido à baixíssima quantidade de jovens que indicaram mídias como televisão, jornais e revistas e ao fato de o rádio e outros meios analógicos nem terem sido citados como mais importantes. Os smartphones, celulares, computadores (móveis ou fixos) e as redes sociais apareceram nas posições seguintes, com considerável número de citações. De 15 a 18 anos, apenas cinco pessoas (de 114 - 4,7%) assinalaram alternativas que não estivessem relacionadas às lógicas digitais e/ou à internet. Tendência muito semelhante acontece na faixa etária de 19 a 24 anos, em que somente quatro respondentes (de 117 - 3,4%) fugiram desta tendência, dois assinalando o jornal impresso e dois a televisão. E, por fim, na faixa com menor quantidade de respostas, o fenômeno se repete. No grupo de 25 a 29 anos, dos 19 participantes, apenas um selecionou a televisão (5,2%) e os outros 18 apontaram alternativas ligadas aos aparelhos e mídias digitais, representando 94,8% sobre o grupo. Se por um lado a frequência de uso das mídias digitais é alta, o gráfico anterior comprovou que a importância delas na vida dos jovens participantes, de todos os recortes etários, também é muito marcante. Além disso, algumas tendências observadas nas análises [por faixa etária] dos gráficos de frequência de uso foram outra vez destacadas e valem ser debatidas. Novamente, há uma maior valorização dos smartphones, celulares e aplicativos na faixa mais nova (de 15 a 18 anos) e um maior destaque dado aos computadores em geral, principalmente portáteis, pelos dois outros grupos mais velhos. Isso, para Tapscott (2010), pode estar relacionado ao fato de os mais novos estarem sendo 'alfabetizados' digitalmente já na era dos mobiles e terem menos contato com ambientes de trabalho que demandam o uso de computadores. Já nas faixas mais velhas, embora haja grande apropriação de - 346 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 celulares e smartphones, as demandas acadêmicas e empresariais exigem maior interação com notebooks, netbooks e computadores diversos. A questão seguinte tratou de entender se este público utiliza [ou não] mais de um meio, veículo ou mídia ao mesmo tempo. Para isso, propusemos apenas as opções 'sim' ou 'não'; pedindo, a seguir, para quem respondeu de maneira afirmativa descrever quais são os aparatos midiáticos que são utilizados simultaneamente. Os resultados foram surpreendentes. De um total de 250respostas, tivemos 234 jovens (93,6%) que afirmaram fazer uso simultâneo de aparatos midiáticos e apenas 16 (6,4%) que disseram não ter este costume. Nitidamente, o predomínio de participantes que utilizam vários meios, veículos ou mídias ao mesmo tempo não é um fenômeno que se mostrou diretamente relacionado com a faixa etária. Os dados indicam que esta é uma tendência comportamental de uso e consumo dos três espaços de idade analisados. Nesse sentido, Vilches (2001) ressalta que os jovens da sociedade atual tendem a fazer várias atividades simultaneamente, principalmente no que diz respeito ao consumo midiático e à utilização de mídias e tecnologias digitais. Essa visão é comprovada pelas respostas abertas da questão "Cite quais meios de comunicação, veículos ou mídias que você mais utiliza de forma simultânea". Reforçando esse perfil digital que temos observado nos jovens aqui analisados, foi possível perceber que todos aqueles que responderam 'sim' na questão anterior acabaram citando alguma mídia ou tecnologia digital. As combinações se mostraram diversas. Em uma descrição mais qualitativa, podemos apontar algumas combinações mais recorrentes. São elas: entre a TV e os celulares/smartphones (ou aplicativos como o Snapchat e Whatsapp); e entre a TV e os usos diversos da internet e/ou computadores. Inclusive, nas três faixas etárias, quase não houve referências a outras mídias analógicas e impressas. Fato muito curioso é que, principalmente entre os jovens de 15 a 18 anos, alguns fizeram combinações entre aparatos digitais diferentes, como - 347 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 "computador e Whatsapp", "celular e computador" ou ainda "smartphone e internet". É um momento oportuno para trazermos uma hipótese que se fortaleceu ao longo das análises. Fica nítido que a utilização de aplicativos e das redes sociais online para a interação interpessoal é extremamente forte, sendo, talvez, uma das mais importantes utilizações simultâneas de mídia. Percebemos que boa parte dos jovens que responderam à questão anterior acabou falando de canais online de interação com os amigos, como o Whatsapp, o Facebook e o Snapchat75. Tais discussões vão ao encontro do que Tapscott (2010) e Palfrey e Gasser (2012) defendem, pois os autores ressaltam a criação de canais de interação e de influência entre os mais diversos tipos de jovens. Seria uma lógica de comunicação contínua entre os pares, mediada por canais existentes na internet, nos mobiles e nas redes sociais online. A televisão, embora não apareça entre as principais mídias, em outras respostas abertas pôde-se perceber que muitos jovens a utilizam como "companhia" ou "plano de fundo" para diversas atividades digitais. Outra discussão bastante interessante, baseada em Tapscott (2010), é a de que os jovens, principalmente os mais novos, são tão habituados à realidade digital que, dificilmente, conseguem observar que várias ações realizadas de seus smartphones e celulares utilizam a internet para acontecer. Esse tipo de confusão também acontece quando falamos das redes sociais online. Sendo assim, durante todo questionário, foram pensadas cuidadosamente estratégias para que os mais diversos meios, veículos e mídias digitais 75 Aplicativo com a finalidade de postagem e envoi de fotos espontâneas para amigos, familiares e desconhecidos. - 348 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 estivessem presentes, satisfazendo às diversas necessidades dos respondentes - e, claro, dos pesquisadores. Referências: GOBBI, Maria Cristina. Na trilha juvenil da mídia: Dos suplementos teen para as tecnologias digitais. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. 145 p. GOBBI, Maria Cristina. Nativos Digitais na sociedade tecnológica: desafios para o século XXI. In: Revista Argentina de Estudios de Juventud. pg. 1-10, fev. 2012. GOBBI, Maria Cristina. Nativos Digitais: autores na sociedade tecnológica. In: GOBBI, Maria Cristina; KERBAUY, Maria Teresa Miceli (Orgs). TV Digital: informação e conhecimento. São Paulo: Ed. Cultura Acadêmica, 2010. JENKINS, Henry. 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Loyola, 2001. - 349 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Apontamentos sobre jornalismo de dados e a importância da transparência Lucas Vieira de Araujo – UMESP Introdução A ampla difusão e disseminação das mídias digitais, aliada a fatores como novas tecnologias, tem criado a impressão de que a comunicação realizada por intermédio de máquinas vive um momento único. No caso do jornalismo, percebe-se grande entusiasmo com a possibilidade de realizar reportagens utilizando-se de programas que realizam prospecção e seleção de dados e ainda ferramentas que prometem a integração entre dispositivos móveis e fixos, como aplicativos. Esse novo instrumental é chamado, mormente, de jornalismo de dados ou jornalismo digital, o qual seria uma nova técnica de produção de notícias a partir da grande quantidade de informação presente na rede de computadores, principalmente na internet (GRAY et al, 2012; BARLOW, 2015). É necessário, no entanto, pontuar que grande parte dessa euforia em torno desse novo cenário trata-se de uma evolução advinda do uso e dispersão intensiva da web além de outros fatores como o a infinidade de dados presentes no universo virtual. Além de informações pessoais, gerada muitas vezes por redes sociais, a internet congrega atualmente nomes e números provenientes de órgãos governamentais, os quais são extremamente valiosos para o jornalismo por serem de utilidade pública (GRAY, 2011). Muito além de uma novidade, o jornalismo de dados parece ser o resultado de um conjunto de mudanças na sociedade, notadamente aquelas voltadas à comunicação e a disponibilização de informação. Assim, este - 350 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 artigo buscará compreender esse cenário a partir de fatos históricos recentes que mostrem as relações e as intenções que cercam a tecnologia e os meios de comunicação. Para isso, realizar-se-á uma discussão teórica, de cunho epistemológico, da comunicação em rede e das bases do jornalismo. Além das contribuições de autores brasileiros, este texto valer-se-á das proposições de autores estrangeiros, como Tim Berners Lee, que como criador da web lançou as bases que originaram empresas e iniciativas que mudaram a comunicação no século XXI. História e web 2.0 Quando o físico e cientista da computação britânico Tim BernersLee enviou uma carta em 1989 ao CERN, organização europeia para pesquisa nuclear, ele propôs uma ferramenta que realizasse o gerenciamento de informações. Embora não imaginasse naquela circunstância que a iniciativa se tornaria a web de hoje, a preocupação maior naquele momento era evitar a perda de dados relevantes ao longo do tempo. Situação que acometia o próprio CERN e tantas outras instituições de pesquisa. Para Berners-Lee, um novo sistema deveria possibilitar que novas informações fossem atualizadas conforme as necessidades da organização, o que seria possível se não houvesse limites ao fluxo de dados nessa rede. Assim, ele usa pela primeira vez o termo web para referir-se à forma como seriam estruturadas as notas postas no sistema, o qual também deveriam conter links como referências. Destarte, continua o físico, essa estruturação seria mais útil se fossem eliminadas hierarquias (BERNERS-LEE, 1989). Malgrado ele não tenha se referido diretamente a isso, é provável que recomendou a não criação de castas para que tudo ocorresse conforme as necessidades dos usuários sem um controle direto sobre o fluxo de informações. Prova disso é que quando refere-se à maneira como o próprio CERN arquiva os dados ele faz uma analogia com árvores, pois os nomes são armazenados de forma assíncrona a partir de nós. A proposição do cientista da computação era alterar essa lógica: “era preciso um link a partir de, de e - 351 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 para outro nó, porque neste caso a informação não seria, naturalmente, organizada em uma árvore”76. (BERNERS-LEE, 1989, p. 7). Berners-Lee argumentou, então, que o sistema de indexação por palavras-chave, já em uso, não era a mais adequada porque nem sempre as pessoas utilizavam os mesmos termos como referência. Assim, ele propôs um ordenamento em forma de hipertexto. A outra idéia, que é independente e em grande parte uma questão de tecnologia e tempo, é de documentos multimídia que incluam gráficos, voz e vídeo. Não vou discutir este último aspecto ainda mais aqui, embora eu vou usar a palavra "Hipermídia" para indicar que não está vinculado ao texto. Tem sido difícil de avaliar o efeito de um grande sistema hipermídia em uma organização, porque muitas vezes esses sistemas nunca foram usados em larga escala. Por esta razão, grandes quantidades de informação devem ser acessíveis usando qualquer nova informação desse novo sistema de gestão 77 (Ibid, p. 10). Assim que terminou de explicar como funcionaria seu novo sistema de armazenamento e disponibilização de informação, Berners-Lee elencou diversos pré-requisitos necessários para a concretização da proposta. Entre eles estavam: os sistemas existentes deveriam ser ligados entre si sem necessidade de qualquer controle central ou coordenação; as bases de dados existentes deveria ser acessadas em forma de hipertexto; o usuário seria capaz de adicionar os próprios links e outros de informação pública ou ainda guardar as ligações realizadas com outros usuários; e ainda haveria a 76 What was needed was a link from on e node to another, because in this case the information was not naturally organised into a tree. (Tradução do autor) 77 The other idea, which is independent and largely a question of technology and time, is of multimedia documents which include graphics, speech and video. I will not discuss this latter aspect further here, although I will use the word "Hypermedia" to indicate that one is not bound to text. It has been difficult to assess the effect of a large hypermedia system on an organisation, often because these systems never had seriously large-scale use. For this reason, we require large amounts of existing information should be accessible using any new information management system. (Tradução do autor) - 352 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 possibilidade de gerar listas de pessoas ou dispositivos para outros fins, tais como listas de discussão. (Ibid) Todas essas características, portanto, foram gestadas desde o nascimento da web como rede de compartilhamento e armazenamento de informações. Isso contraria muitas ideias em torno das quais a web desenvolveu-se ao longo de fases. Um dos precursores dessa proposição é o norte-americano Tim O’Really, que em 2005 escreveu um artigo explicando a origem da expressão e a razão pela qual ele acredita nela. Ele argumentou, inicialmente, que o estouro da bolha de empresas pontocom em 2001 foi um divisor de águas para o setor. Seguindo uma lógica evolucionista-capitalista, O´Really disse que as companhias remanescentes foram as mais fortes e preparadas, pois as mudanças estavam apenas começando. Embora criticou no artigo algumas empresas de marketing que estariam supostamente usando o termo web 2.0 de forma inapropriada, O´Really apresentou uma lista daquilo que seria uma síntese daquilo que ele acreditava ser a verdadeira web 2.0. Em linhas gerais, apresentou uma determinada empresa, como a Enciclopedia Britânica on-line, e a sua sucessora, a Wickipedia, ou uma prática, como a de fazer sites pessoais, e a evolução, a criação de blogs. Apesar de não se limitar a isso, a lista é um resumo daquilo que ele pensava sobre a mudança de fase na web (O'REILLY, 2005). Um exemplo aleatório de como as proposições de O´Reilly influenciaram diversos estudos pelo mundo sobre a web é o um artigo do pesquisador Alex Primo, no qual ele discute o aspecto relacional na internet. Citando O´Really, Primo afirma sobre a web 2.0: Trata-se de um núcleo ao redor do qual gravitam princípios e práticas que aproximam diversos sites que os seguem. Um desses princípios fundamentais é trabalhar a Web como uma plataforma, isto é, viabilizando funções online que antes só poderiam ser conduzidas por programas instalados em um computador. Porém, mais do que o aperfeiçoamento da “usabilidade”, o autor enfatiza o desenvolvimento do que chama de “arquitetura de participação”: o sistema informático incorpora recursos de interconexão e compartilhamento (2007, p. 2) - 353 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Não obstante o caso do pesquisador brasileiro não ilustre de forma científica o quanto o termo web 2.0 tenha se difundido, ele ilustra uma realidade que pode ser corroborada em partes pela ferramenta Google Ngram Viever. Criada em 2010, o programa indexa palavras ou frases curtas, a partir de uma contagem anual, encontradas em fontes impressas do período de 1800 a 2012 em diversas línguas, como inglês, francês e até chinês (WICKIPEDIA, 2015). Uma pesquisa realizada neste instrumental com a palavra web 2.0 releva fatos interessantes e desvela mitos. O primeiro, é que o termo web 2.0 foi usado pela primeira vez em 1967, logo, o argumento de O´Really de que o termo foi criado em uma reunião entre duas empresas no início do século XXI não procede. O segundo, é que de 1977 a 1982 a palavra web 2.0 foi mais usada do que no início do ano 2000. De acordo com os cálculos do visualizador, o termo aparece em 0,0000000180% dos livros indexados naquele intervalo, ao passo que 0,0000000022% em 2002. Isso pode explicar porque O´Really acreditou que cunhou a expressão, pois ela pode ter caído em desuso até que novamente se tornasse recorrente. O terceiro fato que chama atenção a partir da análise dos números do Google Ngram é a forte ascenção do termo web 2.0 a partir de 2005. Neste ano o visualizador marcou a presença do termo em 0,0000010242%. Já em 2008, prazo máximo indexado pela ferramenta, foi de 0,0000017891%. Alta significativa, apesar do crescimento de 2003 a 2005 também ter sido digno de anotação. Esses números, portanto, endossam o entendimento deste artigo de que jargões mercadológicos reforçam o coro acadêmico. Ademais, salientam ainda que muitas palavras não foram criadas por quem as imaginou ter feito e tampouco dizem respeito àquilo que aparentam. Ainda tratando do caso do artigo publicado pelo pesquisador brasileiro, percebe-se que as características elencadas por Primo, a partir das propostas de O´Really, são basicamente as mesmas sugeridas por BernersLee quando pensou como a web poderia ser, mormente a participação de diversos agentes que se conectariam e compartilhariam informações, o que o britânico chamou de heterogeneidade, links privados e não-centralização. - 354 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Assim, quem lançou as bases da web têm muito mais propriedade para elencar características dela do que outros que a conheceram enquanto usuário ou empresa. Desse modo, urge salientar a importância de cientistas como Berners-Lee para a discussão em torno do futuro da web como forma de evitar infortúnios de avaliação. Inclusive, o próprio Berners-Lee em 2006 assinou um artigo com outros pesquisadores nos quais defende a tese que a web está em processo de evolução: “o desenvolvimento da Web seguiu um caminho evolutivo, o que sugere uma visão da Web em termos ecológicos”78 (BERNERS-LEE et al, 2006: 770). Ao contrário do que possa parecer a partir de uma análise sorrateira, a alcunha ecológica usada pelos cientistas em relação à web não diz respeito a uma suposta seleção natural das melhores empresas do setor. Para os autores do artigo a ecologia da rede de computadores diz respeito a uma evolução realizada ao longo dos anos por humanos, os quais contribuíram para que a web mudasse por meio das contribuições de cada um. Exatamente em consonância com os princípios elencados por BernersLee como pré-requisitos para a concretização do novo sistema em 1989. O´Really, assim como muitas pessoas que avaliam a web, a observam a partir dos exemplos de empresas que se firmaram utilizando-se das ferramentas que a web disponibiliza. Uma visão um tanto quanto superficial caso o observador paute-se não pelas funcionalidades disponíveis, mas pelos pressupostos sobre os quais foi criada a web. Ou seja, é importante uma avaliação que não seja realizada a partir da visão de usuário da tecnologia, mas daqueles que manejam o sistema. Assim, certamente será possível visualizar aspectos relevantes que tradicionalmente não são do conhecimento da maioria. Exemplo disso são as críticas feitas pelo próprio Tim Berners-Lee a determinadas companhias. A partir de uma discussão em torno das 78 The development of the Web has followed an evolutionary path, suggesting a view of the Web in ecological terms. (Tradução do autor) - 355 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 potencialidades da web, eles dizem que é preciso haver ampla colaboração entre áreas interdisciplinares a fim que seja possível resolver problemas que há algum tempo impedem a melhora da web. Um deles é o desenvolvimento de uma web semântica, a qual traria resultados de busca mais precisos e completos caso fossem encontradas soluções para entreveros matemáticos e estratísticos. O desafio de engenharia é permitir que os sistemas de dados desenvolvidos de forma independente sejam ligados entre si sem a necessidade de um acordo global quanto a termos e conceitos. Os métodos estatísticos, que servem para o dimensionamento de recursos de linguagem em tarefas de busca, e os cálculos de dados, que são utilizados na ampliação consultas de dados, são em grande parte baseadas em suposições incompatíveis, e unificá-los será um grande desafio79 (BERNERS-LEE et al, 2006: 770) Parte do imbróglio em comento poderia ser resolvido, no entendimento de Berners-Lee e demais autores do artigo, caso muitas empresas abandonassem a prática recorrente de não disponibilizar os dados dos usuários participantes, o que contraria não apenas os primórdios da web, mas a mentalidade de existência de uma web 2.0 cujas virtudes seriam, dentre outras, a ampla colaboração e compartilhamento de informações. O fato dos cientistas lamentarem o enclausuramento de informações que poderiam contribuir para uma web, de fato, mais aberta, é prova de que os usuários e os principais entusiastas do atual modelo existente de web e de suas fases de aperfeiçomento precisam rever essa mentalidade. Cientes de que essa situação dificilmente será alterada em virtude dos interesses comerciais das grandes companhias que obtém e armazenam 79 The engineering challenge is to allow independently developed data systems to be connected together without requiring global agreement as to terms and concepts. The statistical methods that serve for the scaling of language resources in search tasks and the data calculi that are used in scaling database queries are largely based on incompatible assumptions, and unifying these will be a major challenge. (Tradução do autor) - 356 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 dados dos usuários, os pesquisadores propõem desafios matemáticos de modelagem de dados e ainda uma discussão acerca do controle e acesso dos dados compartilhados na web. Aliás, os autores acreditam que: “a escala, a topologia, e o poder dos sistemas de informação descentralizadas, como a Web, também representam um conjunto único de desafios sociais, públicos e políticos”80 (BERNERS-LEE et al, 2006: 770). História, dados e jornalismo Assim como é preciso reavaliar visões segundo as quais a web é formada por fases, as quais são marcadas pela introdução de novas ferramentas e informações, totalmente abertas e disponíveias ao usuário, geradas pelas grandes empresas do setor, também é importante ponderar a incorporação do uso de dados no jornalismo e as implicações disso para a área. Da mesma maneira como a ampla difusão e disseminação de informações, números e nomes incitam as pessoas a criarem novos termos para a web pode estar ocorrendo algo similar com o nome jornalismo de dados. Segundo Barboza (2007), base de dados é um termo cunhado na década de 1960 por norte-americanos que buscavam soluções para resolver problemas de arquivo. Com os passar dos anos esses sistemas ampliaram-se e ganharam escala à medida que máquinas computadoras passaram a utilizálas para guardar informação. Não por acaso, base de dados se tornou repositório de informações armazenadas em computadores. Antes, porém, de avançar na discussão em torno do uso de dados, é importante refletir sobre seu significado. Para James Gleick, dado e bit são praticamente sinôminos. Bit foi cunhado, segundo o jornalista, por Claude Shannon ao criar a Teoria Matemática da Comunicação. Quando estudava as unidades de medida para determinar a quantidade de informação que 80 The scale, topology, and power of decentralized information systems such as the Web also pose a unique set of social and publicpolicy challenges. (Tradução do autor) - 357 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 existia em uma mensagem, Shannon teria criado o nome para referir-se a dígitos binários. Sendo estes, a menor quantidade possível de informação existente em uma mensagem emitida por um humano ou uma máquina (GLEICK, 2013). Já Abbagnano pressupõe: O uso filosófico estabelece dois conceitos diferentes da noção de dado: 1ª o dado é o ponto de partida da análise, isto é, a situação de que se parte para resolver um problema ou as assunções ou os antecedentes de uma inferência ou de um discurso qualquer; 2ª o dado é o ponto de chegada da busca porque é o que se obtém quando se retiram do campo de indagação preconceitos, opiniões ou superestruturas falsificadoras, permitindo que se mostre e manifeste a realidade enquanto tal (2007: 231) Para efeito desse artigo utilizar-se-á o primeiro conceito estabelecido por Abbaganano, o qual parte do entedimento do dado ponto de partida da análise, somado às colocações de Lima Júnior: “dado é conceituado como sendo o dado binário, que é processado e armazenado por máquinas computacionais” (2012: 210). Decidiu-se pela conceituação a partir de duas proposições por acreditar-se que o dado neste artigo sempre será aquele advindo de computadores, sendo que o dado será o princípio pelo qual o jornalista buscará informações que sirvam de elemento para a criação da notícia, matéria-prima do jornalismo. Além de conceituar dados, é válido também fazê-lo em relação ao termo jornalismo de dados. Uma das raras bibliografias sobre o tema, o livro Manual de Jornalismo de Dados coloca de forma prosaica a definição da palavra: “Eu poderia responder, simplesmente, que é um jornalismo feito com dados. Mas isso não ajuda muito” (GRAY et al, 2012: 8). Diante da escasses de informação, a obra acrescenta que dado não é apenas número, mas tudo que pode ser descrito em forma numérica no mundo digital, como uma fotografia, um vídeo ou um áudio. Ainda de forma bastante simplista, os autores do livro argumentam que o grande diferencial “talvez sejam as novas possibilidades que se abrem quando se combina o tradicional ‘faro - 358 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 jornalístico’ e a habilidade de contar uma história envolvente com a escala e o alcance absolutos da informação digital agora disponível” (Ibid). Isto é, jornalismo de dados poderia ser sintetizado, nos ditames do Manual, como uma narrativa jornalística baseada em grande volume de informação digital. Por não ser o objeto desse texto, não se adentrará na discussão sobre as diferenças que cercam dado, informação e notícia, pois cada um deles tem sua peculiaridade e explicá-los retiraria a possibilidade de uma discussão relativamente elaborada sobre os objetivos desse texto. De qualquer maneira, é importante salientar esses aspectos porque existem diferenças significativas entre eles. O livro Manual de Jornalismo de Dados não é exceção quanto à dificuldade em definir o que é jornalismo de dados. A obra Ferramentas digitais para jornalistas (2010), que figura entre as escassas contribuições para a área, não faz qualquer menção ao que seria jornalismo de dados. Embora esteja nítida a preocupação em destacar instrumentais para a realização de reportagens a partir de dados coletados na web, lamenta-se não haver nenhuma definição da nova técnica que o livro almeja apresentar. Quem faz uma discussão relativa sobre jornalismo de dados são jornalistas europeus, principalmente britânicos, como Jonathan Gray e Paul Bradshaw. Este último, em 2010, escreveu um artigo intitulado How to be a data journalist no qual assume um papel pedagógico para explicar o que seria apropriado os profissionais da área fazerem para praticarem a nova técnica. Antes de dar dicas que considera importantes, Bradshaw faz alguns apontamentos: Jornalismo de dados é enorme. Eu não quero dizer 'enorme' como na moda - embora se tenha tornado que nos últimos meses - mas 'enorme' como em 'incompreensivelmente enorme'. Ela representa a convergência de um número de campos que são significativos em seu próprio direito a partir de pesquisa investigativa e estatística para design e programação. A idéia de combinar as habilidades de contar histórias importantes é poderosa - mas também intimidante (BRADSHAW, 2010). - 359 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O jornalista e professor da City University in London diz também que existem diferentes formas de fazer jornalismo de dados, as quais fariam partes de um quebra-cabeças. A primeira delas seria encontrar os dados, o que poderia ser feito por meio de sistemas de gerenciamento de banco de dados como MySQL ou por linguagens de programação como Python. Bradshaw recomenda que o jornalista tenha conhecimento especializado para realizar certas tarefas. A segunda parte do quebra-cabeça seria criar compreender os dados, o que Bradshaw chama alegoricamente de interrogatório. Ele sugere noções de estatística para compreensão de planilhas, material básico neste novo setor do jornalismo baseado em números e outras informações compiladas em forma não-textual. A terceira seria criar maneiras adequadas de mostrar os dados ao leitores, no caso de um veículo de comunicação impresso ou pela internet. O professor diz que essa atribuição mormente recai sobre programadores e designers, no entanto é preciso que jornalistas adentrem essa seara. A quarta e última seria criar uma compreensão dos dados, o que Bradshaw chama de Mashing dados. Para tanto, o jornalista recomenda o uso de ferramentas como ManyEyes ou Yahoo Pipes (BRADSHAW, 2010). A partir dessas exortações, Bradshaw lembra que o jornalismo de dados deve partir sempre de elementos bá sicos do próprio jornalismo, como o de contar histórias, porém, no caso específico do jornalismo de dados, procurar fazê-lo por intermédio de números. Outra obordagem sugerida é de começar a reportagem sempre a partir de uma pergunta, a qual seria respondida ao longo da daquela. Todos esses aspectos são classificados como importantes por manuais e outras obras que se valem do jornalismo, o que demonstra o caráter pioneiro do trabalho de Bradshaw. Contudo, uma das principais contribuições do professor e de outros jornalistas ao tratar de jornalismo de dados tenha sido outra. Eles tocam em um aspecto muito mais relevante que sugestões de como iniciar uma notícia. O professor comenta uma preocupação de vários setores da sociedade britânica pela disponibilização de dados por parte de fontes governamentais, o que no entendimento dele e de diversos setores da sociedade civil - 360 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 organizada é imprescindível para o exercício do bom jornalismo (BRADSHAW, 2010). Embora Bradshaw não afirme, existem muitos entes preocupados em forçar fontes governamentais e não-governamentais a divulgar dados e outras informações públicas necessárias ao exercício da cidadadia. Jonathan Gray, um dos jornalistas que trabalhou na elaboração do livro Manual de Jornalismo de Dados, o qual foi traduzido para diversas línguas, como o português, posteriormente, recorda que em 2006 o jornal The Guardian lançou uma campanha para que as entidades públicas tornem os dados abertos. Nesta mesma reportagem de 2006, Gray afirma que Tim BernersLee e outros cientistas endossaram a proposta por acreditarem na importância dela para o desenvolvimento da web (GRAY, 2011). Gray salienta que em pouco mais de meia década, desde o início do século XXI, prefeituras, Banco Mundial, Comissão Europeia e tantas outras instituições supranacioais aderiram à proposição de serem mais transparentes. No entanto, o jornalista afirma que ainda exitem muitos desafios a serem superados. No início deste ano houve relatos de que Data.gov terá seu financiamento cortado. No Reino Unido, há preocupações de que o ameaçadoramente intitulado "Public Data Corporation" pode significar que uma quantidade crescente de dados seja bloqueada e vendida para aqueles que podem dar ao luxo de pagar por isso. E na maioria dos países ao redor do mundo a maioria dos documentos e conjuntos de dados ainda é publicado em condições legais ambíguas ou restritivas, que inibem a reutilização. Cortes de gastos do setor público e medidas de austeridade em muitos países vão tornar ainda mais difícil para os dados abertos tornarem-se prioridades (GRAY, 2011). No caso brasileiro, a afirmação de Gray torna-se factível de variados modos. Pelo aspecto positivo, há a criação e promulgação da Lei 12.527 em 18 de novembro de 2011, chamada de lei de acesso à informação. Nos ditames do caput da legislação, fica estabelecido: - 361 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências (BRASIL, 2011). Na prática, a legislação obrigou os entes públicos das diversas esferas, quais sejam, municipais, estaduais e federais, a dvulgarem informações até então inacessíveis à popuação, como o gasto com os vencimentos de servidores. A medida também forçou empresas públicas, fundações, autarquias e outras instiuições vinculadas ao setor governamental a publicar suas normas, realizar consultas públicas virtuais e demais atos administrativos até então inalcançaveis à população, o que representou grande avanço em relação ao panoramo anterior. No entanto, o aspecto negativo disso, conforme vaticinado por Gray, é o fato de que a lei de acesso à informação é constantemente vilipendiada pelas entidades e órgãos que deveriam zelar por ela. Seja por omissão, negligência ou sob o argumento difuso de confidencial, o cidadão, veículos de comunicação ou qualquer outro ente que busque determinadas informações não terá o seu direto respeitado (LEALI, 2015; GONZALES, 2015). Isso significa que para o jornalismo de dados ser realizado de forma satisfatória é preciso, inicialmente, uma disponibilização de informações na web, pois a prática se concretiza a medida que profissionais dispõem-se a coletar dados, selecioná-los, criar uma visualização adequada para ele e disponibilizá-lo da maneira mais adequada possível de acordo com o público consumidor de notícia. Não é o jornalista que cria a informação, ele a coleta e transforma-a em reportagem por meio de recursos textuais, audiovisuais, inforgráficos ou outras. Logo, a matéria-prima do profissão de jornalista continua sendo a mesma desde os primórdios. O que está mudando é a forma como ela é disponibilizada e, no caso específico do jornalismo de dados, o leque de opções tecnológicas usadas para ter acesso a elas e criação de novas - 362 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 narrativas, já que esta nova técnica requer um repertório específico de conhecimento de informática e técnicas corretalatas. Considerações finais Muito se fala sobre o futuro do jornalismo a partir das constantes mudanças tecnológicas. Mais que exercício de predição, o jornalismo de dados representa, de fato, uma nova possibilidade do profissional de imprensa realizar o seu trabalho. Em um momento em que se questiona a necessidade de humanos para produzir uma notícia, haja vista as máquinas que já estão a fazê-las, é irônico constatar as diversas possibilidades que se aventam para os seres humanos jornalistas a partir de computadores e programas, pois o jornalismo de dados se realiza a partir do trabalho conjunto de robôs e pessoas. Ademais, nota-se que o jornalismo de dados abre novas possibilidades ao exercício da profissão, mas não representa uma total ruptura com os padrões convencionais. É preciso, no entanto, certa moderação com previsões mais acaloradas, como a possibilidade do jornalista libertar-se das amarras dos meios de comunicação porque ele poderia se autofinanciar por meio de crowdfunding e dedicar-se apenas a reportagens especiais e investigativas. Por mais que isso seja, realmente, uma possibilidade, urge, primeiramente, uma reflexão e ações concretas para exigir dos poderes públicos e até mesmo de empresas privadas e organizações do terceiro setor maior transparência em suas atitudes, pois essa é a condição sine qua non para um jornalismo de qualidade. Não é por acaso, desse modo, que a principal reivindicação dos precursores da web, como Tim Berners-Lee, e dos profissionais que lançaram as bases do jornalismo de dados tem sido a disponibilização dos dados dos usuários. Critica-se, e com razão, as grandes corporações que não divulgam esses dados, no entanto, também é preciso manter-se vigilante em relação aos governos e às entidades supranacionais, que muitas vezes tengiversiam nesse - 363 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 aspecto. Apenas dessa forma o jornalismo de dados poderá realizar prestar um bom serviço à sociedade, tal qual preconizam suas premissas. Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BARBOZA, Suzana. Jornalismo digital em base de dados (JDBD): um paradigma para produtos jornalísticos digitais dinâmicos. 319 f.. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicação, 2007. BARLOW, Mike. Data Visualization: A New Language for Storytelling. Sebastopol: O’Reilly Media Inc, 2015. BERNERS-LEE, Tim. Information Management: A Proposal. History, v. 198, n. 9, 1989. Disponível em: http://www.w3.org/History/1989/proposal.html. 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O berço desse gênero jornalístico caracterizado por textos aprofundados, apurados e, por vezes, literários, foi a Europa no século XIX. Por tradição, o jornalismo europeu sempre foi menos factual e mais autoral, interpretativo e, em alguns casos, até mesmo opinativo. Nos Estados Unidos, já na primeira metade do século XX, surgem autores como John Reed, capazes de publicar histórias imersivas, longas, em edições seriadas. No Brasil, em 1902, Euclides da Cunha, então correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, escreve Os Sertões, sobre a Guerra de Canudos. Durante a Segunda Guerra, com a grande quantidade de jornalistas enviados ao front, surgem narrativas jornalísticas aprofundadas, autorais e humanizadas, capazes de revelar ao mundo os horrores dos conflitos. Já na década de 60, floresce o new jornalism, gênero em que a escrita é muito próxima da literatura, com conteúdo de não ficção. (BELO, 2006). Desde o seu surgimento, esse tipo específico de se fazer jornalismo vem sendo publicado em diferentes meios de comunicação. Na versão impressa, ganha notoriedade com um público amplificado, no caso dos jornais diários. Já em relação às revistas, direciona-se a um leitor de perfil segmentado, ávido por grandes histórias e imagens fotográficas impactantes. Nos livros, oferece expansão narrativa com grande profundidade e riqueza de dados. E, atualmente, com o meio internet e o avanço e a popularização da tecnologia digital, a reportagem ganha novas nuances, como a - 366 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 interatividade e a multimidialidade, podendo, inclusive, se reinventar em um novo subgênero jornalístico. Com projetos pontuais ou em série, a grande reportagem digital vem se legitimando. Suas raízes estão no impresso, mas há avanços consideráveis nas possibilidades de apresentação das informações. Longhi (2014) nomeia publicações como Snow Fall, do The New York Times, e A Batalha de Belo Monte (entre outros) como grande reportagem multimídia, gênero caracterizado por conteúdo imersivo e long form, munido de recursos multimídia, interativos e por hipertextualidade. Snow Fall e A Batalha de Belo Monte podem ser consideradas expoentes que sinalizam um ponto de virada no jornalismo digital, cujo início, cerca de dezesseis anos atrás, fora marcado por tentativas de se veicular conteúdo multimídia e interativo, mas que, somente a partir de 2012, com o surgimento do HTML5, outros avanços técnicos e a extensão de banda larga, realmente se estabelece. A grande reportagem multimídia representa, para o jornalismo digital, um grande ganho de qualidade editorial em relação aos formatos digitais jornalísticos anteriores, como a webnotícia, no geral fragmentados, em que o aprofundamento não se dá no texto em si, mas em seus links para outros textos, além de não haver uma exploração satisfatória dos recursos possibilitados pela web. Canavilhas (2014) e Renó (2014) oferecem distinções conceituais que podem especificar de maneira ainda mais adequada esse novo gênero jornalístico. Os autores acrescentam a noção de transmidialidade, quando as narrativas extrapolam linguagens e plataformas em conteúdos produzidos com a intenção de expandir o texto-base, sem, entretanto, que esses conteúdos sejam obrigatórios para o entendimento do enredo ou da narrativa. “Transmídia é uma linguagem contemporânea e social construída por vários conteúdos através de diferentes mídias com significados independentes, mas coletivamente oferecendo um novo significado” (RENÓ, 2014, p. 5). Aplicada ao jornalismo, Canavilhas aponta que a transmidialidade possui características-chave, como a interatividade, a hipertextualidade, a - 367 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 multimidialidade integrada (em que o conteúdo visual ou sonoro, por exemplo, é usado de maneira a confirmar, destacar ou ilustrar uma determinada situação) e a contextualização, que se refere também à necessidade de adaptação do conteúdo aos hábitos de leitura do usuário em diferentes contextos, principalmente móveis. O conceito de transmídia poderia, então, ser aplicado à grande reportagem digital quando, além de multimídia, não é somente por esta característica definida. Assim, produções que incluem materiais multimídia que podem ser vistos ou ouvidos sem a necessidade de se consumir todo o texto – sem perda de significado – são transmidiáticos, podendo, inclusive, configurarem-se como reportagens jornalísticas, um dos formatos em que a transmidialidade possui grande aderência: Os gêneros jornalísticos verdadeiramente adaptados à narrativa transmídia são os gêneros nativos do jornalismo na Web (newsgames e infográficos multimídia interativos), mas sobretudo a grande reportagem, um gênero transversal a todas as mídias. (CANAVILHAS, 2014, p. 64). No Brasil, um dos veículos que mais têm apostado em reportagens do tipo é a Folha de S. Paulo, cujo marco inicial foi a cobertura sobre Belo Monte, publicada no site da Folha em 2013. O material, com cinco capítulos, contém uma gama considerável de recursos multimídia com potencial transmidiático, como infográficos animados, galeria de imagens, vídeos e, inclusive, um videojogo. A Batalha de Belo Monte demandou quase dez meses para ser produzida e envolveu, de forma direta ou indireta, o trabalho de 15 jornalistas, além de designers, infografistas e profissionais que trabalham com o audiovisual. Esse tipo de narrativa parece atingir, hoje, uma certa maturidade, já que vem utilizando as características de cada meio – televisão, rádio, impresso – de forma adaptada à internet, agora legitimamente produzida para ser veiculada on-line e acessada via dispositivos móveis. O audiovisual, por sua vez, tem papel de suma importância nas reportagens digitais, seja expandindo informações, como também entretendo ou ilustrando algo que - 368 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 está descrito no texto. Os vídeos possuem grande potencial transmidiático, uma vez que podem sintetizar a informação, além de serem facilmente compartilhados e propagados on-line. O conteúdo em vídeo, hoje, tem o papel de protagonista na internet. Segundo dados da Comscore, em 2012, o Brasil já era o sétimo maior mercado de consumo de vídeo on-line no mundo, com audiência de 43 milhões de espectadores únicos em dezembro daquele ano81. Relatório da mesma agência, em 2015, aponta que, em relação à América Latina, “os brasileiros passam 3 horas a mais assistindo a vídeos on-line do que os outros países da região” (BANKS, 2015, p. 13). A popularidade do audiovisual na web pode ter várias causas, entre elas, a de que o audiovisual é a linguagem mais próxima da humana, natural. “ [...] o audiovisual é linguagem. Uma linguagem que se aproxima da natural, onde existem recursos de áudio e de vídeo, além de diversos enquadramentos”, afirma Renó (2011). No presente artigo, é proposta uma análise do papel do audiovisual na reportagem digital, cujo objeto é a série TAB, apresentada a seguir. Partese da hipótese de que, por se tratar de um material com potencial transmidiático, os vídeos desempenham funções que vão além do simples reforço do que está sendo descrito no texto, já que, além de trazerem dados novos, são produzidos a fim de promover a interação e a reter a atenção do usuário que consome a reportagem. 1. Reportagem digital em série – o TAB Em outubro de 2014, o portal Uol, quinto maior em audiência web no Brasil (e pertencente ao Grupo Folha, que edita a Folha de S. Paulo) passou a publicar a série de reportagens TAB. Com veiculação semanal, TAB traz textos que abordam questões contemporâneas, muitas vezes 81 Disponível em: < http://www.comscore.com/por/Imprensa-e-eventos/Press-Releases/2013/2/AAudiencia-de-Videos-Online-no-Brasil-Alcanca-43-Milhoes-de-Espectadores-Unicos>. Acesso em 2 fev. 2016. - 369 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 controversas e provocativas, em caráter imersivo e interpretativo. Todas as edições, sem exceção, fazem uso de recursos multimídia, além de interatividade. As reportagens do TAB são veiculadas às segundas, com grande destaque na home do portal. Segunda-feira é o dia de maior acesso ao site 82, o que consequentemente garante um alcance maior desse conteúdo pelos usuários, algo que, por outro lado, é utilizado como índice de valor para a indústria publicitária que, no caso de sites da internet, se baseia em números de acessos. O produto segue um modelo de negócio diferente do restante do conteúdo jornalístico produzido pelo Uol, uma vez que é abertamente patrocinado por outras empresas e marcas. A publicidade, por sua vez, é fixa, sendo que apenas uma marca patrocina cada edição, aparecendo em momentos específicos e estratégicos83, mas sem contribuição ou inserção no conteúdo jornalístico em si. Em relação ao visual, o layout do TAB é planejado conforme a temática da pauta, como acontece nos suplementos especiais de jornais ou em revistas segmentadas. A paginação é verticalizada, não sendo, assim, disposta em capítulos (como ocorre com A Batalha de Belo Monte). Por conta disso, faz uso do efeito parallax scrolling, que é o movimento de elementos – como ilustrações – conforme a leitura avança e a tela é rolada para baixo. Essa técnica de webdesign torna a leitura de um texto long form menos cansativa e mais dinâmica, assemelhando-se ao efeito em três dimensões, algo natural ao olho humano. Os elementos inovadores de apresentação de conteúdo, como se pode concluir, requerem novas habilidades dos jornalistas, além da inclusão de especialistas de outras áreas, como programadores, na redação. “Atualmente, quem desejar explorar ao máximo o potencial comunicativo da 82 Disponível em < http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2014/10/13/uol-lanca-o-tabnovo-projeto-editorial-interativo.htm>. Acesso em fevereiro de 2015. 83 A publicidade aparece logo no início da reportagem, quando o usuário precisa obrigatoriamente assistir a um vídeo de 5 segundos para acessar o conteúdo, e um pouco antes do final da mesma, em que outro vídeo surge, mas sem a obrigatoriedade de ser assistido. - 370 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 internet necessita contar com excelentes dotes de escritor e com grandes aptidões para a narrativa gráfica e audiovisual” (SALAVERRÍA, 2014, p. 33). Já Renó (2014) afirma que vivemos o momento das narrativas transmidiáticas, que possuem um espaço privilegiado hoje. Para isso, o jornalista deve ser interdisciplinar e multiplataforma. 2. O audiovisual no TAB: informar, interagir e reter a atenção A edição selecionada para análise é a de número 4, publicada em novembro de 2014. Intitulada “Todo Mundo Mente”, a reportagem tem como tema a mentira. O texto possui mais de duas mil e trezentas palavras. O tema é abordado de forma interativa, com a presença de testes, enquetes, frases prontas para compartilhamento no Facebook e Twitter, além dos vídeos em questão, analisados neste artigo. Defende-se que os vídeos exercem funções específicas: entreter e reter a atenção, uma vez que os audiovisuais devem ser assistidos por completo para que se compreenda toda a mensagem, pois os momentos finais de exibição são imprescindíveis e reveladores; informar, por trataremse de vídeos que apresentam informações novas, não tratadas no texto; e, por fim, os audiovisuais exercem a função de estimular a interação do usuário, uma vez que é este quem direciona a narrativa ao responder a um questionamento. Os vídeos possuem sentido próprio e, por conta disso, podem ser compartilhados em outros ambientes digitais sem que seja necessário o acompanhamento do texto da matéria; por outro lado, em alguns casos (como será mostrado nos três primeiros vídeos), é necessário assisti-los antes de partir para o texto. A seguir, são elencadas e analisadas as três funções dos audiovisuais da edição escolhida para investigação. 2.1 Informação A primeira série de vídeos disposta na reportagem é posicionada após um grande bloco de texto. Os três vídeos não são citados no texto que - 371 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 os antecede, bem como não são vídeos que ilustram algum tipo de situação ou personagem descrito no texto anteriormente. Entretanto, são fundamentais para o entendimento do texto que os acompanha, cujo primeiro parágrafo se inicia com o trecho: Assista a pelo menos um dos vídeos ao lado antes de ler o texto. Assim, é mais fácil perceber como o cérebro engana nossa percepção do mundo chamado de real. Nós não vemos o que está ali, mas sim o que nosso cérebro quer que vejamos. A mesma coisa acontece com nossos outros sentidos. Não vemos a realidade para viver melhor. (FERREIRA, 2014, online) Os três vídeos referem-se a ilusões provocadas pelo funcionamento do cérebro. O primeiro mostra como não conseguimos distinguir detalhes ao olhar uma foto de ponta-cabeça (Efeito Tatcher) e tem 36 segundos. Na imagem, um rosto é apresentado de ponta-cabeça e depois, rotacionado para a posição normal, evidenciando a ilusão de ótica que está sendo descrita via áudio. Tal vídeo foi reproduzido, separadamente da reportagem, na página oficial do TAB do Facebook e foi o post mais repassado em oito meses de acompanhamento da página, com 447 compartilhamentos no total (ITO, 2015, p. 11). Uma das hipóteses para que isso ocorra é o formato do vídeo – objetivo, curto – aliado à natureza curiosa da informação que apresenta: a capacidade de nosso cérebro nos enganar e construir o que está sendo visto. Figuras 1 e 2. Capturas de tela mostram o Efeito Tatcher - 372 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O segundo vídeo, de 57 segundos, mostra a diferenciação que o cérebro faz quando estamos vendo uma pessoa falar determinadas sílabas e quando estamos apenas ouvindo o que é dito, sem visualizar. Já o terceiro, de 38 segundos, também é uma ilusão de ótica que apresenta, sem narração, uma maquete de papel que engana o cérebro. Após assistir aos vídeos, destacam-se os pontos abaixo que são abordados apenas nos mesmos, ou seja, sem serem descritos no restante do texto: Tabela 1. Informações novas presentes nos vídeos Vídeo 1: 1. A imagem que se vê pode parecer real, mas não é; 2. Isso ocorre por conta de uma ilusão de ótica denominada Efeito Tatcher; 3. O nome Tatcher vem do fato de que uma pesquisa científica, feita nos anos 80, descobriu essa particularidade ao realizar um experimento que invertia fotos de Margareth Tatcher. Vídeo 2: 4. Quando se vê alguém pronunciar a sílaba “ba”, sozinha, o que se escuta é “da”; 5. Isso não ocorre quando a imagem some – então, se escuta o som correto: “ba”; 6. Esse efeito acontece com as sílabas “ba” e “ga”, pois são sons muito semelhantes e o cérebro integra as pistas visuais; - 373 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais Vídeo 3: 2016 7. Trata-se do Efeito McGurk, que induz a pessoa a achar que ouve um som, quando na verdade, ouve outro. 8. Uma estrutura de papel que aparenta ter um centro no alto e quatro caminhos com descidas, na verdade, engana o olhar e faz com que as esferas de borracha subam ao invés de descer, contrariando a gravidade; 9. Entretanto, trata-se de mais uma ilusão de ótica, uma vez que, ao ser mostrada a estrutura por completo, pode-se visualizar que o centro, na verdade, está abaixo dos caminhos e, por conta disso (e da gravidade) as bolinhas se encontram no centro. A intenção dos vídeos é claramente explorar o que não pode ser totalmente explicado via texto. As imagens, neste caso, falam por si e são essenciais para o argumento do primeiro parágrafo citado anteriormente (que diz ser preciso assistir aos vídeos antes de ler). Os vídeos carregam um teor informativo importante, pois acrescentam novos dados, que são experienciados pelo usuário ao serem assistidos. Tal informação não seria apresentada de maneira completa em uma reportagem impressa, pois o movimento e o som do audiovisual tornam-se essenciais para a compreensão. Destacam-se, então, particularidades inéditas da reportagem, agora digital: unir texto aprofundado ao audiovisual. A interatividade, por sua vez, complementa o caráter inovador desse gênero jornalístico. - 374 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 2.2 Interação Já em relação à interatividade, os próximos vídeos trazem elementos que estimulam a interação do leitor. Posicionado logo abaixo do trecho que traz os vídeos acima analisados, está um painel interativo com situações que convidam o usuário a escolher, como se vê na figura 3: Figura 3. Painel interativo Cada uma das quatro situações referem-se a cenas que mostram possibilidades variadas de opção que o usuário pode fazer. A partir da alternativa escolhida, surge na tela um vídeo curto, com no máximo 52 segundos. Após assisti-lo, o usuário é convidado a responder à pergunta: “O que você faria?”, que leva a três desdobramentos possíveis. Assim, dependendo do direcionamento inicial do usuário, é possível escolher entre as seguintes frases: Tabela 2. Desdobramentos possíveis da narrativa audiovisual - 375 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais Homem Mente Para Outro / Mulher Descobrir a Mentira Finge que não percebeu a mentira Diz que o outro está mentindo Arma um barraco 2016 Mulher Mente Para Outro/ Homem Descobrir a Mentira Diz que não viu papel nenhum Nervosa, demonstra surpresa Tenta ganhar tempo Após a escolha, é mostrado o desfecho da cena. Quando a encenação termina, surge a imagem de um consultor, psicólogo da Universidade de São Paulo, cuja função é explicar as decisões tomadas pelos personagens, fundamentando o porquê de acontecerem, bem como mostrando possíveis sinais corporais que indicariam que a pessoa está mentindo. Figuras 4 a 7. Narrativa audiovisual interativa do TAB 2.3 Reter a atenção - 376 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Há também outros vídeos na edição que, além de promoverem a participação do usuário, possuem a capacidade de reter a atenção do mesmo, uma vez que são mais longos e precisam ser vistos até o fim para que sejam totalmente compreendidos. Aqui, é importante reforçar a defesa de que todos os vídeos são informativos, no sentido de acrescentarem novos dados à reportagem, e, alguns deles, são também interativos, uma vez que necessitam da participação do usuário para que os desdobramentos sejam exibidos. A sequência de vídeos a seguir é mais longa e o título instiga a observar atentamente o que é mostrado, como numa investigação informal, a fim de se adiantar um desfecho. No título e linha fina, estão as seguintes frases: Quem conta um conto... Agora que você já sabe reconhecer sinais da mentira e expressões verdadeiras, tente adivinhar se as histórias contadas realmente aconteceram O conteúdo é o depoimento de seis pessoas que, olhando diretamente para a câmera e sem nenhum tipo de cenário, corte ou fundo musical, relatam situações supostamente vivenciadas por elas. No caso desses vídeos, que são vistos em sequência (sendo impossível assistir ao da última pessoa antes de todos os outros, por exemplo), o tempo de duração pode chegar a 2 minutos e 23 segundos para cada primeira parte da história. A narrativa é dividida em duas partes: na inicial, cada pessoa conta a situação pela qual supostamente passou e, ao fim, surge um box interativo com a seguinte pergunta: “Esse vídeo é... Verdade ou Mentira?”. O usuário, ao optar clicar em uma das respostas, assiste à segunda parte do vídeo em que a pessoa que contou a história revela ser verdade ou não. - 377 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Em seguida, surge o próximo personagem a contar a história, como num quizz audiovisual que entretêm e retêm a atenção do usuário. A duração total dos vídeos, quando assistidos em sequência, é de acima de 10 minutos. Figura 8. Audiovisual retém a atenção Reitera-se que os vídeos podem ser pensados como testes para o usuário. São posicionados abaixo de uma galeria de microvídeos que mostra imagens em movimento de expressões faciais verdadeiras. O fato de essa galeria servir para que o usuário identifique expressões como alegria, medo, nojo, entre outras, antes de assistir às seis histórias contadas pelos personagens (figura 8), funciona como um preparo para o quizz. Assim, o audiovisual exige atenção do usuário quando é sugerido que deve-se decodificar sinais particulares capazes de revelar mentiras. - 378 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Figuras 9 e 10. Imagens da galeria "A Cara da Verdade", que antecede os vídeos quizz Reter a atenção é, para o Uol, uma forma de diferenciar suas produções jornalísticas – em sua maioria webnotícias padrão, com textos médios e curtos, permeados por hipertextos e, no geral, com pouco aprofundamento na própria notícia, confiando na arquitetura hipertextual para a ligação entre outros conteúdos. Tal fórmula é amplamente utilizada nos periódicos do mundo inteiro desde meados dos anos 2000 e algumas de suas principais particularidades, como a fragmentação hipertextual, o parágrafo de gancho, os links documentais, a datação exaustiva e o títulolink, foram apontadas por Salaverría (2005) como características do gênero notícia nos cibermeios. Daniel Tozzi, editor do TAB, defende que o interesse comercial da publicação vai além da quantidade de cliques (pageviews) do site. Um dos objetivos é mesmo reter a atenção do usuário em formatos imersivos, criativos e interativos. O editor afirma que “normalmente, as pesquisas indicam que o internauta gasta 40 segundos numa notícia. A gente tem conseguido com que o nosso leitor fique, em média, quatro minutos” 84. O modelo de negócio do TAB, apesar de oferecer conteúdo diferenciado para os anunciantes, parece centrar-se nos valores de monitoramento da audiência e na geração de dados oriundos das ações dos visitantes ao site. Jenkins, Green e Ford (2014), denominam esse tipo de valor 84 Informação dada em palestra de Daniel Tozzi na Fapcom (Faculdade Paulus de Comunicação) ocorrida em abril de 2015. O título da apresentação de Tozzi foi: “Chegou a hora de trocar o clique pela atenção – a experiência do projeto UOL TAB na web e o papel da publicidade nas narrativas digitais”. Disponível em:< http://www.fapcom.edu.br/blog/jornalismo-e-publicidade-existe-liberdade-paracriacao-editorial-na-web.html>. Acesso em 11 fev. 2016. - 379 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 como sendo baseado no conceito de aderência, a primeira forma de se aferir sucesso no comércio on-line e que é, ainda hoje, majoritariamente adotada pelas empresas na web. Essa noção de aderência lembra de perto o modelo de “impressões” que formatou a mensuração de audiências para conteúdo transmitido [...]. Aplicando esse conceito ao design de um website, as empresas esperam obter aderência colocando material num local facilmente mensurável e avaliando quantas pessoas o visualizam, quantas vezes é visualizado e por quanto tempo os visitantes o visualizam. (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 27) Uma característica observada reforça o modelo de negócio baseado na ideia de aderência: no TAB, mesmo que o material audiovisual tenha potencial transmidiático, não é colocado, em nenhum dos vídeos da edição aqui analisada, o link de compartilhamento nas redes sociais. Assim, é valorizada a centralização do conteúdo, a quantidade de acessos e tempo de permanência na página, algo que, em consequência, garante ao Uol controle maior sobre os números de audiência. A possibilidade de compartilhamento é oferecida em apenas dois momentos, posicionados no final da reportagem: pode-se compartilhar todo o material ou frases em redes sociais (figura 11). Neste último caso, os próprios usuários podem enviar as frases, via e-mail ou Whatsapp e, depois de selecionadas, as mesmas vão para o mural interativo, como é mostrado abaixo: Figura 11. Captura de tela de painel interativo transmidiático - 380 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A ausência do estímulo ao compartilhamento de outras partes da reportagem (como vídeos ou testes) deixa claro que, apesar do potencial transmidiático, esta edição em específico o faz apenas no painel acima mostrado. Entretanto, apenas com essa constatação, não é possível categorizar o TAB como um produto transmidiático ou não, uma vez que seriam necessárias análises mais aprofundadas e voltadas a essa pergunta de pesquisa, algo que foge do escopo traçado para o artigo em questão. Aqui, é possível apenas relacionar a potencialidade transmídia (que na edição analisada se resume à potencialidade) ao modelo de negócio adotado, que segue o conceito de aderência. Considerações finais A reportagem multimídia tem como característica marcante o uso do audiovisual. Neste artigo, foi selecionada uma edição do TAB a fim de se observar e compreender quais funções estariam embutidas no uso de vídeos que permeiam a narrativa, complementando-a e enriquecendo-a. Pode-se concluir que o audiovisual não apenas estende a reportagem, como também exerce o papel de oferecer novas informações, independentes do texto escrito, com potencial para serem consumidas em contextos e plataformas diferentes. Além disso, os vídeos funcionam como elemento que estimula a interatividade do usuário – diferencial importante do gênero jornalístico em questão – ao mesmo tempo em que possuem a capacidade de reter a atenção de quem está atrás da tela do computador, requisito essencial num momento histórico em que a atenção torna-se um valor de mercado. A proposta do TAB parece ser oferecer conteúdo aprofundado em formato criativo e original, como já foi revelado por seus idealizadores, entretanto, a estratégia comunicacional pode ir além disso, incluindo o objetivo de induzir o usuário a permanecer por mais tempo no site ao consumir a informação. Esse tempo pode ser gasto ao ler, assistir, ouvir, jogar, interagir, - 381 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 compartilhar. Ações estas que ocorrem em momentos separados ou simultâneos. Tal modelo de apresentação jornalística difere do grosso que é publicado pelo Uol, tanto em sua rotina produtiva quanto em relação ao formato de conteúdo. Assim, se em uma notícia padrão, o vídeo integra o texto com objetivo e forma determinados, não se pode dizer o mesmo no caso da reportagem digital, multimídia, imersiva e de potencial transmidiático. Por conta disso, análises como esta buscam compreender significados e intencionalidades por trás de elementos já corriqueiros no jornalismo digital, como é o caso do audiovisual, que ganham agora novos contornos e funcionalidades em tais produções midiáticas diferenciadas. Referências bibliográficas BANKS, A. Brazil Digital Future in Focus 2015. 2015. Disponível em: < http://www.midiatix.com.br/wpcontent/uploads/2015-Brasil-Digital-Future-in-Focus-PORBR.pdf>. Acesso em 2 fev. 2016. BELO, E. Livro-reportagem. São Paulo: Contexto, 2006. CANAVILHAS, J. Jornalismo Transmídia: um desafio ao velho ecossistema midiático. In: RENÓ et al (org). Periodismo Transmedia: miradas múltiples. Barcelona: Uoc, 2014. FERREIRA, L. Todo mundo mente. 2014. Disponível em:< http://tab.uol.com.br/mentira>. Acesso em 11 fev. 2016. JENKINS, H.; GREEN, J.; FORD, S. Cultura da Conexão. São Paulo: Aleph, 2014. ITO, L. L. La repercusión de la serie de reportaje multimedia TAB. 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Navarra: EUNSA, 2005. - 383 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Participação, deliberação online e internet: o potencial do VotenaWeb Lucas Arantes Zanetti - UNESP Caroline Kraus Luvizotto - UNESP Introdução A dinâmica social contemporânea encontra-se tracionada pela participação dos sujeitos em movimentos e projetos político-sociais que configuram-se em fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes de caráter democrático e cidadão, justificando a realização de análises que privilegiem o foco sobre as redes de articulações e de comunicação estabelecidas pelos sujeitos em sua prática cotidiana. O estudo de tais redes torna-se, assim, essencial para se aproximar da compreensão de fatores que contribuem para desencadear aprendizagens e o surgimento ou a intensificação de valores de cultura política no processo de interação. Muitas ações de caráter político-social se fortaleceram e se potencializaram a medida em que a internet deu suporte a elas, utilizando sua arquitetura em rede para disseminar informação e promover a discussão coletiva. A partir das ferramentas online foi possível propor e organizar ações e ampliar os canais de participação. Pereira (2011, p.16) explica que o potencial da internet concentra-se em "atingir indivíduos que, a princípio sem vinculações políticas às instituições clássicas de organização da sociedade civil, estejam dispostos, desde que sejam "devidamente" convencidos, a participar de ações específicas de protesto, cybernéticas ou não, que tenham alguma identidade com seus interesses e percepções de mundo". Devemos destacar aqui que este engajamento ou vinculação baseia- 384 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 se fundamentalmente na liberdade do militante "não formal de se envolver quando quiser e onde quiser, sem os altos custos da participação formal". Diversos questionamentos surgem diante do uso crescente da internet como mecanismo de apoio a participação política e social e a deliberação on-line: qual será o impacto da internet sobre a vida política das sociedades contemporâneas? Como ela afetará a representação e a participação da sociedade civil nos contextos políticos em nosso país? A partir destas indagações e com o intuito de compreender como as ferramentas da internet contribuem para esse novo cenário de participação política no Brasil, identificamos um website caracterizado por ser um canal de participação de cidadãos em questões governamentais, objetivando fortalecer a luta pela cidadania e justiça social: o VotenaWeb. O VotenaWeb é um website criado em novembro de 2009 para tornar público projetos de lei do Congresso Nacional do Brasil, onde o cidadão pode conhecer os projetos por meio de um breve resumo e votar, simbolicamente, se concorda ou não com as proposições dos parlamentares. Só poderão votar usuários registrados O site foi desenvolvido por uma empresa que tem como foco o emprego de tecnologias digitais para a criação de canais de participação de cidadãos em instituições, privadas ou governamentais, chamada Webcitizen. Uma das principais características do site é o fato de que os projetos de lei do Congresso Nacional são traduzidos para uma linguagem mais simples e objetiva, permitindo que os usuários acompanhem as discussões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. O resultado da votação, Sim ou Não, pelos usuários, é visualizado em gráficos. Além disso, é possível que os internautas comparem seus votos entre si e com os dos deputados e senadores. Os projetos são lidos por analistas, que produzem um sumário e um resumo de cada um deles. São então abertos à votação por parte dos usuários e atualizados com os votos dos deputados e senadores tão logo passem pelas casas do Congresso. - 385 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A partir do exemplo do VotenaWeb é possível refletir sobre a utilização da internet para a criação, organização e disseminação da participação político-social e deliberação on-line no Brasil. Conceitos de participação e participação online A palavra participação vem do latim "participatio.onis" e quer dizer a ação ou efeito de fazer parte de alguma coisa. Para Bordenave (1983, p. 23) ''participação é fazer parte, tomar parte ou ter parte''. Para ele, de nada adianta ''fazer parte'' sem ''tomar parte'', como, por exemplo, alguém que faz parte de um grupo mas não toma parte das decisões de um grupo. A participação está ligada à atividade e ao engajamento. A participação seria inata ao ser humano devido às suas necessidades criativa e racional e a democracia seria um estado da participação (BORDENAVE, 1983). Dentro de uma sociedade, existem diversas formar de exercer participação. A participação política acontece quando a sociedade como um todo toma parte da construção das leis e do papel do estado: O princípio da soberania do povo significa que todo o poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O exercício do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos criam para si mesmos numa formação da opinião e da vontade estruturada discursivamente. Quando se considera essa prática como um processo destinado a resolver problemas, descobre-se que ela deve a sua força legitimadora a um processo democrático destinado a garantir um tratamento racional de questões políticas (HABERMAS, 2003, p. 213). Dessa forma, entende-se que participação acontece de maneira mais efetiva em locais onde não há centralização de poder, de maneira a evitar o despotismo que a maioria impõe às minorias quando não leva em conta as realidades regionais. A participação política puramente eleitoral, sem identificação e sem informação pode levar à manipulação das massas e se mascarar, é como ''fazer parte'' sem ''tomar parte''. Quando a participação é feita com identificação e consciência, sendo exercida em questões que - 386 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 realmente afetam diretamente o indivíduo, ele tende a ''tomar parte'' e ela se torna efetiva (BORDENAVE, 1983). Bonavides faz uma relação direta entre a democracia e a participação dos cidadadãos: O substantivo da democracia é, portanto, a participação. Quem diz democracia diz, do mesmo passo, máxima presença de povo no governo, porque, sem participação popular, democracia é quimera, é utopia, é ilusão, é retórica, é promessa sem arrimo na realidade, sem raiz na história, sem sentido na doutrina, sem conteúdo nas leis. (BONAVIDES, 2003, p. 283). É possível notar que as gerações atuais optam por exercer seus direitos expressivos por meio da internet. A web 2.0 serve de grande atrativo para a articulação dos movimentos sociais, pois nela é possível a interação coletiva por intermédio de comunidades formadas em torno de interesses específicos, dar apoio a causas, além de discutir temas individuais ou temas de relevância coletiva, levando assim a opinião pública a reflexão e disseminar informações políticas e sociais (VALENTE; MATAR, 2007). Segundo seus criadores, a internet é uma mídia que agrega todos as outras e permite a interação entre seus usuários, independente de sua localização geográfica (INTERNET SOCIETY, 2003). Assim, as formas de comunicação e consumo de informação começam a se modificar, deixando de ser unilaterais -marcados pelos meios de comunicação de massa - e passam a possibilitar participação um pouco mais democrática. Devido à interatividade, com a criação das redes sociais e blogs, a internet proporciona a todos seus usuários capacidade de produzir informação, ao invés de somente consumi-la. Ou seja, o internauta pode expressar livremente a posição, opinião e relato que achar conveniente, sem precisar passar por edição de uma linha editorial e de jornalistas como acontece no espaço reservado ao leitor das revistas e jornais, ou uma entrevista na TV e no rádio. Além disso, é objetiva e rápida. O usuário pode escolher consumir aquilo que lhe convém com apenas poucos cliques, tornando-se - 387 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 independente do que as grandes mídias tradicionais querem passar, deixando de ser um consumidor passivo. Hoje, há uma nova fonte de informação, que é muito difícil de se manipular, pois é livre. No entanto, é importante ressaltar que a internet possibilita um espaço que não necessariamente será utilizado por seus usuários. Ela permite um ambiente que congrega em si diferentes ferramentas e formas de conteúdo que podem ou não serem utilizadas para a participação política e para o fortalecimento da democracia. Conceitos de deliberação e deliberação online O conceito de deliberação passou por modificações de acordo com o tempo e possui interpretações distintas de autores de grande renome nas ciências sociais e políticas. Duas grandes linhas se separam e destoam ao tentar definir o que é deliberação e sua relação com a democracia: a linha decisionística, pensada por Rousseau, Weber, Schumpeter, Rawls e a linha argumentativa, pensada por Habermas, Cohen e Bohman. (AVRITZER, 2000) A linha decisionística de deliberação privilegia o ato da decisão do processo deliberativo e desvaloriza o poder da argumentação. A linha argumentativa, pelo contrário, valoriza o aspecto do debate e da participação dos indivíduos no processo. Weber e Shumpeter são os principais autores da linha decisionística. Avritzer sintetiza a linha contrária ao debate público em dois pontos principais: O primeiro desses elementos seria o ceticismo em relação a debates envolvendo culturas distintas; o segundo seria a percepção de que a complexidade administrativa seria contraditória tanto com a participação quanto com a deliberação (AVRITZER, 2000, p. 28). Shumpeter vai além em sua ideia anti-argumentativa. Ele reforça a ideia decisionística por meio da ''rejeição das formas públicas de discussão e - 388 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 argumentação e a identificação das práticas decisórias com o processo de escolha dos governantes'' (AVRITZER, 2000, p.30). No entanto, o representante não precisa representar, necessariamente, a opinião de seu eleitor. A partir de eleito, o governante deve ter poder de decisão sem depender de seu eleitorado, exercendo o poder de líder, cabendo as pessoas apenas elegê-lo. Habermas é o autor responsável por reintroduzir o papel argumentativo da deliberação. Para o autor, a deliberação é o "ato intersubjetivo de comunicação e argumentação, cujo o objetivo é alcançar um consenso sobre a solução para determinado problema social" (HABERMAS 1997, p. 305). Para Habermas, ao contrário dos autores decisionísticos, o simples instrumento do voto não é suficiente para legitimar a democracia. Isso fica claro no princípio (d) estabelecido por ele. Avritzer propõe analisar este princípio sob a perspectiva da legitimidade na política. Este princípio não considera um confrontamento entre vontades da maioria e minoria, mas sim ''uma discussão racional entre indivíduos racionais'' de modo que ''não é suficientemente legítimo dizer a minoria que ela possui menos votos, é preciso chegar a uma posição no debate político que a satisfaça'' (AVRITZER, 2000). Assim sendo, Habermas defende a formação de uma esfera criada pelo Estado voltada para argumentação e e debate: a esfera pública. A esfera pública é um espaço de interação entre os indivíduos, que debatem tendo em vista a construção e a manifestação de uma opinião pública, que pressupõe a participação da sociedade civil na decisão política (LOSEKANN, 2009; SAMPAIO, BARROS, MORAES, 2012). Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia de 2015, 51% dos brasileiros afirmam não usar a internet, sendo que 91% dos que utilizam afirmam que nunca expressaram opiniões em fóruns ou consultas públicas em sites relacionados ao governo e 92% nunca participaram de enquetes relacionadas ao governo. Contudo, se em 2014, 26% afirmavam utilizar a internet todos os dias, em apenas um ano este número saltou para 37%. O número de - 389 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 pessoas tente a crescer de acordo com a classe socioeconômica e quanto menor for a idade, sendo a região centro-sul a que mais utiliza a rede. (BRASIL, 2014). Desses dados podemos concluir que os jovens tem uma familiaridade maior com a internet e seu uso tende a um maior crescimento de acordo com o tempo, de forma que em um ano o número de usuários teve um avanço considerável. No entanto, o meio virtual está sendo pouco utilizado para espaço de debate e deliberação entre os brasileiros, mas é importante ressaltar que a esfera pública não se restringe a órgãos públicos e esta forma de debate pode ocorres em outros espaços, como as redes sociais. Alguns dos pressupostos para a deliberação como a pluralidade, o respeito mútuo, a equidade e a inclusividade (HABERMAS, 1997; COHEN, 1989; BOHMANN, 1996) ainda não são abrangidos se levarmos em conta a desigualdade atual entre os usuários do meio. No entanto esse cenário tende a se mudar em pouco tempo, visto que todos os indicadores relacionados à internet estão em crescente melhora. O dado que mais chama a atenção é que o que mostra que aqueles que utilizam a internet não a estão usando como esfera pública, ou seja, os atores sociais não estão utilizando as ferramentas da Web para deliberação pública. A participação, conceito crucial para a democracia deliberativa, não está acontecendo. Barros e Sampaio defendem que a tecnologia por si só não são capazes de promover o engajamento civil. Para os autores: Trata-se de uma sobrecarga de exigências às quais a internet isoladamente, como um meio tecnológico provedor de novas ferramentas, não tem demonstrado capacidade de atender. As esperanças depositadas na participação civil mais direta, orientadas pelas novas possibilidades técnicas, não podem ser desvinculadas de ações de estímulo ao engajamento cidadão. A tecnologia, de qualquer forma, não tem condições de reduzir a apatia política por si só, uma vez que quem não se sente inclinado a atuar politicamente simplesmente não o faz independente de qualquer tecnologia (BARROS; SAMPAIO, 2011, p.93). - 390 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Mesmo assim, é preciso considerar que a internet é um fenômeno relativamente recente e que apesar das defasagens que possui "nunca cidadãos comuns produziram tanto conteúdo comunicacional, inclusive de caráter político, como ocorreu a partir do advento da comunicação em redes digitai distribuídas" (SILVEIRA, 2009, p. 81-82). Se considerarmos o que diz Maia, percebemos que a internet ainda não está sendo capaz de fornecer aos atores sociais uma politização em maior nível. ''A aquisição de habilidades políticas e deliberativas também está relacionada com a frequência das conversações políticas, com a extensão das redes de discussão e com a heterogeneidade dos participantes'' (MAIA, 2008, p.87). Salter (2004) vai criticar as análises otimistas da internet defendendo que que a ''internet não é capaz de nada sem pessoas fazendo algo com ela'' (p. 2004). Com essa afirmação, Salter trata a internet como ferramenta, de modo que, mesmo com enorme potencial deliberativo e democrático, sua forma de utilização depende dos seus usuários. Ela poderá ser utilizada como esfera pública apenas se as instituições, organizações, coletivos e indivíduos assim desejarem. (SAMPAIO; BARROS, 2011). Características da Web 2.0 Criada durante a década de 70, o que nós conhecemos atualmente como internet nasceu durante a Guerra Fria como uma plataforma simples de troca de mensagens para manter a comunicação entre as bases militares. Hoje a internet é uma estrutura capaz de facilitar a propagação de informação e colaboração mundial independentemente da localização geográfica (ALMEIDA, 2005). Com a expansão de usuários on-line, consequentemente as demandas por melhorias aumentarem e em 2004, a empresa O'Reilly's Media e CMP lançaram uma conferência que mostrava para onde as inovações dessa nova internet apontava. Essa nova era on-line foi chamada de Web 2.0. - 391 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Web 2.0 é um conjunto de tendências econômicas, sociais e tecnológicas que coletivamente formam a base para a próxima geração da Internet - a médio mais maduro, distintivo caracterizado pela participação do usuário, abertura e efeitos de rede (MUSSER, O'REILLYS, 2007, p. 5). A segunda geração da plataforma de serviços on-line foi criada para potencializar os recursos e ferramentas que já não eram suficientes na web 1.0. Suas principais características são a expansão das formas de publicação, compartilhamento e interação entre os participantes desse meio. Dentro desse contexto de melhoramento e das ferramentas da web que surgem grandes repercussões sociais (PRIMO, 2007). Para O'Reillys (2005), os limites funcionais da web 2.0 não podem ser demarcados pois ela por si só é apenas um núcleo que ao redor estão os princípios e práticas que aproximam vários sites que os acompanham. Um desses princípios é utilizar a Web como uma plataforma, isto é, tornar online as funções que antes só poderiam ser feitas por programas específicos instalados no computador. O autor também enfatiza o que ele chama de "arquitetura da participação", que é um sistema que incorpora recursos de compartilhamento, como as redes peer-to-per (p2p), usada na troca de arquivos digitais. Esse recurso faz com que seja possível baixar e disponibilizar arquivos on-line. Quanto mais pessoas utilizarem da rede mais arquivos são disponibilizados. Isso mostra de como, segundo O'Reillys, a Web 2.0 se torna cada vez mais efetiva quando mais pessoas usarem. O'Reillys também destaca a transição da segunda geração da Web de publicação para participação como por exemplo, os blogs com a ferramenta de comentários; a substituição de álbuns virtuais pelo Flickr, onde os usuários não só podem publicar suas fotos como podem buscar fotos pelo o sistema; diretórios, enciclopédias on-line, jornais on-line, revistas on-line, enciclopédias escritas com colaboração do conteúdo de todos usuários como a Wikipédia, e sites como webjornalismo participativo como o Wikinews. O grande crescimento do número de blogs também ilustra essa "arquitetura de participação" da Web 2.0. Embora descritos como mero diários, os blogs se tornaram um grande centro de conversação (PRIMO, - 392 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 SMANIOTTO, 2006). Através dos blogs é que pequenos e grandes grupos de amigos e nichos específicos podem interagir. É desse aprimoramento das funções de interação que a Web vira local de encontro para usuários interessados em dar força para seus movimentos e discutir assuntos de cunho social. Pensando em um ambiente que permita que o cidadão participe e manifeste suas opiniões sobre algum assunto ou tema social nascem sites específicos para isso. Um exemplo disso são algumas redes de sites do grupo tecnológico Webcitizen3. A arquitetura participativa e deliberativa do VotenaWeb O VotenaWeb se apresenta como um site de engajamento cívico e apartidário, que tem como objetivos aumentar a polarização da sociedade, e se compromete em levar os resultados da participação civil ao Congresso. Foi criado em novembro de 2009 pela Webcitizen, empresa que tem como foco a criação de canais de participação cidadã. O site, além de tornar público projetos de lei do Congresso Nacional do Brasil possibilita que o cidadão vote, simbolicamente, se concorda ou não com as propostas dos parlamentares. Uma de suas principais características são os resumos apresentados, formulados por analistas - a partir do texto do projeto de lei original - que buscam traduzir os termos utilizados para uma linguagem mais próxima a do público. Quando a lei passa por votação na Câmara e no Senado o site apresenta uma comparação entre o voto dos legisladores e dos usuários. Um ponto importante da arquitetura do website VotenaWeb é que ele permite que se visualize a computação dos votos em um parâmetro geral dos usuários, mas também divididos em categorias de gênero, idade e estado. Além dessas possibilidades, há um mapa do Brasil com a divisão de votos por estado que apresenta as diferenças da votação por escala de cores. Outros aspectos da arquitetura do referido site podem ser citados, como por exemplo, a divisão dos projetos de lei apresentados em categorias, como, economia, saúde, trabalho, cidades, cultura, esporte, transporte, entre outras. - 393 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 No site, também há duas ferramentas de busca, por filtros pré-estabelecidos, ou por palavras-chave. O VotenaWeb requer que o cidadão participe, vote e opine. Por isso, para averiguar a contribuição deste website para a deliberação on-line é necessário valer-se de métodos de análise quantitativos, qualitativos e descritivos. Neste capítulo as figuras apresentam a interface e as ferramentas do VotenaWeb, bem como a análise dessas ferramentas. O VotenaWeb pretende ser um portal interativo, informativo, participativo e utiliza ferramentas da web 2.0 para cumprir sua proposta. Seu design é simples e intuitivo, de modo que o os usuários não possuem grandes dificuldades e obstáculos para utiliza-lo. As informações são colocadas de maneira objetiva, sem excesso de informação e ferramentas são disponibilizadas para agilizar o acesso, caso o usuário esteja procurando por uma lei ou parlamentar específico. Após um login, que pode ser feito através de cadastramento ou por meio das redes sociais Facebook ou Google+, pode navegar livremente pelo site, e utilizar todos seus recursos. Conclusão: o que é possível aprender com o exemplo do VotenaWeb? Mesmo não sendo o VotenaWeb um site deliberativo, o website tem uma importante função na comunicação democrática e no acesso à informação pelos cidadãos. A aposta na interatividade e o uso intuitivo e simplificado das ferramentas da Web 2.0 como forma de disseminação da informação talvez seja a maior virtude do portal. Para isso, a plataforma fornece layout objetivo e intuitivo por meio de ferramentas simples de fácil acesso, muito diferente da maneira que a maior parte dos órgãos públicos tratam o acesso à informação e a participação social, o que faz com que o site seja um importante espaço para a difusão da informação, o debate e a construção de uma identidade política. É preciso ter em vista que mesmo ainda não sendo totalmente abrangente, a internet e suas ferramentas são um fato e uma realidade que cada vez mais passa a fazer parte da vida dos cidadãos e o VotenaWeb como - 394 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 importante ferramenta de politização por meio da informação. Ou seja, o espaço existe, está se expandindo e é preciso iniciativas que saibam utilizá-lo de forma cidadã e em benefício da democracia. Segundo Brandão (2007, p.10): "O processo comunicativo que se instaura entre o Estado, o governo e a sociedade com o objetivo de informar para construir a cidadania". As informações disponibilizadas sobre os projetos de lei pelo VotenaWeb podem parecer, em um primeiro momento, simplistas ou superficiais, pois resumem uma proposta em uma linha. Entretanto, existem ferramentas que disponibilizam os projetos na íntegra de maneira completa e aprofundada. Não é possível saber ao certo a quantidade estatística de pessoas que de fato leem por inteiro o projeto que discutem e/ou votam e interagem, as pessoas que participam conscientemente e que deixam suas emoções de lado ao comentarem e discutirem, mas isso não é de responsabilidade do VotenaWeb: a proposta do site é construir a democracia oferecendo meios de informação, expressão e debate, como já dito, se os cidadãos não possuem uma cultura de informação e debate, não será uma plataforma que por si só poderá solucionar o problema. Se o Brasil já é um país pouco participativo nas questões políticosociais, onde a democracia é pouco representativa e de difícil acesso aos cidadãos na vida offline, o online tende funcionar da mesma maneira. Neste sentido, iniciativas que ofereçam subsídios para que o debate ocorra de maneira organizada e acessível, devem ser valorizadas. Além do site tradicional, com as qualidades e defeitos já apresentados, destaca-se a versão para smartphomes do VotenaWeb, o que mostra certo esforço do portal em acompanhar as transformações tecnológicas, ao contrário de iniciativas públicas, que geralmente dificultam o acesso à informação. Segundo o VotenaWeb, os criadores da plataforma ''ficam encarregados de levar ao Congresso os resultados desta participação popular''. Entretanto, não há garantia de que isso será cumprido e mesmo que seja, não há garantia de que os parlamentares farão algo a partir destes resultados. Em todo caso, não há participação efetiva dos parlamentares por meio da plataforma. Ou seja, há uma participação relevante dos atores sociais - 395 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 no que diz respeito ao uso cidadão das ferramentas disponíveis no portal, mas não há retorno do setor político. A tentativa de aproximação entre cidadãos e políticos, proposta do VotenaWeb, acaba sendo unilateral e sua efetividade se restringe no que diz respeito ao acesso à informação e monitoramento das leis que tramitam no congresso por parte apenas dos usuários. Esse ponto negativo do portal é crucial para a motivação à participação, pois os cidadãos saberiam que seu esforço em fazer parte da plataforma por meio do engajamento online não teria algum tipo de efetividade prática na configuração política e nas leis propostas e aprovadas. Além disso, a efetividade seria ainda maior caso os políticos utilizassem as informações coletadas por meio da participação no portal em benefício dos cidadãos representados, interagissem, respondessem os comentários e de fato participassem do canal. Concluímos que o website possui limitações e que as ferramentas online não são utilizadas em sua potencialidade. Mas, a partir de um contexto de cidadania e de participação on-line é possível verificar que a arquitetura do website favorece a participação, mesmo sem o engajamento cívico, e que os processos comunicativos e interativos inerentes à essa plataforma on-line são um passo em direção a uma prática cidadã mais ampla. Referências Bibliográficas ALMEIDA, J. M. F. de. Breve história da INTERNET. Universidade do Minho. Departamento de Sistemas de Informação. 2005. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/3396/1/INTERNET.pdf> Acesso em 29/03/15 AVRITZER, Leonardo. Teoria democrática e deliberação pública. 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Essas tecnologias possuem interfaces computacionais que interferem nos modos de produzir e acessar informação e propiciam o surgimento de um novo sistema hibridizado, em que homens e máquinas, direcionados por suas formas de interação, modificam o fluxo informacional, trazendo aumentos exponenciais. Assim, realizam ações que favorecem o efetivo acesso à informação e ao conhecimento – matérias primas indispensáveis para o desenvolvimento global da humanidade. Na Internet e na Web, a informação não está mais unida à estrutura característica da obra impressa. A informação passou por diversas transformações, e atualmente sua morfologia pode ser textual, sonora, imagética estática ou em movimento em um mesmo ambiente - chamado de - 399 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 multimidiático, permitindo que cada usuário interaja com o conteúdo informacional de acordo com o seu interesse, construindo seu próprio caminho de navegação pelos documentos e/ou parte deles utilizando-se dos links que ele próprio realiza. A mudança no modo que às pessoas se relacionam com a informação e seu impacto na sociedade se baseia na essência da Internet: sua dinâmica e sua capacidade de extinção das fronteiras para possibilitar o acesso global a diversos tipos de informação. A personalização tecnológica proporcionada pela Web Colaborativa – chamada também de Web 2.0 e que permite ao usuário novas maneiras de interagir com o conteúdo encontrado, deixando apenas de ser ator para se tornar autor dos conteúdos – abriu novas possibilidades para o desenvolvimento de produtos e serviços agregados e, dessa forma, ampliou a presença do usuário comum na coordenação de ações de produção, organização e difusão de informações voltadas a públicos segmentados pela natureza das redes sociais aos quais pertencem. Visualizamos a globalização em todas as esferas e o emergir do cidadão como criador de conteúdo. Com o objetivo de atingir esse propósito de mundo globalizado, as estruturas e processos de governo têm sido cada vez mais transformados. Dessa forma, observamos que esses processos já influenciaram, inclusive, na formulação de políticas públicas, como é o caso do Marco Civil da Internet, Lei 12.965/14. Dessa maneira, é possível analisar que as velhas formas centralizadoras da formulação dessas políticas - que devem atender a dois elementos essenciais: (1) como resolver, de forma eficaz e eficiente os problemas sociais e (2) responder ao controle popular - vem sendo substituídas por novos formatos, principalmente no que se tangem as estratégias de governança compartilhada e de colaboração. Com as novas estratégias, é possível observar que a era colaborativa assumiu seu papel inclusive na política, e cada vez mais é possível que a atuação popular incentive a formulação e implantação de políticas públicas – mais que os próprios instrumentos de comando e controle operados pelas instituições formais e, portanto, oferecem elementos potenciais para - 400 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 promover uma melhor governança. Esse processo de formulação compartilhada é chamado de policy network (rede de políticas), que está emergindo como uma nova conformação descentralizada no marco da governança. A policy network é baseada na interdependência das relações (formais e informais), a confiança e a negociação entre interesses governamentais e não governamentais, possibilitando ações colaborativas entre diversos agentes. A teoria de redes sociais permite conhecer e analisar os elementos e atores ou agentes que podem interagir no processo de formulação de políticas públicas, assim como as relações que emergem dessa interação, oferecendo informações relevantes para o planejamento e implementação de estratégias destinadas ao fortalecimento da participação e da ação coletiva entre os diferentes agentes envolvidos - que também é a metodologia da policy network. Assim, correlacionar as redes sociais, se torna mais eficaz se pensarmos em sua definição. De acordo com Recuero (2009, p. 23), podemos defini-la da seguinte forma: Um conjunto de dois elementos característicos que servem de base para que a rede seja percebida e as informações a respeito da mesma, compreendidas: atores, os quais podem ser pessoas, instituições ou grupos; e suas conexões (interações ou laços sociais). Cardozo (2008) aponta a grande questão desse tipo de rede: a valorização dos elos criados, por meio de estruturas hierárquicas. De forma bastante concisa, podemos afirmar que uma rede social é um conjunto de usuários, que unem ideias e interesses em prol de um grande interesse comum e compartilhado. Com os avanços da web, principalmente pós-emergência da web 2.0, as redes sociais tornaram-se cada vez mais presentes dos processos sociais. Sites de redes sociais, aplicativos, fóruns de discussão: as ferramentas passaram a ser usadas com afinco, a fim de maximizar as possibilidades de - 401 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 colaboração e compartilhamento de informações, principalmente na era da convergência digital. Costa (2008) afirma que as Redes Sociais são sites agregadores de pessoas, onde o seu funcionamento se dá de forma bastante simples: o usuário cria um perfil com informações pessoais, possui uma rede de amigos e pode participar de comunidades de interesse comum. Dessa forma, os participantes podem trocar mensagens e conteúdo entre si, ou seja, funcionam através da interação social, tendo como principal objetivo conectar pessoas e proporcionar sua comunicação e, portanto, sendo utilizados para forjar laços sociais. Da mesma forma, a policy network busca, a partir dos estudos das redes sociais, tornar as políticas públicas comuns aos indivíduos, pressupondo que o os mesmos não atuam de maneira isolada, mas sim condicionados pelas relações que conseguem desenvolver. Assim, a estrutura da rede social condiciona os recursos disponíveis, favorecendo a ação coletiva e com isso, pode afetar a governança - que sendo também parte dos atores, deverá agir e propiciar aos outros atores uma decisão coletiva e resoluções baseadas na coletividade. Questionamos assim, como a web colaborativa e as redes sociais nessa fase da convergência dos dados podem influenciar e intensificar o processo de democracia participativa na formulação de políticas públicas de informação? Para que se compreenda o processo de formulação de políticas e sua relação com a web colaborativa, é necessário visualizar essa relação sobre a perspectiva da policy network, e seus diversos atores. Essa pesquisa busca entender essa relação e propor uma maior difusão da democracia participativa, pensando sobre a ótica da Ciência da Informação (CI) e da teoria das redes sociais. Nesse processo, é necessário que se justifique a importância da relação da web colaborativa com os processos democráticos e políticos. Em sua primeira geração, Primo (2008, p. 58) afirma que a principal característica da web sempre foi ser simples, tanto na recuperação de suas - 402 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 informações, quanto na disponibilidade e difusão dos dados em rede. Essa simplicidade no fator difusão também se refletiu na interação dos seus usuários. Nessa fase, as funções do usuário eram deveras básicas e se resumiam em acessar uma página e clicar em algum conteúdo que lhe interessasse, podendo apenas consumir esse conteúdo, sem muitas possibilidades de interagir com o ambiente. Isso se deve, segundo Berners-Lee (2001), ao fato de os computadores possuírem uma forma automatizada de representar o conhecimento através dos seus dados e metadados. Com esse aprimoramento, o que se pode observar é uma mudança gradativa em como a Web passou a ser construída e também consumida. Quanto mais avançada a tecnologia, mais avançadas se tornam as atividades do usuário. O que anteriormente se resumia a clicar num conteúdo em algum portal ou home page e apenas consumir a informação, passou a se tornar basicamente obsoleto, já que as tecnologias de informação estão diretamente ligadas a comunicação e sua difusão. De acordo com o Primo (2007), o momento onde a colaboração passou a ser parte da Web foi nessa segunda geração, chamada de web colaborativa. Nesse fenômeno, todas as maneiras de compartilhar, publicar e organizar as informações online passa a ser potencializada, visto que todos os usuários têm a possibilidade de consumir, construir e disseminar as informações disponíveis. Essas possibilidades criadas pela nova geração da Web trouxeram a necessidade de interpretar, entender e estudar a forma como esses usuários compartilham e constroem conteúdos. A Ciência da Informação inicia seu papel nesse ponto – onde é necessário entender como o usuário faz uso da sua possibilidade de colaborar com o ambiente virtual em que está inserido. Destacamos aqui, então, a importância dos estudos da CI sobre a Web. Para melhor entender esse contexto, expomos as três características gerais da CI, segundo Saracevic (1996, p.42): - 403 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Primeira, a CI é, por natureza, interdisciplinar, embora suas relações com outras disciplinas estejam mudando. A evolução interdisciplinar está longe de ser completada. Segunda, a CI está inexoravelmente ligada à tecnologia da informação. O imperativo tecnológico determina a CI, como ocorre também em outros campos. Em sentido amplo, o imperativo tecnológico está impondo a transformação da sociedade moderna em sociedade da informação, era da informação ou sociedade pós-industrial. Terceira, a CI é, juntamente com muitas outras disciplinas, uma participante ativa e deliberada na evolução da sociedade da informação. Dessa maneira, esse estudo justifica-se pela responsabilidade dos estudos da Ciência da Informação para a difusão da formulação das políticas públicas de informação, ao ponto que cabe ao gestor da informação a capacitação, difusão e propagação destas políticas, podendo usar da teoria das redes sociais para a democracia participativa, tendo em vista que no cenário atual, a participação nos processos de âmbito público, se dão de maneira pouco divulgada, o que gera participação apenas dos indivíduos que conhecem ou já possuem alguma participação política. Entendemos a participação social como um processo que é resultado da ação intencionada de grupos ou indivíduos que buscam por metas específicas, em função dos mais diversos interesses um contexto de tramas concretas de relações sociais e de poder (VELÁZQUEZ;GONZÁLEZ, 2003). Quando visualizamos, então, a participação social efetiva em meios decisórios, é necessária que a informação seja disseminada através de meios mais acessíveis e participativos. Para isso, visualizamos as políticas públicas desde a perspectiva relacional das redes sociais, apresentando os principais aspectos metodológico-conceituais embasados na abordagem da policy network, de modo a contribuir para o debate sobre participação, formulação, disseminação, democracia e políticas públicas, desde o reconhecimento da importância das relações sociais. 2 Ciência da Informação e a Web Colaborativa - 404 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 No seu surgimento, em 1969, criada pela Advanced Research Project Agency (ARPA), e conhecida como ARPANET, a internet tratava-se de uma rede de comunicação flexível e descentralizada baseada em comutação por pacote (packet switching), e seu principal objetivo era garantir que a informação não se perdesse em caso de falha no sistema que usavam, ou destruição do mesmo. A grande razão para a criação deste projeto foi a preocupação gerada pelos conflitos da Guerra Fria, onde era necessário desenvolver um sistema de telecomunicações que fosse descentralizado e, dessa forma, imune a ataques localizados. Para Castells (2007, p. 44) [...] a ARPANET, rede estabelecida pelo Departamento de Defesa dos EUA, tornou-se a base de uma rede de comunicação horizontal global composta de milhares de redes de computadores. [...] Essa rede foi apropriada por indivíduos e grupos no mundo inteiro e com todos os tipos de objetivos, bem diferentes das preocupações de uma extinta Guerra Fria. Em sua primeira geração, a web, segundo Primo (2008, p. 58) tinha a principal característica de ser simples, tanto na recuperação de informações quanto na disponibilização e publicação dos dados em rede. A simplicidade de sua representação era vastamente observada na simplicidade de sua interação. Durante esse período, o usuário possuía recursos bastante escassos para sua interação nos websites. Sua função principal era de consumidor dos conteúdos, sem a possibilidade de interagir com os conteúdos. Isso se deve, segundo Berners-Lee (2001), ao fato de os computadores possuírem uma forma automatizada de representar o conhecimento através dos seus dados e metadados. Após a evolução e aprimoramento dos computadores, seguido da criação de novos meios de acessar a web, a informação passou a tramitar de outra forma na rede: - 405 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Popularizado na segunda metade dos 1970, o seu uso criou processos de inovação tecnológica que se reinventam e se desdobram de maneira polivalente como tecnologias cotidianas. De acordo com esse desdobramento, nos últimos 50 anos testemunhou-se um crescimento exponencial, tanto na capacidade computacional quanto na sua disseminação propriamente dita - os computadores e seus subprodutos e sistemas estão praticamente em todos os lugares como inovação emblemática dos séculos XX e XXI. (JORENTE; NAKANO, 2012, p. 3). Com esse aprimoramento, o que se pode observar foi uma mudança gradativa na maneira com que a web passou a ser construída e seus conteúdos consumidos. Quanto mais avançada a tecnologia, mais avançadas se tornam as atividades do usuário. O que anteriormente se resumia a clicar num conteúdo em algum portal ou home page e apenas consumir a informação, passou a se tornar basicamente obsoleto, já que as tecnologias de informação estão diretamente ligadas a comunicação e sua difusão. De acordo com o Primo (2007), o momento onde a colaboração passou a ser parte da Web passa a ser a segunda geração, chamada de web colaborativa. Nesse fenômeno, todas as maneiras de compartilhar, publicar e organizar as informações online passa a ser potencializada, visto que todos os usuários tem a possibilidade de consumir, construir e disseminar as informações disponíveis. Para Berners-Lee, em entrevista ao portal ComputerWorld (2007), essa nova geração da Web pode ser chamada também de Web Semântica: A Web Semântica é sobre a colocação de arquivos de dados na Web. Não é apenas uma Web de documentos, mas também de dados. A tecnologia de dados da Web Semântica terá muitas aplicações, todas interconectadas. Pela primeira vez haverá um formato comum de dados para todos os aplicativos, permitindo que os bancos de dados e as páginas da Web troquem arquivos. Para representar essa mesma geração, a empresa estadunidense O’Reilly Media criou em 2004 o termo Web 2.0. Com o novo termo, surgiram também novas características a serem apontadas nessa forma de acessar as - 406 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 informações. Segundo os criadores do termo, “2.0” não refere-se a questões ou especificações técnicas de seu desenvolvimento, mas a forma como é encara pelos usuários, através da possibilidade de interação e contribuição, através de Wikis, aplicações baseadas em folksonomia e a criação das Redes Sociais. Com a colaboração, outro fator que começa a chamar a atenção e rende pesquisas acadêmicas é a simultaneidade de acesso às informações. Qualquer pessoa, de qualquer lugar do mundo – que possua acesso à web – pode visitar o mesmo website no mesmo instante. Diversos veículos importantes de comunicação fazem uso dessas ferramentas de construção de conhecimento e compartilhamento de informações. Grandes jornais como a Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo possuem meios para o leitor interagir com a notícia – usando comentários via redes sociais, juntamente com a possibilidade de compartilhar as informações em rede – o que traz a reflexão de que essa é uma característica constante e marcante na web 2.0. Essas possibilidades geradas pela nova geração da web trouxeram a necessidade de interpretar, entender e estudar a forma como esses usuários compartilham e constroem os conteúdos. A Ciência da Informação inicia seu papel nesse ponto – onde é necessário entender como o usuário faz uso da sua possibilidade de colaborar com o ambiente virtual em que está inserido. Destaca-se, então, a importância dos estudos da Ciência da informação sobre a web. Dessa forma, é possível afirmar que é essencial para a Ciência da informação os estudos sobre a nova geração da Web e seus fenômenos, pois a transformação da maneira como a informação tem sido disseminada é proveniente desses fenômenos. Além de analisar melhor como inserir os mesmos em ambientes de atuação social, como no caso da formulação de políticas públicas de informação. 2.1 Políticas Públicas de Informação - 407 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Podemos entender as políticas públicas como um conjunto interrelacionado de decisões, cujo foco é uma área determinada de conflito social. Assim, trata-se de decisões, tomadas formalmente pelas instituições públicas, precedidas por um processo conhecido como formulação - ou elaboração, onde é necessária a participação de um vasto número de atores públicos e privados (VALLÉS, 2002).São, portanto, decisões tomadas pelos governos para resolver ou não problemas que atingem a sociedade. Uma política, então, é o resultado da participação de atores. A diversidade dos atores que participam do seu desenvolvimento, juntamente com seu grau de influência que demonstram o interesse da sociedade em determinados assuntos e problemas políticos. Falar de política pública envolve referir-se a processos participativos, decisões e resultados (LINDBLOM, 1991) - no entanto, isso não pode ser entendido como decisão harmoniosa e sem conflitos. A participação social é entendida como um processo social que resulta da ação intencionada de indivíduos e grupos que procuram metas específicas, em função de interesses diversos, em um contexto de tramas concretas de relações sociais e de poder (VELÁZQUEZ; GONZÁLEZ, 2003). Conhecendo os diversos atores que participam e as relações que se estabelecem, é possível revelar a estrutura social que estaria respondendo às necessidades sociais, impactando diretamente na capacidade das instituições e, portanto, na eficácia e eficiência da gestão pública e de sua difusão (VELÁZQUEZ; GONZÁLEZ, 2003). Dessa maneira, visualizamos como o processo de formulação das políticas, que é um fenômeno complexo, composto por diversos objetivos, interesses, valores e atores cercados por restrições que tentam compatibilizar os objetivos políticos com os meios para alcançá-los (HOWLETT et al., 2013), envolve decisões e interações constante entre indivíduos, grupos ou instituições. Assim, quando asseguramos que diversos atores participem deste processo, então também, assegurando os passos para garantir a democracia. Inclusive, estes são elementos essenciais nos atuais discursos para a - 408 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 fomentação de políticas públicas (MILANI, 2007).Porém, é necessário que os instrumentos da participação dos atores sejam cuidadosamente avaliados, bem como a necessidade de avaliar como se dá o processo de participação e sua comunicação: A comunicação pública é comunicação formal que se aplica à troca e ao compartilhamento de informações de utilidade pública, assim como à manutenção do vínculo social, e cuja responsabilidade incumbe às instituições públicas. (ZEMOR, 1995 apud JARDIM, 1999, p. 59). Mediante a participação as diferentes partes envolvidas poderiam realizar um processo de acompanhamento constante na formulação e discussão sobre o desenvolvimento. Além de que, também é útil para diminuir os conflitos do processo político e ajudar a implementação da política (RYDIN; PENNINGTON, 2000). 2.2 Teoria das Redes Sociais A Web colaborativa é uma transformação da chamada Web 1.0 cuja finalidade é possibilitar uma web resignificada, tanto do ponto de vista tecnológico quanto, sociocultural. Nessa Web, o internauta assume novo papel; o de produtor de conteúdos que interagem com outros conteúdos, uma vez que suas tecnologias proporcionam maior liberdade e sociabilidade informacional. Primo (2006, p.2) destaca que “Se na primeira geração da Web os sites eram trabalhados como unidades isoladas, passa-se agora para uma estrutura integrada de funcionalidades e conteúdo”. Dessa forma, é possível observar toda a nova formatação da Web: Web 2.0, essencialmente, não é uma Web de publicação textual, mas uma Web de comunicação multisensitiva. Ela é uma matriz de diálogos, e não uma coleção de monólogos. Ela é uma Web centrada no usuário de maneira que ela não tem estado distante de ser. (MANESS, 2007, p.43). - 409 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Nessa nova perspectiva, a maioria não quer apenas ser consumidor de conteúdos produzidos pela minoria. O que movimenta esse novo momento da Web é a criação de conteúdos e interações próprios. Essa geração da Internet é caracterizada, principalmente, pelo surgimento das Redes Sociais. Alguns exemplos de sites típicos são os blogs (e as variações fotologs e videologs), sites de compartilhamento de arquivos, Wikis (Wikipedia, Wiki Web, Webopedia), Comunidades Virtuais (Facebook, VK, Twitter, Instagram) e Fóruns de discussão. Diante dos novos métodos de publicação e circulação de informações, a web colaborativa também se apossa de processos coletivos para a organização e recuperação de documentos eletrônicos, através da folksonomia e a influência do usuário e seu vocabulário próprio na classificação dos conteúdos (PRIMO, 2006). O fenômeno das redes sociais e a troca de informações por milhares de pessoas, mudou a forma de relacionamento socialDe acordo com Recuero (2009, p. 23), podemos definir uma Rede Social da seguinte forma: Um conjunto de dois elementos característicos que servem de base para que a rede seja percebida e as informações a respeito da mesma, compreendidas: atores, os quais podem ser pessoas, instituições ou grupos; e suas conexões (interações ou laços sociais). Cardozo (2008) aponta a grande questão desse tipo de rede: a valorização dos elos criados, por meio de estruturas hierárquicas. De forma bastante concisa, podemos afirmar que uma Rede Social é um conjunto de usuários, que unem ideias e interesses em prol de um grande interesse comum e compartilhado. Costa (2008) compartilha desse pensamento quando afirma que as Redes Sociais são sites agregadores de pessoas, onde o seu funcionamento se dá de forma bastante simples: o usuário cria um perfil com informações pessoais, possui uma rede de amigos e pode participar de comunidades de interesse comum. Dessa forma, os participantes podem trocar mensagens e conteúdo entre si, ou seja, funcionam através da interação social, tendo como - 410 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 principal objetivo conectar pessoas e proporcionar sua comunicação e, portanto, sendo utilizados para forjar laços sociais. Para entender melhor o fenômeno das Redes Sociais e seu papel nessa questão de disseminação da informação, é importante buscar o grande responsável e protagonista dessa história. Quando foi que os usuários puderam realmente participar da criação de conteúdo informacional na Web? De acordo com Mika (2007), podemos apontar como responsável dessa primeira onda de socialização e criação de conteúdo na Web o aparecimento dos primeiros blogs. Sua principal característica era a diminuição de requisitos técnicos para adicionar informações na rede. Dessa forma, observamos que: Os blogs podem ser considerados como softwares sociais por permitirem a interação e o compartilhamento de informações entre usuários, tendo como foco a utilização da tecnologia no estímulo de interação entre pessoas e grupos. Dessa forma, os blogs adquirem importância no contexto da sociedade atual, por seu aspecto integrador, característica que justifica a importância de seu uso por usuários e instituições, especialmente bibliotecas. (VECHIATO; INAFUKO; VIDOTTI, 2010, p. 5). Por trazer essa maneira de interação bastante simples, os blogs passaram a crescer a partir de 2003. Porém, para que sua popularização fosse realmente eficiente, e os blogs chegassem a esse patamar, foi necessário que as plataformas se transformassem, tornando mais agradável técnica e visualmente. Com alguns anos no mercado da informação digital, os blogs – apesar de numerosos, ainda eram vistos como meros diários online: A progressão geométrica do número de blogs é uma recorrente ilustração da Web 2.0. Muito embora a imprensa insista em descrevê-los como meros diários online, reduzindo os a uma ferramenta de publicação individual e de celebração do ego, os blogs transformaram-se em um importante espaço de conversação (PRIMO; SMANIOTTO, 2006). - 411 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Porém, é necessário destacar que alguns autores, como Primo (2008, p.122), discordam dessa vertente que assume os blogs como diários pessoais. O autor aponta que blogs e diários pessoais apresentam características muito distintas – ainda que ambos sejam considerados formas de registros que seguem organização cronológica. A principal característica que diferencia um do outro é a forma intrapessoal e particular que o diário pessoal se volta, vendo que é considerado que o destinatário é o próprio autor; enquanto que nos blogs, a abordagem escrita é interpessoal, tendo como leitor outras pessoas conectadas na Web. Nessa mesma vertente, Clyde (2004) aponta que os blogs podem se apresentar de diversas formas. Podemos encontrá-lo como um diário pessoal, um jornal de uma expedição, um serviço de notícias, uma coleção de links para outros websites, uma série de resenhas de livros, um relatório de um projeto, dentre outros. Assim, mediante a evolução sofrida pelas tecnologias de informação e comunicação, os processos de difusão e colaboração das informações foram completamente modificados. Dessa forma, visualizamos a preocupação em estruturar, representar e organizar os conteúdos, como citado na introdução deste projeto. As Tecnologias de Informação e Comunicação possuem interfaces computacionais que interferem nos modos de produzir e acessar informação e propiciam o surgimento de um novo sistema hibridizado, em que homens e máquinas, pelas suas formas de interação, modificam, o fluxo informacional, trazendo aumentos exponenciais. Assim, tornam prementes ações que favorecem o efetivo acesso à informação e ao conhecimento, matérias primas indispensáveis para o desenvolvimento global da humanidade. Na Internet e na Web, a informação não está mais unida à estrutura característica da obra impressa. A informação passou por diversas transformações, e atualmente, sua morfologia pode ser textual, sonora, imagética estática ou em movimento em um mesmo ambiente - chamado de multimidiático, permitindo que cada usuário interaja com o conteúdo - 412 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 informacional de acordo com o seu interesse, construindo seu próprio caminho de navegação pelos documentos e/ou parte deles utilizando-se dos links que ele próprio realiza. A mudança no modo como as pessoas se relacionam com a informação e seu impacto na sociedade se baseia na essência da Internet: sua dinâmica e sua capacidade de extinção das fronteiras para possibilitar o acesso global a diversos tipos de informação, inclusive na formulação de políticas públicas de informação. Referências BARRETO, A. O que você vê?. AldoBarreto’s Blog, (S/L): 2012. Disponível <http://aldobarreto.wordpress.com/2012/07/23/o-que-voce-ve/>. Acesso em 17 Ago. 2015 em: HOWLETT, M.; RAMESH, M., PERL, A. Política Pública: seus ciclos e subsistemas, uma abordagem integral. ElServier, 2013. LINDBLOM, C. E. El Proceso de Elaboración de Políticas Públicas. Madrid: Ministerio para las Administraciones Públicas, 1991. MANESS, J. M. Teoria da Biblioteca 2.0: Web 2.0 e suas implicações para as bibliotecas.Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v. 17, n.1, p. 43-51, jan./abr. 2007. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/view/831/1464>. Acesso em: 11 nov. 2014. MILANI, C. R. S. O principio da participação social na gestão de políticas públicas locais: uma análise de experiências latino-americanas e europeias. Revista de Administração Pública, v. 42, n. 3, p. 551-579, 2007. PRIMO, A. O aspecto relacional das interações na Web 2.0. E- Compôs, Brasília, v.9, 2007. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos%5CR1916-1.pdf . 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In: SEMINÁRIO NACIONAL DE BIBLIOTECAS UNIVERSITÁRIAS, 16., Brasil. Anais... Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: . Acesso em:ago 2015 - 414 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Onde estão as celebridades? A (falta de) conformação entre a internet e os meios de comunicação tradicionais Marina Darcie - UNESP Maria Cristina Gobbi - UNESP Introdução Diversas possibilidades surgem com a Internet a cada dia, e uma delas é a grande teia de relações e o advento de novos personagens no sistema comunicativo que detêm, de forma tão semelhante quanto os veículos de comunicação tradicionais, o poder de influenciar e modificar a opinião do seu público. Essa realidade trouxe novas configurações para as relações e sociabilidades, além de colocar em pauta debates sobre a reconfiguração das tecnologias de comunicação na atualidade e o consumo ilimitado de imagem. Carreira (2015a, p.2) mostra que "os avanços tecnológicos mudaram os paradigmas na forma de produzir conteúdo audiovisual, de transmiti-lo e de acessá-lo"85, e salienta que "alteraram também o comportamento de quem o consome". Essa mesma questão é tratada por Sibília (2008) quando diz que o século XXI é extremamente globalizado e audiovisual, tendo criado um culto a imagem e à personalidade jamais visto em tempos anteriores. A autora acredita que as celebridades, que considera sendo essas personalidades extremamente vistas e expostas (daí a defesa e reiteração de que na rede qualquer pessoa possa ser detentora de um discurso visível), tenham saído do cinema para pertencerem a todos os tipos de telas, "inclusive 85 Disponível em http://www.labcomdata.com.br/wpcontent/uploads/2015/12/CarreiraKCPaperVersa%CC%83oFinal.pdf Acesso em 12 de janeiro de 2016. - 415 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 às dos ubíquos telefones celulares [...] Hoje como nunca, qualquer um realmente pode - e habitualmente quer, e talvez daqui a pouco inclusive deva - ser um personagem como aqueles que incansavelmente se mostram nas telas" (SIBILIA, 2008, p.245). Nesse sentido, defendemos que "formas de agir, de pensar, de se expressar e de se relacionar, são medidas pelos modernos meios de comunicação. A mídia [...] 'fabrica' mitos e ídolos, porém, tudo isto é realizado, de certa forma, em 'comum acordo' com o público que a assiste" (HEDAL, 1997, p.1). O mundo moderno está cheio de referências chamadas de heróis, ídolos ou celebridades. Esta relação entre sociedade e mídia é permeada pelo princípio básico de vender e consumir imagem. "Sejam heróis das conquistas políticas e sociais dos países, heróis das histórias em quadrinhos, heróis do cinema, ou heróis do esporte, a presença deles nos remete ao pensamento de que eles são referenciais às nações modernas" (HELAL; MURAD in HEDAL, 1997, p.4). Essas relações, somadas ao contexto atual, trouxeram para a rede online o costume de acompanhar um ídolo e consumir imagens em tempo recorde e de forma ilimitada. A internet é mostrada como canal mais utilizado para essas novassociabilidades no artigo de Carreira (2015a, p.3), que cita em seu trabalho a pesquisa Interactive Adversiting Bureau (IAB)86: [os internautas] consomem, em média, por semana, 8 horas de conteúdo audiovisual. Uma pesquisa da Interactive, Advertising Bureau (IAB) revela que 50% dos brasileiros acessam este tipo de conteúdo quando estão conectados à rede wi-fi e 22% veem menos TV porque preferem assistir o que desejam via celular.87 (CARREIRA, 2015a, p.3) Além disso, Jenkins (2009) afirma que o Youtube se destaca como ferramenta de acesso ao audiovisual na rede conectada. Nessa mídia social 86 Disponível em: http://iabbrasil.net/guias-e-pesquisas/mercado/uso-de-video-mobile-perspectivaglobal. Acesso em 4 de fevereiro de 2015. 87 Disponível em http://www.labcomdata.com.br/wpcontent/uploads/2015/12/CarreiraKCPaperVersa°/oCC°/o83oFinal.pdf Acesso em 12 de janeiro de 2016. - 416 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 um número substancial de vídeos é carregado todos os dias e qualquer pessoa, com o mínimo de tecnologia (um celular e acesso à Internet, por exemplo) pode subir seus vlogs88 e se tornar uma pessoa bastante conhecida na rede, através da quantidade de visualizações em seus vídeos e o compartilhamento destes em outras redes por uma cadeia de pessoas. Muitas pessoas comuns transformaram esta plataforma em um ambiente de trabalho, criando conteúdo para seu público online. Carreira (2015a, p.4) afirma que esses personagens "estão em constante conversação com uma leal base de fãs que atua ativamente neste novo ecossistema midiático"89. Esses personagens, os youtubers, devido ao grande número de seguidores na rede, se tornaram tão famosos quanto atores e cantores, ou seja, celebridades que foram evidenciadas através de um canal midiático tradicional. Aqueles "quinze minutos de fama" previstos por Andy Warhol nos longínquos anos 1960, como um direito de qualquer mortal na era midiática, exprimiam uma intuição visionária, mas ainda imersa num ambiente dominado pela televisão e pelos demais meios de comunicação unidirecionais. [...] Cabe concluir, então, que as redes informáticas e os meios interativos talvez estejam cumprindo essa promessa que nem a televisão nem o cinema conseguiram satisfazer. E, talvez, consigam fazêlo de uma maneira tão radical que aqueles pensadores do século XX jamais poderiam ter previsto.90 (SIBILIA, 2010) A celebridade: conceitos e contextos As celebridades, como as entendemos hoje, surgem no apogeu hollywoodiano. Nesse período, observa Marshall (1997), alguns atores e atrizes do cinema passam a transcender seus filmes e a criar uma "aura". Com a emergência do close-up na linguagem cinematográfica, a relação entre a audiência e os personagens passou a ser mais "íntima". Para 90 88 Diário em formato de vídeo que são carregados no Youtube. Seu conteúdo é semelhante ao de um blog, mas em formato audiovisual. 89 Disponível em http://www.labcomdata.com.br/wpcontent/uploads/2015/12/CarreiraKCPaperVersa%CC%83oFinal.pdf Acesso em 12 de janeiro de 2016. Disponível em http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci arttext&pid=S0009-67252010000200022 Acesso em 12 de janeiro de 2016. - 417 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Marshall, essa é uma das raízes do crescente interesse da audiência pelo artista. (PRIMO, 2009, p.107) Se unirmos, então, a fala anterior de Primo (2009) aos demais autores trabalhados aqui, perceberemos que a tecnologia tratou de modificar uma relação histórica entre personagens que unem representação, admiração e exposição máxima. O comportamento que observamos através de fã-clubes e mesmo fanzines91, entre outros, não sustentam, sozinhos, um ídolo e, mais do que isso, não fideliza o público. Esse contexto é resumidamente exposto na fala seguinte de Bauman (2001, p.46): "o 'público' é colonizado pelo 'privado'; o 'interesse público' é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimos, melhor)". Neste momento, é importante problematizar e relacionar conceitos (que acreditamos se referirem sempre ao mesmo personagem, ao longo da história) de mito, herói e ídolo ou celebridade, objeto deste trabalho. Desses termos tratados o mito é o personagem mais antigo e que deu origem aos outros dois: a figura era conhecida nas sociedades da Roma e Grécia antigas como divindades que possuíam determinadas características que representava a sociedade. Eram adoradas por explicar para a população aqueles fatos que não eram ainda demonstrados cientificamente e, principalmente, por impor alguma conformação social. O herói e o ídolo, derivados das figuras mitológicas, são construídos, o primeiro por atos heroicos superestimados socialmente e o segundo por conter características adoradas em determinado contexto. O herói é considerado diferente dos ídolos ou celebridades por alguns autores (HELAL, 1997; PRIMO, 2009) porque o herói precisa ter uma jornada, enquanto o ídolo é imagem. A personificação de atributos simbólicos parece converter a persona midiática numa espécie de Midas, ou santo. Afinal, através do artifício da 91 Revistas produzidas de fã para fã sem intenção comercial (algumas vezes vendidas a preço de custo) como uma forma de trocas simbólicas de conhecimento acerca de um produto midiático. - 418 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 simbolização, transforma em ouro, ou sacraliza, tanto aquilo que toca, como o lugar onde pisa, e tudo o mais que se associar a si, ao menos enquanto estiver vivendo a condição de 'celebridade'. (PIMENTEL, 2005, p.200) Todas as três figuras citadas possuem em comum o fato de serem representações sociais de adoração. Percebemos, no entanto, que com o desenvolvimento das sociedades e modificações econômicas, políticas, culturais, a imagem considerada um arquétipo (o mito da bravura, da coragem, do poder, enfim) foi progressivamente transformada em estereótipo. Muito dessa mudança ocorreu devido à cultura de massa e a eleição de imagens pelas mídias massivas de comunicação. Sibília (2010) mostra que "assim se projetam, por toda parte, esses fragmentos de vidas supostamente privadas que, mesmo sendo triviais — ou talvez precisamente por causa disso? —, parecem fascinantes diante da avidez dos olhares alheios"11. Com um olhar complementar, Pimentel (2005, p.194) mostra que a mídia cria estratégias "que fixem uma imagem 'pública' do seu 'eu', construindo-o [...] como uma espécie de personagem alegórico, ou um estereótipo. A demanda por aparição vem, inclusive, criando múltiplas oportunidades de negócios e trabalho em torno da fama". A palavra 'celebridade' virou termo corrente para indicar aqueles indivíduos que se transformam em alvo privilegiado das mídias. É importante, contudo, observar que o valor vinculado à fama, na forma como ela vem sendo percebida hoje por uma parcela considerável da população e das mídias, tem residido muito mais na exposição do indivíduo do que na sua substância acerca de algum saber. (PIMENTEL, 2005, p.194) Entretanto, nesta realidade da Galáxia da Internet (CATELLS, 2003), a celebridade precisa cada vez mais se apoiar em uma comunidade atuante de fãs que alimenta um forte sistema de recomendação e de divulgação online. Percebemos, a cultura participativa está fortemente ligada ao sentimento de reverência que os fãs nutrem por seus objetos de interesse, e - 419 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 defendemos que esse sentimento e a relação entre ídolo-fã é refletida principalmente para o espaço online devido às facilidades proporcionadas pela tecnologia, apesar de ainda existirem exemplos analógicos dessas relações mencionadas. Jenkins (2006) discorre em seu livro sobre o impacto que as tecnologias digitais causaram e o processo pelo qual os fãs estiveram incluídos para aprender a "usar esses novos artifícios mediáticos para incrementar, expandir, aumentar a visibilidade de suas comunidades de fãs" (NATAL, 2009, p.3) e de estar mais próxima e poder dialogar diretamente com seus ídolos e se fazer visto. Em contrapartida, as digital influencers que surgiram com as diversas redes sociais conectadas precisaram aprender a lidar com linguagem e conteúdo, mas, principalmente, a como cativar seu próprio público para ser propagado na rede em que se disponibilizou e, como consequência, fora dela em forma de nova celebridade. Existe conformação entre os meios de comunicação? [...] A internet oferece um outdoor com espaço para todos: nessas vitrines mais populares, qualquer um pode ser visto como tem direito. As opções são inumeráveis e não cessam de se multiplicar: blogs, fotologs, Orkut, Facebook, MySpace, Twitter, Youtube e um longo etcétera. Graças à rede mundial de computadores, enfim, parece que o acesso à fama tem se democratizado. [...] Embora não deixe de ser verdade que agora "qualquer um" pode ser famoso [...]. Porque cabe às telas, ou à mera visibilidade, essa capacidade de conceder um brilho extraordinário à banalidade exposta no rutilante espaço midiático.12 (SIBILIA, 2010) Retomamos o tópico com a fala da autora para problematizarmos a relação entre Internet e mídia tradicional e mostrar que novas ferramentas podem tirar os holofotes da fama de conformidade. A criação de conteúdos distintos para diversas ferramentas pode ser denominada de "intermidialidade ou interrelação de mídias. É um dos mais eficazes recursos para garantir a transmissão de informação, porque estimula uma variedade maior de percepções sensoriais que as simples mídias, atraindo, portanto, mais os leitores" (SILVA, 2010, p.55). Devido a essa nova modalidade de - 420 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 disponibilizar conteúdo em diversas plataformas, são geradas diversas ferramentas online que contém essa característica como finalidade principal. Dentre várias outras mídias sociais (Facebook, Twitter, Snapchat, Instagram e mesmo os blogs, entre tantas outras) o Youtube parece ser aquele que mais fideliza o público devido à proximidade e linguagem bastante informal. Foi criado em 2005 como um repositório de vídeos pessoais e, em apenas dez anos de existência, transformou o público e a forma de consumir audiovisual. O que era um sonho para os modelos tradicionais de mídia, como emissoras de televisão, está se tornando uma ameaça aos modelos de negócios desses conglomerados. Dentro desse novo contexto, foi criado o YouTube, em 14 de fevereiro de 2005, uma plataforma que transformou o conteúdo audiovisual online em um fenômeno de massas. (CARREIRA, 2015b, p.1) Nessa mídia é criado um diálogo entre "[...] pessoas comuns que através de seus canais, comentários, vídeos amadores e vlogs estão inseridas em uma imensa e complexa rede social que tem a sua própria lógica [...]" (HOLZBACH, 2010, p.232) e propagam seu conteúdo e aquele disponibilizado por outros usuários, dentro e fora da plataforma. Primo (2009) traz o conceito de "do it yourself celebrity", termo utilizado para definir pessoas que ganham notoriedade através do compartilhamento de conteúdo online e veem, nas comunidades virtuais, a possibilidade de se sobressair. Para o autor, "nas comunidades virtuais que emergem na internet, as expressões identitárias são discutidas e negociadas" (p.110) e, portanto, o contato imediato criaria contratos entre consumidores e produtores impossíveis sem esse tipo de tecnologia. Um outro estudo, intitulado "4 tipos de consumidores de vídeo" e publicado em novembro de 2014, pela empresa Google, aponta que das 30 horas médias semanais que vemos vídeo, 22 são gastas na TV e 8 na web. Foi neste rico ambiente, impulsionado por várias inovações tecnológicas com profundos impactos sociais, políticos e culturais, que o YouTube ganhou força desde 2005. O canal é acessado por mais de um - 421 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 1.000.000.000 de usuários por mês, 300 horas de conteúdo audiovisual são enviadas por minuto e a plataforma está disponível em 75 países.92 (CARREIRA, 2015a, p.4) Devido ao crescente uso e popularidade, os conglomerados midiáticos provavelmente não puderam ignorar a força que a plataforma possuía e, principalmente, alguns personagens bastante propagados. Com a crescente popularização do site e sua consequente apropriação por diversas instituições midiáticas, a mídia passou a ver o Youtube como um legítimo meio de comunicação de massa. Questões que permeiam as mídias "tradicionais", como a cultura das celebridades, e questões que tencionam esses elementos, como os vídeos amadores que transformam usuários da plataforma em celebridades, também são rapidamente analisados. (HOLZBACH, 2010, p.233) Atualmente, nessa plataforma existem conteúdos produzidos por pessoas consideradas "comuns" e também aqueles encomendados por emissoras e conjuntos midiáticos mais influentes. Além de vídeos contratados como publicidade que utilizam a influência de alguns youtubers. No YouTube existem desde conteúdos produzidos por grandes empresas de comunicação como outros feitos por amadores que, através do sucesso conquistado na plataforma, construíram seu próprio império de comunicação. Estes últimos [... ] com pouca estrutura e totalmente fora do modelo tradicional de mídia, ganharam, em pouco tempo, tamanha força que levou alguns inclusive para emissoras de televisão ou mesmo para Hollywood. (CARREIRA, 2015b, p.4) Um exemplo da força desse fenômeno que pode ser citado é o fato de que três desses youtubers (Hank Green, GloZell e Bethany Mota) foram selecionados para uma entrevista com o presidente Barack Obama na Casa Branca e transmitida ao vivo pelo YouTube em 2015. 92 Disponível em http://www.labcomdata.corri.br/wpcontent/uploads/2015/12/CarreiraKCPaperVersa°/oCC°/o83oFinal.pdf Acesso em 12 de janeiro de 2016. - 422 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Além desse, é impossível deixar de citar o canal "PewDiePie" que fala sobre jogos e tem mais de quarenta e dois milhões de seguidores, o maior do mundo todo. Felix Arvid Ulf Kjellberg, dono do canal, foi convidado em 2015 para lançar um livro, que chegou, neste ano, ao topo da lista dos mais vendidos. Seu canal ganha, em média, um novo assinante a cada 5 minutos. O canal "5incominutos", de Kéfera Buchmann (atualmente considerada atriz, apresentadora e escritora), existe há cinco anos no YouTube e conquistou, desde então, sete milhões e meio de assinantes. É, atualmente, o canal nacional mais influente. Desde que criou o "5incominutos", Kéfera já liderou um programa na Rádio Jovem Pan e outro na MTV, além de participar de um filme e lançar um livro (que na primeira semana em que foi liberado, alcançou recorde de vendas). Neste ponto vale ilustrar o que estamos abordando com uma simples comparação entre os números que envolvem, no YouTube, Felix Kjelberg do canal PewDiePie com a cantora Lady Gaga. Enquanto ele tem 37.000.000 de inscritos, a popular estrela do mundo offline tem 6.000.000 de inscritos. A performance dela, que possui a estrutura de uma gigantesca indústria de marketing por trás, é seis vezes menor do que o youtuber Felix que começou no YouTube em 2009. Fizemos mais uma comparação. Desta vez dele com a cantora Rihanna, outra cantora de sucesso. Ela tem mais do que 16.600.000 inscritos, o que corresponde a menos da metade do que o youtuber PewDiePie possui na plataforma. (CARREIRA, 2015b, p.9-10) Uma das possíveis razões para o sucesso dos youtubers é a propagabilidade do conteúdo que cria e veicula: esse conceito envolve o conteúdo, a linguagem, a proximidade e presença em outras mídias sociais e a atualização constante do canal. Quanto maior a nível de propagabilidade do canal, mais os fãs e internautas que o acessam aumentam a eficiência e o impacto do canal sem serem obrigados a tal, pois se identificam com o que ele faz. O youtuber sabe como o que produz é usado pelos fãs e como os mesmos - 423 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 fazem o conteúdo circular, pois eles são nativos digitais e compartilham com eles este mundo. (CARREIRA, 2015b, p.12) Considerações Este trabalho mostra brevemente que, com o avanço tecnológico e o desenvolvimento de mídias sociais digitais, o consumo de imagens mudou. Holzbach (2010, p.231) problematiza a questão quando diz que precisamos repensar o "papel do videoclipe na cultura contemporânea e a perda de seu status exclusivamente televisivo, sobre a maior participação da audiência no processo de criação de conteúdo midiático e sobre a popularização de novos fenômenos sociais". O surgimento de plataformas como o Youtube (mais intensamente trabalhado nesse momento) tensionam a relação da produção de vídeos entre o público de "pessoas comuns" com a mídia institucionalizada, forçando conglomerados a agregar personagens que surgiram na internet. Não atoa a indústria cinematográfica e literária lançam incansavelmente produtos que contam com a participação e muitas vezes levam o nome de celebridades nascidas no espaço online. Observamos também o importante papel que os fãs desempenham nessa cadeia produtiva porque eles são os maiores propagadores de conteúdo disponibilizado na rede e reforçam o status dos produtores independentes. O conjunto de fãs (fandom) tem papel fundamental porque desempenha um papel mais ativo e, por ser mais engajado, recomenda mais o conteúdo e colabora voluntariamente para a propagação. A indicação é uma espécie de farol que joga luz sobre algo que pode interessar ao internauta. Os fãs alimentam o ciclo que beneficia a exposição do canal e ajudam a criar a reputação, que "pode ser convertida em outras coisas de valor: trabalho, estabilidade, público e ofertas lucrativas de todos os tipos" (ANDERSON, 2006, p. 71).93 (CARREIRA, 2015a, p.8) 93 Disponível em http://www.labcomdata.com.br/wpcontent/uploads/2015/12/CarreiraKCPaperVersa%CC%83oFinal.pdf Acesso em 12 de janeiro de 2016. - 424 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Atualmente e nesse contexto tratado, Primo (2009, p.114) mostra que essas celebridades gozam de reputação cada vez maior nos seus círculos e muitos "utilizam sua popularidade e o conhecimento adquirido sobre a dinâmica de redes sociais para gerar negócios e outras oportunidades comerciais", como os vários exemplos mostrados nesse trabalho. Referências ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. Historia de la vida privada. Madri: Taurus, 1991. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. CARREIRA, K. Youtuber e conteúdo audiovisual propagável, 2015a. Disponível em http://www.labcomdata.com.br/wpcontent/uploads/2015/12/CarreiraKCPaperVersa%CC%83oFinal.pdf Acesso em 12 de janeiro de 2016. . O que Aprender com um Youtuber com Canal com Muitos Inscritos eVisualizações: Reflexões sobre Mídia Propagável, Comunidades de Fãs e Reputação. In: Intercom, 2015b, Rio de Janeiro. HELAL, R. MURAD, M. Alegria do Povo e Don Diego: reflexões sobre o êxtase e a agonia de heróis do futebol in HELAL, R. Cultura e Idolatria: Ilusão, Consumo e Fantasia. I Ciclo Finep Estudos da Cultura e do Imaginário - Cultura e Idolatria: Ilusão, Consumo e Fantasia. 1997. Disponível em https://comunicacaoeesporte.files.wordpress.com/2010/10/cultura-e-idolatria1.pdf HOLZBACH, A. D. Prestando muita atenção no Youtube. (resenha). Contracampo (UFF), v. 1, p. 231237, 2010. JENKINS, H. Fans, Bloggers and Gamers: Exploring Participatory Culture. 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TRIVINHO, E. Visibilidade mediática, melacolia do único e violência invisível na cibercultura: significação social-histórica de um substrato cultural regressivo da sociabilidade em tempo real na civilização mediática avançada. XIX Encontro Nacional da Compós. Rio de Janeiro: Compós, 2010. - 426 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 La influencia del streaming y la interactividad en redes sociales en los nuevos formatos radiofónicos en España Paloma López Villafranca - Universidade de Málaga / Andalucia Tech Introducción La radio ha evolucionado en los últimos años, aunque quizás no al mismo ritmo que otros medios de comunicación. Desde la irrupción de internet como configurador del nuevo marco mediático, son muchas las voces que disertan sobre crisis en el medio. García- Lastra (2012: 168) concreta esta crisis en la no evolución de la producción frente a los cambios que se producen en la emisión. Para autores como Rodero (2005:134) , la crisis se centra en los contenidos: La radio actual ha olvidado no sólo los contenidos, sino especialmente las fórmulas más creativas de presentación, en favor de una información de actualidad presentada de la forma más sencilla y, si puede ser, siempre en directo, es decir, de la manera más económica y fácil posible. Esta crisis de creatividad que acusaban los estudiosos en la materia, poco a poco desaparece gracias a nuevos elementos y herramientas que pretenden captar la atención de otros públicos. Aunque ciertos programas en radio permanecen inamovibles y siguen la misma fórmula de antaño, (como los magazines, programas estrellas de la parrilla de programación), aparecen nuevos espacios influenciados por la aplicación de las nuevas tecnologías. Martínez y Martínez (2013) considera que existen cinco generaciones de cibermedios, desde los inicios de internet a la generación de cibermedios para dispositivos móviles (smartphones y tabletas) y los cibermedios de pago. La - 427 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 radio ha ido incorporándose paulatinamente a la aplicación de estas nuevas tecnologías gracias a las herramientas 2.0. Cebrián (2009:13) destaca la importancia de la incorporación del correo, foros, chat y la locución de radio en internet: Son dos líneas de desarrollo que caminan, por un lado, en paralelo con enriquecimientos mutuos y, por otro, hacia una convergencia que se une en la ciberradio como una nueva concepción en la que se supera el origen de ambas procedencias para aportar un medio nuevo que exige otros planteamientos. La incorporación de las nuevas tecnologías determinan una nueva forma de hacer radio y la conformación de nuevos espacios. Estos nuevos formatos pretenden captar la atención de los públicos “nativos digitales”, tal y como podemos comprobar en la presente investigación. 1.1. La radio viral y la contribución a la interactividad de los usuarios en las redes sociales El fenómeno de las redes sociales en la radio española se produce entre los años 2009 y 2010. Según Peña y Pascual (2013), a través de internet se producen estrategias de captación de audiencia y cambian la relación con los oyentes que opinan, votan, etiquetan e incluso distribuyen los contenidos. Los autores subrayan la importancia de las redes sociales en la conformación de los espacios radiofónicos y la participación de los oyentes: La radio se encuentra en un momento iniciático en su experiencia de simbiosis con las redes sociales. Pese a ello, se constata el plus que estas plataformas aportan a la radio convencional, multiplicando las vías de participación de los oyentes y potenciando el clima de comunidad. Según Videla y Piñeiro (2013:85), con las tecnologías 2.0 el usuario se convierte en “un prosumidor, usuario activo que no sólo accede y consume contenidos, sino que los produce y los difunde”. Estamos ante un periodo en - 428 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 el que oyente-usuario está al mismo nivel que el profesional del espacio. Las redes sociales se convierten en la vía principal para participar en los espacios radiofónicos y dar a conocer los mismos al resto de usuarios, sean o no oyentes habituales de los programas. Estar presentes en las redes forma parte de una estrategia para promocionar espacios y captar oyentes a través de la viralización de los contenidos. Los internautas han conocido la existencia de espacios radiofónicos y de conductores de programas a través del posicionamiento del hashtag, la lucha por alcanzar Trending Topic, los perfiles de Facebook, Twitter e incluso Instagram. La incorporación de los Social Media a la radio ha propiciado además que se multipliquen los canales, a través de los cuales periodistas y medios pueden interactuar con el público, puesto que según Gallego (2012:220), se generan “nuevas dinámicas en la relación emisor- oyente que los profesionales del medio radiofónico están tratando de entender”. 1.2. La radio visual. La aparición del streaming visual marca un nuevo concepto del medio A la interacción en redes sociales, se suma la cada vez más prolífera utilización del streaming, que permite una evolución a lo que actualmente conocemos como Radio 2.0. Para García Lastra (2012: 2012) el streaming permite la transmisión en directo, sin las ataduras tecnológicas de la radio analógica y sobre todo, la radio a demanda a través del podcasting “libera al oyente de la descarga y al emisor de ciertos problemas de manipulación de la obra”. El oyente “prosumer” ya no tiene una actitud passiva y es, como señalamos anteriormente, productor y consumidor de produto. Con la incorporación del streaming visual, incluso el oyente puede compartir la emisión en plataformas como Youtube. El podcasting se diferencia de la descarga normal, en que permite al usuario sindicar su mensaje, suscribirse al contenido y consumirlo en el momento que le resulte más adecuado. Es la fusión entre radio digital y RSS, que permite la distribución y recepción automatizada de archivos de audio - 429 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 contenido tras una suscripción por parte del usuario a un software o web que lo permita (Gallego, 2010:14). La conjugación de podcasting y redes sociales parece la fórmula perfecta para llegar a un usuario con hábitos de escucha muy diferentes al de los radio-oyentes de hace una década. Hay diversos estudios, entre los que destacan los de López Vidal et al (2014: 47) que confirman que los jóvenes entre 14 y 24 años son los que menos escuchan el medio radiofónico por su carácter de “nativos digitales”, acostumbrados a recibir de forma instantánea información. Los autores detectan la necesidad de pensar una radio para los jóvenes que: supone favorecer la interactividad frente al consumo pasivo del medio que hacen sus mayores, generar más y mejores aplicaciones digitales de forma que el medio venga a satisfacer nuevas necesidades y, sobre todo, ofrecer contenidos variados que vayan dirigidos expresamente a esa franja de población muy olvidada en las emisoras generalistas. Para López Vidales (2011: 7), la radio actual está “en internet, en el móvil, en el transistor convencional, en la televisión digital y en los pequeños soportes de reproducción que pueblan los bolsillos”. Pero no se trata de una cuestión exclusiva basada en un cambio tecnológico, puesto que esos nuevos usuarios digitales requieren de nuevos contenidos, que se asoman de forma tímida a las parrillas de programación de la radio en España. Es por ello, que la incorporación del streaming o la participación a través de las redes sociales configuran estos nuevos espacios en el medio. La interactividad es lo que que Cebrián (2009: 12) destaca de la ciberradio: La ciberradio incorpora éstos y otros elementos a su concepción interna de los contenidos y, además, incluye los podcasting, los audioblogs y otras manifestaciones interactivas. Si la radio apostaba por la participación, la ciberradio da entrada a la plena interactividad e incluso en alguna de sus manifestaciones se llega a la creación de las ciberradios personales y ciberradios cívicas construidas por la sociedad civil. - 430 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Costa Sánchez (2012:244) incluso hace referencia a nuevas herramientas, como el teléfono móvil que “transforma los hábitos comunicativos de las personas”. En el caso del panorama radiofónico en España es habitual la difusión en streaming visual de entrevistas en directo relevantes realizadas a políticos o personalidades de interés, además de programas deportivos o campañas electorales y debates radiofónicos. La incorporación de esta herramienta permite reforzar el lenguaje en géneros como el humor, es el caso del programa Oh my LOL o Nadie sabe nada o en programas musicales donde el disc-jockey se convierte en actor principal en la interacción con el público a través del multimedia. Objetivos El objetivo general de esta investigación es analizar la influencia del streaming y la interactividad en la creación y difusión de nuevos espacios radiofónicos y nuevas relaciones con los públicos. Este objetivo general de la investigación se divide, a su vez, en los siguientes objetivos específicos: 1. Realizar un análisis descriptivo de los contenidos de los programas seleccionados que utilizan streaming visual y redes sociales. 2. Comprobar cuál es el canal a través del que realizan interacción de forma más frecuente con los usuarios: en redes sociales, mail, llamadas telefónicas. 3. Analizar los perfiles de Facebook y comprobar la interacción de los perfiles con sus oyentes. Metodología Unidad de análisis - 431 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Se emplearon como unidades de análisis diez programas que se emiten en emisoras con mayor difusión y cuyo contenido puede descargarse, se emite en streaming visual y se comparte en las redes sociales. Mediante la selección se pretende ofrecer una muestra de programas que pueden escuchar oyentes fieles de la emisora y oyentes ocasionales a través de las redes sociales. Además, este formato se puede compartir tanto en Facebook, Twitter como Youtube. En esta selección se han tenido en cuenta espacios que forman parte de la programación comercial, pública y otros formatos independientes que se emiten únicamente en la red, como es el espacio Carne Cruda. Por otra parte, se ha tenido en cuenta número de oyentes y número de fans en Facebook para comprobar si existe relación con los datos del Estudio General de Medios y números de seguidores en la red social en la que se crea de forma usual una fanpage del programa, Facebook. La interacción se tendrá en cuenta en el resto de redes sociales, pero teniendo muy en cuenta la red social Facebook, por este motivo, y Youtube por la posibilidad de mostrar contenidos compartidos en la propia red y comentarios acerca del espacio radiofónico. La muestra se recoge en la siguiente tabla: Tabla 1. Muestra de la investigación Cadena Programa / Número oyentes de Cadena Ser/ Oh my lol! Cadena Ser/ Nadie sabe nada Cadena Ser/ A vivir que son dos días Cadena Cope/ 254.000 Número fans Facebook 7.118 581.000 de en Seguidores en Twitter Suscriptores en Youtube 9.418 7.896 2.839 15 K 57.534 1.930.000 24.516 27,2 K 12.572 (emisora) 1.000.000 523.664 32 K 9.141 - 432 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais Buenos días Javi y Mar Carne Cruda RNE/ Ficción Sonora M80/ Ya Veremos Melodía Fm / Lo mejor que te puede pasar Cadena Cope/ Tiempo de juego Cadena Ser/ El Larguero 2016 -----------913.000 72.968 2.469 99,1 K ---- 5.945 1.128* 91.000 12.475 9.200 699 109.000 4.567 14,8 K 361 (emisora) 1.229.000 220.948 330 K 4.450 (emisora) 939.000 90.199 151K 12.567 (emisora) *El canal no es de la emisora, es de la Casa Encendida, donde se interpreta el programa. (emisora)- hace referencia a que son los suscriptores de la emisora, no del programa. Fuente: EGM de 2015 y Facebook, Twitter y Youtube en febrero de 2016. Las variables que se tendrán en cuenta obedecen a la siguiente tipología: 1. Variables descriptivas: nombre del programa, franja horaria, contenido, redes sociales utilizadas para promocionar el espacio. 2. Variables de interacción: número de seguidores en las distintas redes sociales (Facebook, Twitter y Youtube), likes y dislikes, compartidos en redes sociales, retuits, comentarios en Facebook y Youtube (positivos, negativos, neutros), otras formas de interacción (e-mail, teléfono, whatsapp, lectura en redes sociales de los mensajes). RESULTADOS - 433 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Análisis descriptivo En primer lugar vamos a mostrar un estudio descriptivo de estos espacios mediante escucha (análisis de los programas). Comenzamos con los dos programas más rompedores, que se caracterizan por la utilización del streaming visual de forma exclusiva, puesto que utilizan decorados, espacios adaptados al multimedia, formatos parecidos a un late night televisivo. Estos dos programas pertenecen a la Cadena Ser, Oh my LOL!, formato de humor junto a Nadie sabe nada, del mismo estilo. Oh my LOL!, (nombre que juega con la expresión laughing out loud, reírse a carcajadas), es un late night show, que engloba cinco programas diferentes según el día de la semana, dirigido y presentado por un humorista distinto. Se emite de lunes a viernes, de 1:30 a 2:30 de la madrugada y está disponible en Cadenaser.com y en dispositivos móviles a las 23:00 horas, antes de la emisión. El lunes se emite La vida Moderna en la sala Galileo Galilei, en Madrid. El martes se emite Antonio Castelo domina el mundo, basado en monólogos y sketches, además de estar acompañado de una banda de blues. El night show de Especialistas Secundarios se emite los miércoles, de humor surrealista se preocupan por la estética, puesto que uno de sus personajes es un peluquero de la NASA que lleva una peluca. El jueves se emite El Palomar, en la azotea de la Cadena SER, con secciones y sketches que pueden verse en streaming. Y el viernes finaliza con Las noches de Ortega, una parodia de programas nocturnos, con llamadas de los oyentes disparatadas, acompañado del público. Puesto que son programas de humor, pero dispares, para el análisis hemos escogido uno de los espacios, el del lunes, La Vida Moderna, que tiene un formato eminentemente audiovisual y se desarrolla en un espacio diferente. Imagen número 1. Programa Oh my LOL! - 434 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Fuente: Cadenaser.com El programa Nadie sabe Nada está basado en la complicidad de dos humoristas, Buenafuente y Berto Romero, y se emite en la Cadena Ser, los sábados de13:00 a 14:00 horas. Es un formato con participación del público en la emisora y a través de las redes sociales. Basado en la dinámica teatral y la improvisación. Es similar en su estética a Oh my LOL!. Imagen 2. Programa Nadie sabe nada - 435 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Fuente: Cadenaser.com Otros programas eminentemente radiofónicos pero que han incorporado el streaming visual como complemento, son: A Vivir que Son Dos Días, es un programa de la Cadena Ser, que se emite de 8:00 a 12:00 horas los fines de semana y dirige y presenta Javier del Pino. Es un formato de fin de semana, que recupera la radio de acompañamiento y entretenimiento, con tertulias con expertos . Buenos Días Javi y Mar!, es un programa de Cadena 100 (COPE), que se emite de lunes a sábado, de 6 a 11 de la mañana. Basado en la radiofórmula, con humor y la interacción a través de redes sociales y teléfono con el oyente. Carne Cruda es un programa independiente, obtuvo el Premio Ondas al Mejor Programa de Radio español en 2012. Se emitió en Radio 3 de RNE (2009-2012) y en la Cadena SER (2013-2014) con éxito de audiencia. Dejó ambas emisoras por su línea editorial crítica. Ficción Sonora de RNE es un formato que recupera el radioteatro, se emite sin periodicidad fija en RNE dentro del programa 'Abierto hasta las 2' (domingo de 0:00 a 2:00h) y en Radio 3 dentro del programa 'En la Nube de Radio 3' (lunes a jueves de 22:00 a 24:00h). Imagen número 3. Ficción Sonora de RNE - 436 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Fuente: RNE Ya Veremos se emite en la emisora de radiofórmula M80, de lunes a viernes, de 20 a 22 horas. Basado en humor, música y la selección de la actualidad desde un punto de vista desenfadado. Lo mejor que te puede pasar de Melodía FM es un Morning Show, se emite de 06:00 horas a 10:00 de la mañana. Está basado en el entretenimento, humor, entrevistas desenfadadas, bromas telefónicas. Los programas deportivos también tienen lugar en la selección. Tiempo de Juego de la Cadena Cope, se emite los sábados, de 15:00 a 02:00 horas y los domingos de 12:00 a 14:00 horas y de 15:00 a 02:00 horas de la madrugada. El Larguero es un espacio deportivo de la Cadena Ser, con éxito de audiencia desde hace casi dos décadas. Se emite de lunes a sábado, de 00:00 a 01:30 de la madrugada y los domingos, de 23:30 a 01:30 de la madrugada. Redes sociales utilizadas Las red social más utilizada es Facebook. Todos estos espacios utilizan la fanpage de esta red social. El 90% tiene seguidores en Twitter y el 70% tiene canal propio en Youtube, dond puede visualizarse el programa, además de en la propia página de la emissora o del espacio. Sin embargo, apreciamos que la presencia en Facebook es complementaria en el caso de la interactividad, cuando la audiencia interactúa lo suele hacer a través de Twitter. El único programa que no establece esta relación con el público a través de Twitter es el programa de RNE, Ficción Sonora, que lleva el radioteatro a la audiencia, es muy visual, pero al ser un formato ocasional no se basa en la interactividad a través de la red social Twitter. El número de seguidores en Youtube, como podemos apreciar en la Tabla 1, que aparece en el apartado de metodología, es muy díspar y está relacionado también con los índices de audiencia. El programa con mayor - 437 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 número de seguidores en Facebook es de la Cadena Cope, Buenos Días Javi y Mar!, que interactúa de manera habitual con su público a través de redes sociales, donde se comparten fragmentos del programa y otros temas curiosos que se tratan en el espacio. Le sigue en número de seguidores en esta red social el espacio deportivo de la misma emisoria, Tiempo de Juego. En Facebook todos los espacios tienen me gusta y la media, el 88%, tienen menos de 10 me gusta por publicación. En Twitter el mayor número de seguidores se registra en los dos espacios deportivos de la Cadena Cope y la Cadena Ser, Tiempo de Juego y El Larguero. Y destaca, por otra parte, la interacción de los usuarios en la red social Twitter del programa Carne Cruda, un formato que se considera independiente por su manera de financiarse a través del crowfunding de los propios oyentes. Es un formato que genera contenido sin presiones ni directrices empresariales y, por lo tanto, quienes lo escuchan en la red es porque comparten su visión crítica e irónica y su compromiso e ideología. Del 66% de los espacios retuiteados, se retuitean como media unas 10 veces. En Youtube destacan los nuevos formatos, sobre todo el programa Nadie Sabe Nada, que tiene canal del programa y que es un claro ejemplo de espacio donde el streaming visual es tan importante como el sonoro. Es un programa que bien podría pasar por ser televisivo, puesto que la puesta en escena es parecida, aunque respeta el lenguaje radiofónico y las características del medio. Tiene características similares Oh my LOL!, aunque este espacio se descarga más en la aplicación móvil que se ha creado para ello y en la propia web de la emisora, Cadenaser.com, que en el canal de Youtube. En esta plataforma aún no llega a los 10.000 suscriptores y lleva menos de un año en antena, pero tiene gran éxito como nuevo formato y es uno de los más comentados. En Youtube el 40% de los vídeos se comparten entre 100 y 500 veces y el 60% menos de 10 veces. El 86% de los espacios tienen comentarios positivos y el 14% son tanto positivos como negativos. - 438 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Interacción con el público La interacción con el público, además de en las redes sociales, se establece en el 60% de los espacios analizados por vía telefónica. En el 80% se interactúa mediante las redes sociales y en el 50% de estos espacios, el público acude en directo a estos programas y pueden verse vía streaming visual o en Youtube. Hay un 50% de programas dirigidos a un público joven entre los seleccionados y otro 50% dirigido a un público más adulto. En streaming sonoro y visual podemos descargarnos todos los programas y consumirlos a la carta. Conclusiones Apreciamos un cambio en el consumo de los formatos radiofónicos que se adaptan a los nuevos públicos. Se trata de llegar a los nativos digitales, a nuevo oyentes que no tienen hábito de escucha y que consumen estos contenidos en internet. Por la muestra selecionada, podemos afirmar que se trata de programas en los que lo visual cada vez tiene mayor presencia e importancia y se cuida tanto el lenguaje radiofónico como la puesta en escena. El hecho de que se consuman a la carta y se compartan en redes sociales aumenta los oyentes potenciales, que pasan de ser oyentes a consumidores de un espacio multimedia. Igual que ocurriera con los diarios digitales, la radio en España se consume de una forma diferente y la muestra más clara es que incluso hay formatos que se elaboran de forma específica para los nativos digitales, como es el caso de Nadie Sabe Nada y Oh my LOL! de la Cadena Ser. Las emisoras poseen además una aplicación para que se consuman estos espacios en el móvil e indican a los usuarios cómo llevar a cabo la descarga de estos espacios. Aunque la comunicación con los usuarios se sigue estableciendo por vía telefónica, las redes sociales se consolidan como el médio de interacción - 439 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 más importante. La relación con el público de manera directa la establecen a través de Twitter. La mayoría de estos programas leen en el espacio los mensajes de los oyentes-usuarios en la red. Además, a través del hashtag llegan a otros usuarios que no son los oyentes habituales, que pueden incorporarse en la interacción y son un reclamo importante para captar la atención de la audiencia que consume los mensajes en redes sociales. Aunque sólo un 40% de estos programas tiene canal propio de Youtube, también podemos confirmar que en distintas cuentas, no sólo de la emisora, se comparte el contenido de estos espacios. En definitiva, esta muestra refleja una tendencia en el cambio de formatos que evoluciona acorde a las nuevas tecnologías, el consumo de los espacios a través de aplicaciones móviles y los hábitos de nuevos consumidores de los espacios a través de la red. Referencias Arias, S. M. y Arias, A. M. Evolución de la radio global y competencia en Internet. El caso de Radio Exterior de España. Estudios sobre el Mensaje Periodístico, 19(1), 487-504. 2013 Bonet, M. 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Editorial UOC. 2010. - 440 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Gallego, J. Ignacio . “La audiencia en la radio: viejos roles, nuevas funciones” en Sintonizando el futuro: Radio y producción sonora en el siglo XXI. Madrid, Instituto RTVE. 2012. García-Lastra, J. M. Del modelo productivo de la era analógica al de la radio multicanal. Sintonizando el futuro: Radio y producción sonora en el siglo XXI. 2012. López Vidales, N. et al. “Tendencias de consumo televisivo en jóvenes de 14 a 25 años: hacia el entretenimiento cool”. Comunicación presentada y publicada en actas al IV Congreso Internacional sobre Análisis Fílmico: Nuevas tendencias e hibridaciones de los discursos audiovisuales en la cultura digital contemporánea. Castellón: Ediciones de las Ciencias Sociales. 2011. Rodero Antón, E. Recuperar la creatividad radiofónica: razones para apostar por la radio de ficción. Anàlisi: quaderns de comunicació i cultura, (32), 133-146. 2005. Videl Rodríguez, J. J. 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Desde 2010, ela trabalha como jornalista freelance, dedicando-se à escrita de colunas de opinião, inicialmente para o site da revista Época e há quase três anos para o portal brasileiro do jornal El País. Ao longo de todo esse percurso profissional, seu fazer jornalístico marcou-se por valores e técnicas de reportagem específicos, distintos daqueles verificados na mídia tradicional. Trata-se do Jornalismo de Desacontecimentos: uma concepção que define a escolha de Brum em narrar o cotidiano de pessoas anônimas, fundamentada em uma relação de transparência e dialogia com suas fontes e leitores, cujas características serão aprofundadas adiante. Para este artigo, objetiva-se traçar uma análise sobre o trabalho de Brum no universo online, na busca por identificar as possíveis divergências entre suas produções e os registros digitais da mídia convencional. Esperase, também, demonstrar que a presença de elementos fundantes do Jornalismo de Desacontecimentos contribui para o amplo alcance dos - 442 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 escritos de Brum na web, que atingem uma média de 38 mil compartilhamentos por coluna. Em última instância, quer-se evidenciar que o jornalismo de Brum continua a fugir do lugar-comum da pauta, de assuntos e personagens que estão nas agendas das redações, insistindo em exergar um mundo recluso pela emergência da notícia. Mesmo inserida em um novo ambiente - o digital - e tomada por uma proposta narrativa diferente - a opinião o que se percebe é que a escrita de Brum ainda se faz calcada em seu posicionamento como repórter de desacontecimentos. Para tanto, divide-se este trabalho em três etapas: na primeira, desenvolve-se um estudo sobre as características do webjornalismo, considerando os apontamentos de Palacios (1999), Mielniczuk (2003) e Canavilhas (2001), a fim de melhor compreender o fazer jornalístico em ambientes digitais; na segunda, apresentam-se reflexões sobre as propostas do Jornalismo de Desacontecimentos a partir da prática de Brum e, por fim, realiza-se uma análise de conteúdo das 28 peças de Eliane para o portal El País Brasil no ano de 2015, de modo a ressaltar os aspectos que as diferenciam dos registros convencionais e indicar os caminhos que podem ser explorados pelo jornalismo na produção de conteúdos para a plataforma online. O jornalismo na Web: características e apontamentos teóricos O interesse em compreender as novas configurações do jornalismo em plataformas digitais tem fomentado estudos em diferentes linhas de investigação. Em conformidade com o que propõe Pavlik (2001, p.49): "advances in new media technology are transforming these technical tools, which offer new ways to process raw news data in all its forms, whether handwritten notes, audio interviews, or video contente". Do mesmo modo, para Canavilhas (2001, p.01), "o aparecimento de novos meios de comunicação social introduziu novas rotinas e novas linguagens jornalísticas". Discute-se, portanto, sobre as possíveis rupturas e continuidades geradas pela internet na produção jornalística e sobre as inovações a que se pode chegar com a aplicação dos recursos deste novo ambiente. - 443 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Considerando a proposta do presente artigo, este item se dedicar a realizar apontamentos teóricos sobre as características do webjornalismo e sobre a linguagem jornalística no universo online. Com isso, buscamos fundamentar, adiante, uma reflexão acerca do fazer jornalístico de Eliane Brum na web, ou seja, investigar de que maneira seus valores e técnicas se diferenciam do que se tem feito em termos de conteúdo digital, com a finalidade não de criticar ou fazer oposição às potencialidades da web, mas sim de analisar a importância do resgate da profundidade em textos jornalísticos como um recurso a ser priorizado nas produções. Pensando nas características do jornalismo desenvolvido para a web, recorre-se às formulações de Palacios (2002) acerca das seis potencialidades oferecidas pela internet, a saber: multimidialidade ou convergência, interatividade, hipertextualidade, personalização, memória e instantaneidade ou atualização contínua. De maneira simplificada, elas assim se apresentam: - Multimidialidade ou convergência: segundo Palacios (2002, p.18), trata-se de uma conjugação dos formatos das mídias tradicionais (imagem, texto e som) na narração do fato jornalístico. Para Murad (1999, p.5), as diversas possibilidade de combinação desses recursos, reunidos em uma mesma mensagem e conectados através de hiperlinks, incrementam a produção jornalística e gera novos parâmetros de redação aos jornalistas. No mesmo sentido, Canavilhas (2001, p.2) sustenta que a introdução desses novos elementos não somente cria uma escrita não-linear, mas também uma leitura não-linear: Se, para o jornalista, a introdução de diferentes elementos multimédia altera todo o processo de produção noticiosa, para o leitor é a forma de ler que muda radicalmente. Perante um obstáculo evidente, o hábito de uma prática de uma leitura linear, o jornalista tem de encontrar a melhor forma de levar o leitor a quebrar as regras de recepção que lhe foram impostas pelos meios existentes. O grande desafio feito ao webjornalismo é a procura de uma "linguagem amiga"que imponha a webnotícia, uma notícia mais adaptada às exigências de um público que exige maior rigor e objectividade (CANAVILHAS, 2001, p.3). - 444 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Canavilhas ainda aborda um estudo realizado pelo Media Effects Research Laboratory, cuja conclusão ressalta o fato de que os recursos multimídia e a interatividade melhoram a percepção do leitor acerca do conteúdo. Outro estudo, realizado por Nielsen e Morkes (1997), apontam que 79% dos usuários de internet não leem as notícias palavra por palavra, mas por uma leitura por varrimento visual, denominada scan the page, buscando palavras e frases. Desta forma, a orientação dos pesquisadores aos jornalistas que escrevem para a web é a produção de textos "esquadrinháveis", isto é, que sigam essas regras: usar hipertextos para segmentar informações longas, escrever tendo em vista a facilidade da leitura, através de parágrafos curtos, subtítulos e listas com bullets, ser suscinto e não escrever mais de 50 por cento do texto que escreveria para tratar do mesmo assunto em uma publicação impressa e usar listas sempre que possível. -Hipertextualidade: permite que blocos de informação se conectem através de links. Na visão de Suanno (2003), as páginas online se constituem como uma construção de hiperlinks e hipertextos, conferindo maior dinamicidade aos escritos e rompendo com a linearidade, na medida em que se faz possível disponibilidade ao internauta um número ilimitado de informações, assim potencializando o seu papel na rede. -Interatividade: Mielniczuk (1998) e Palacios (2003) concordam na utilização do termo multi-interativo para se referir ao conjunto de processos que envolvem a situação do leitor de um jornal na Web que, "ao acessar um produto jornalístico, estabelece relações: a) com a máquina; b) com a própria publicação, através do hipertexto; e c) com outras pessoas - seja autor ou outros leitores -através da máquina" (MIELNICZUK, 1998, p.4).  Personalização: refere-se à customização de conteúdos que os usuários podem fazer de acordo com seus interesses individuais.  Memória: destaca Palacios (1999, p.6) o espaço praticamente ilimitado que a Web oferece "para disponibilização de material noticioso, informação - 445 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 anteriormente produzida e armazenada, através da criação de arquivos digitais, com sistemas sofisticados de indexação e recuperação da informação".  Instantaneidade: diz respeito à agilidade de atualização de material na web, o que possibilita o acompanhamento contínuo das informações por parte dos leitores. Conforme ressaltado anteriormente, não há um consenso nos estudos sobre webjornalismo. Para este trabalho, buscou-se sintetizar as considerações de alguns estudiosos sobre características relevantes para a produção de textos online. De fato, tais potencialidades vêm sendo aplicadas por diferentes meios de comunicação, alcançando êxito entre os usuários. O que nos chama atenção, no entanto, é que os escritos de Eliane Brum parecem não se valer de tais ferramentas e, ainda assim, alcançam expressiva visibilidade - em termos de acesso e compartilhamento - na rede. A seguir, portanto, aprofundaremos a reflexão sobre a prática jornalística de Brum, de modo a evidenciar seus valores e técnicas para que se possa, então, partir para análise de conteúdo de suas colunas para o portal El País Brasil em 2015. O Jornalismo de Desacontecimentos: proposições para um novo fazer Em cada etapa da produção noticiosa - percurso que envolve a escolha da pauta, a apuração, entrevista e redação -, o jornalismo de Eliane Brum revela elementos singulares que o diferem do fazer midiático tradicional. Desde o início de sua carreira jornalística, como repórter no jornal gaúcho Zero Hora, em 1989, a escolha de Brum definiu-se por narrar o cotidiano das pessoas anônimas, de modo a centrar sua prática na apropriação de fatos não-marcados, isto é, "fatos não imediatamente relevantes para o cânone da cultura jornalística, normalmente desconsiderados pela marcação (pauta) da grande mídia" (SODRÉ, 2009, p.76),assim rompendo com o código de produção dos acontecimentos, definido por Tuchman (1978, p.74) como a unidade de análise privilegiada - 446 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 pelo jornalismo e por Sodré (2009, p.98) como um "pacto implícito na comunidade jornalística sobre os valores-notícia". Por não partilhar da cultura profissional da comunidade jornalística 94, consideramos - neste trabalho e na pesquisa da qual este resulta - a prática de Brum desvinculada do fazer midiático convencional, de modo a instaurar uma nova noticiabilidade: a do cotidiano ou a do desacontecimento: A carne da minha reportagem são os 'desacontecimentos', palavra que dá conta de uma escolha: escrevo sobre a extraordinária vida comum, sobre o cotidiano dos homens e das mulheres que tecem os dias e também o país, mas nem sempre são contados na história. Sobre aquilo que se repete e, por equívoco ou por miopia, é interpretado como banal. Ao empreender essa narrativa, busco subverter o foco, embaralhando os conceitos de centro e de periferia. Sou uma repórter de desacontecimentos (BRUM, 2013, p.13). Por acreditar que a narrativa é "a chave para alcançar a complexidade – ou as várias versões - da vida do outro" (BRUM, 2013, p.75), defende-se que a prática jornalística de Brum fundamenta-se no diálogo dos afetos (MEDINA, 2008), indissociável do nível da sensibilidade e capaz de consolidar o jornalismo como instituidor da vinculação humana na pluralidade do comum. O jornalista, o comunicador como agente cultural, ocupa um lugar privilegiado na sociedade - não pode se contentar em exercer a função administrativa dos sentidos já estabelecidos em qualquer instância de poder. Para renovar e criar uma narrativa rigorosa, sutil e solidária, é preciso contato e o movimento: o corpo por inteiro abre a sensibilidade para a intuição criadora que, por sua vez, mobiliza a razão complexa para uma intervenção transformadora (MEDINA, 2008, p.109). 94 Segundo Traquina (2005, p.190), a comunidade jornalística é uma tribo em que se partilham os saberes específicos de reconhecimento (critérios de noticiabilidade), procedimento (técnicas de reportagem e entrevista) e narração (técnicas textuais de lead e pirâmide invertida) - fatores cruciais na elaboração do produto jornalístico. - 447 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Essa ideia de movimento e abertura está presente em Buber (1982, p.56) como um "voltar-se-para-o-outro" e na técnica de apuração e de entrevista de Brum como um despojar-se para se preencher pelos significados do outro: Antes de chegar em qualquer mundo, a gente pede licença. E a minha forma de pedir licença é fazer um processo de entrega, em que eu me esvazio. Eu só posso ser preenchida por aquela realidade se eu me esvaziar. E esse processo não é fácil, porque tu tem que ir para o mundo do outro, sem os teus preconceitos, sem os teus dogmas e, principalmente, sem as tuas certezas, com a coragem e o respeito de se arriscar a uma realidade que não é tua, e se espantar com essa realidade (BRUM, 2008, p.14). É neste sentido que Caco Barcellos afirma, no prefácio do livro "O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real", que "reportagem, para Eliane, é um ato de entrega, de envolvimento intenso entre quem fala e quem escuta, por meio de uma relação preciosa de confiança mútua entre repórter e personagem" (BRUM, 2008, p.10). Está-se diante, assim, de um encontro que simboliza a palavra-princípio Eu-Tu - cerne do pensamento de Buber (1979) -, fundamento da relação de dois parceiros na reciprocidade e na confirmação mútua. Nesta filosofia do diálogo, o Tu se apresenta ao Eu como a sua condição de existência, já que não há um Eu em si, independente. "Em outros termos, o si-mesmo não é substância, mas relação. O Eu se torna Eu em virtude do Tu" (p.48). Por isso, o fazer jornalístico de Eliane Brum também se dispõe à arte do olhar e do escutar, mobilizando os órgãos do sentido para a apreensão das significações do universo do outro, assumindo a reivindicação de Restrepo (1998, p.19) ao direito à ternura e rompendo com o analfabetismo afetivo deformação e empobrecimento sofridos pelos cidadãos ocidentais - para o qual alerta o psiquiatra. É isso o que me fascina. Eu sou repórter, eu sou escutadeira, eu me movimento por causa disso. Me dá uma dor profunda, porque se eu pudesse eu queria escutar todas as pessoas. Porque é isso, são tantas e - 448 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 tantas pessoas, tantos e tantos universos, com uma forma extremamente criativa de se reinventar. No sentido não de se inventar como algo definitivo, estático e imutável, porque isso seria cada um se tornar um morto vivo, mas se inventar de forma a permitir que, em uma vida só, se tenha vários nascimentos, várias vidas numa vida só (BRUM, 2014, arquivo digital4). Sob esta perspectiva, acredita-se que o Jornalismo de Desacontecimentos, ao articular sensibilidade, dialogia e afetos em sua prática, amplia a possibilidade da experiência de compreensão do outro em sua totalidade, seja no nível da relação entre jornalista e fonte, como também da relação entre o leitor e o personagem narrado. Isso porque esses dois níveis coexistem em um plano de interdependência: é somente ao estabelecer uma relação de reciprocidade entre jornalista e fonte - nos moldes da palavra-princípio Eu-Tu, de Buber (1979) -, que se pode gerar no leitor a compreensão humana (MORIN, 2002) acerca da presença do outro em simesmo (RICOEUR, 1913), tal qual manifesta Brum em seu fazer noticioso: "não existiria esse eu sem todos esses outros"5. Fundamentados nessas premissas, partimos para o item seguinte deste artigo, cujo objetivo é analisar as colunas quinzenais de Eliane Brum para o portal El País Brasil em 2015. Com isso, nossa busca é evidenciar que os valores apontados acima - que sustentaram o trabalho de Brum como repórter de jornalismo impresso desde o início de sua carreira, em 1989 permanecem em suas narrativas digitais e podem fomentar reflexões sobre novas possibilidades de fazer jornalismo no universo online. O Outro nas produções jornalísticas de Eliane Brum: análise de suas colunas para o portal El País Brasil no ano de 2015 Atuando na editoria de opinião do portal El País Brasil desde o final de 2013, Eliane assina uma coluna quinzenal no periódico, que também é traduzida para a versão espanhola e latino-americana. Seus textos, apesar de agora analíticos, ainda carregam muito das valorações de Brum como - 449 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 repórter: sua busca por narrar os desacontecimentos - ou aquilo que não é evidenciado pela mídia convencial - e por alcançar a complexidade do outro, através do diálogo e da abertura para a compreensão de seus sentidos. Como ela mesma afirma, ao comentar sua experiência: "assim começou minha coluna, desde o início marcado pelo fato de que sou uma repórter escrevendo uma coluna de opinião" (2013, p.14). Seus escritos resguardam a intenção de qualificar as questões de seu tempo histórico, ampliando as vozes nas narrativas, enxergando os detalhes que permeiam nossos cenários, sempre interessada em preservar uma relação de transparência para com suas fontes e seus leitores. Meu pacto com quem me lê parte de algumas regras pessoais, e estas eu não transgrido: 1) tenho de estar tomada pelo assunto, porque essa é a primeira verdade que ofereço; 2) preciso acreditar ter algo a dizer que ainda não foi dito por outros articulistas, ou pelo menos não da forma como eu gostaria de dizer, evitando tomar o tempo das pessoas com um texto que elas poderiam ler em outro lugar; 3) tenho de ter estudado muito antes de escrever, porque o olhar e a ideia são apenas pontos de partida para a investigação que vai permitir a construção de um texto consistente, ainda que algumas vezes essa investigação seja uma trajetória acidentada pelos meus interiores ou memórias" (BRUM, 2013, p.15). Para tanto, suas colunas resgatam o recurso mais importante que a internet pode oferecer, na visão de Brum: a profundidade. Seus textos raramente apresentam elementos multimídia e, quando isso acontece, tratam-se de imagens e hiperlinks. Sua escrita também, em geral, não se divide por subtítulos ou blocos de informação. Na análise do corpus selecionado para este trabalho, as peças de Brum atingem, em média, 20 mil caracteres, sendo que uma delas, "Um negro em eterno exílio", tem 66 mil caracteres e conta como uma entrevista de 59 mil. "Existe um pensamento no jornalismo online de que o leitor não lê textos compridos, de que o seu tempo - 450 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 de atenção é mais limitado na internet, e com as colunas da Eliane a gente confirmou que não é assim, a recepção é muito boa" (SECO95, 2015). Minha coluna também foi uma provocação a isso (de que a internet é para textos curtos e instantâneos), porque parecia um contrassenso do que os arautos determinavam que era para a internet. Eu acho esse um grande equívoco, porque se o jornalismo ficar disputando banalidades, ele vai perder a importância e aquilo que faz a diferença. E no jornalismo o que faz a diferença é a profundidade, é a capacidade de fazer o movimento da reportagem (BRUM, 2014) 96. A partir de uma análise de conteúdo das 28 colunas produzidas por Brum para o El País Brasil no ano de 2015, fez-se possível verificar que seus escritos alcançam, em média, 38 mil compartilhamentos diretos através do portal. Nesses dados, não estão contabilizados os compartilhamentos feitos através da página brasileira, latino-americana e espanhola do El País no facebook. A seguir, apresenta-se um quadro com os resultados desta análise: 95 Trecho de entrevista com Raquel Seco, editora online do portal brasileiro El Pais, concedida à Tayane Abib, no dia 27/05/2015. 96 Trecho de entrevista de Eliane Brum concedida a Tayane Aidar Abib no dia 21 de maio de 2014. - 451 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 - 452 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Ao confeccionar o quadro acima, teve-se por objetivo evidenciar as temáticas mais recorrentes nos textos de Brum, assim como sua repercussão. Destaca-se, no entanto, que todos os seus escritos apresentam análises complexas, em que se abordam questões políticas, sociais e culturais concomitantemente. Para efeito de análise, na coluna "Temas" do quadro, optou-se por manter o tema mais evidente na leitura dos escritos. Sendo assim, no texto "Os índios e o golpe na constituição", por exemplo, discutese não apenas sobre o meio ambiente, mas também sobre o descaso político e social para com a população indígena. Da mesma forma, a coluna "Personagens" do quadro, traz quem ou aquilo sobre o que se comenta: em alguns momentos, Brum trata de histórias específicas - famílias que vivem em torno do Xingu (João e Raimunda, Otávio das Chagas), lideranças ambientais ou sociais (Antonia Melo, Carlos Moore), catador de lixo (Ailton dos Santos), a mulher que 'abandonou' seu bebê (Sandra Maria dos Santos) -, em outros, aborda a sociedade e as relações sociais como um todo e, muitas vezes, as minorias. Talvez como colunista, eu seja então uma das desidentidades. Eu escrevo sobre a vida misturada, para além dos escaninhos das editorias, e com mais de um estilo, porque cada história pede um ritmo diverso e palavras próprias. E acho que nunca me misturei tanto quanto ao escrever essa coluna, na qual pude incluir minha paixão por literatura e por cinema e também meu gosto por política. Se as divisões arbitrárias de cultura, comportamento, economia, politica etc - ou variações similares - servem para organizar a publicação, qualquer jornalista sabe que uma boa reportagem ou um bom ensaio ou uma boa coluna é misturada, porque a vida não se deixa compartimentar (BRUM, 2013, p.15). Com este quadro, quer-se demonstrar que Eliane continua a caminhar sob o eixo do Jornalismo de Desacontecimentos, tanto na escolha - 453 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 de seus temas e personagens, como nos valores aplicados em seus textos. Essa se define em sua busca para "dar voz aos que estão à margem da narrativa" (BRUM, 20148). Do mesmo modo, uma leitura atenta às suas colunas permite evidenciar seu interesse em compreender os significados do outro, à luz do que fala Medina (1990, p.18), quando propõe um diálogo interativo entre os sujeitos, ou o diálogo dos afetos: "mergulha no outro para compreender seus conceitos, valores, comportamentos, históricos de vida", ou, então, do que diz Kunsch quando trata de complexidade e compreensão no jornalismo: Há que se fazer do próprio ato de produção simbólica uma prática de justiça, igualdade, democracia e participação, de respeito ao outro, de diálogo com o diferente: no contato com as fontes, na reprodução de palavras, no modo de contar histórias etc. (KUNSCH, 2000, p.22). Em "A boçalidade do mal", Eliane discute um episódio em que Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda dos governos Lula e Dilma Rousseff, é hostilizado com sua mulher na lanchonete do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. A partir disso, Brum discorre sobre um conceito complexo de Hannah Arendt e dá um passo a mais ao falar em 'boçalidade do mal'. Trata-se da nossa incapacidade de compreender o outro: "em que momento a opinião ou a ação ou as escolhas do outro, da qual divergimos, se transforma numa impossibilidade de suportar que o outro exista?". Também em "Mãe, onde dormem as pessoas marrons?" a questão do Outro é debatida. Entre tanto assuntos, Brum escreve sobre um Brasil representado como um condomínio, no qual encerramos nossas vidas para escapar da 'ameaça' do diferente: "a rua, o espaço público, é onde ela não pode estar. E por quê? Porque lá está o outro, o diferente. E ela só pode estar segura entre seus iguais, no lado de dentro dos muros". E propõe que se reconheça a humanidade que existe neste outro: "hoje, é urgente estar de fato com o outro e se arriscar ao que isso significa". Em outras colunas, nas quais Eliane não discorre especificamente sobre a figura do outro, deixa transparecer a sua busca em compreender suas razões, os significados que movem sua vida, para que então possa repassá-las - 454 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 ao seu leitor. Em "Vítimas de uma guerra amazônica" - de 52 mil caracteres e em "O pescador sem rio e sem letras" - de 22 mil caracteres -, Brum reporta a história das famílias que perderam suas casas, foram removidas, por conta da obra da usina de Belo Monte, e questiona: "à beira de Belo Monte, uma história pequena numa obra gigante. Que tamanho tem uma vida humana?". Ao conviver com João, Raimunda, Otávio das Chagas, sua esposa e seus filhos, Eliane busca compreender o valor do rio e de um pedaço de terra para cada um deles, assim como a dificuldade de se descobrir analfabeto para a linguagem jurídica. E ao compreender, compartilhar. Pois nas singularidades, reside também a coletividade que nos faz. As colunas de Brum parecem apontar, portanto, para o convite que nos faz Kunsch (2000, p.17) para "assumir o gesto humilde e corajoso da compreensão, a aventura do encantamento e a busca solidária" capaz de renovar a possibilidade de "reencantamento do ato humano de conhecer e contemplar as coisas, a vida, a sociedade e o mundo, a partir de uma visão complexa, que tece em conjunto, que soma. Visão que faz do signo da compreensão um imperativo" (KUNSCH, 2000, p.292). Considerações finais À guisa de conclusões, este artigo teve por objetivo desenvolver um estudo sobre a configuração do Jornalismo de Desacontecimentos no ambiente digital. Nosso interesse foi evidenciar, a partir de uma análise de conteúdo das 28 colunas produzidas por Brum para o portal El País Brasil, as divergências entre a produção jornalística de Brum e os registros digitais da mídia convencional. Para tanto, realizamos apontamentos teóricos sobre o webjornalismo, suas características e pontencialidades e constatamos que Brum não utiliza recursos multimidiáticos em todos os seus textos: apenas 12 contam com imagens, nenhum apresenta vídeos ou outros elementos de convergência; seus escritos têm em média 20 mil caracteres, alguns alcançam - 455 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 22 páginas e, no entanto, a média de compartilhamentos diretos através do site é de 38 mil, com alguns textos atingindo a marca de 320 mil ("Parabéns, atingimos a burrice máxima") e 124 mil ("A mais maldita das heranças do PT"). Desta forma, o jornalismo de Brum parece não caminhar dentro dos padrões do que, em teoria e em prática, convenciona-se e faz-se em termos de conteúdo jornalístico. Há, no entanto, que se destacar que o trabalho de Brum tem um cunho analítico e que a jornalista trabalha com um prazo (deadline) maior para publicação. Entretanto, mesmo como colunista, entre o corpus, é possível identificar 5 reportagens, entre outros textos que se misturam com entrevistas. Por tudo isso, faz-se necessário refletir sobre a repercussão do trabalho de Brum online. Nossa intenção não é desvalorizar ou refutar as teorias que tratam da convergência digital ou descreditar produções que se valem de recursos multimidiáticos. Ao contrário, o que se quer é fomentar o debate sobre a necessidade de se resgatar a profundidade no jornalismo: Agora, com a internet, tu prova que leitor gosta sim de textos longos, tu sabe qual é a audiência que tu tem, quantas pessoas leram teu texto e quanto tempo elas ficaram no teu texto. Então, agora a gente pode responder essa pergunta. E a resposta é que sim, o leitor gosta de texto longo desde que respeite sua inteligência, que ecoe, que faça a diferença e valorize seu tempo. A gente precisa trabalhar melhor para esse leitor que agora é muito mais exigente, e agora tem muito mais voz do que antes tinha (BRUM, 2014, arquivo pessoal). Acredita-se, desta forma, que a busca de Brum por compreender o Outro, a complexidade de seu universo, suas teias de significações e sentidos, fundamenta o percurso do Jornalismo de Desacontecimentos no ambiente digital e diferencia os seus escritos dos demais textos da mídia convencional, de modo a contribuir para o amplo alcance - visibilidade e compartilhamento - de suas colunas na rede. Ao se interessar pela realidade do Outro, firmando com seus personagens e fontes uma relação de diálogo e compreensão, Brum permite que seus leitores também partilhem da mesma experiência. - 456 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Em consonância com o pensamento de Brum, Pavlik identifica na internet a possibilidade de o jornalista estabelecer uma conexão mais ampla entre eventos, circunstâncias e contextos. Com o maior volume de informações, o autor acredita que há a necessidade de aumentar a capacidade de interpretação do jornalista na construção textual e na edição e que este profissional tem o papel de reconectar comunidades e instituições, tanto em nível local quanto transnacional, exercendo uma forma de 'jornalismo contextualizado' (PAVLIK, 2001 apud FRANCISCATO, 2005, p.221). Referências bibliográficas BRUM, Eliane. A menina quebrada e outras colunas de Eliane Brum. São Paulo: Leya Brasil, 2013. BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982. . Eu e tu. 2a edição revista. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. CANAVILHAS, João. WebJornalismo: Considerações gerais sobre o jornalismo na web. Publicado em 2001. Disponível em: < http://www.bocc.ubi.pt/pag/canavilhas-joao-webjornal.pdf> Acesso em: 26 de janeiro 2016. FRANCISCATO, C. E. A fabricação do presente. Aracaju: Editora UFS, 2005. KUNSCH, Dimas. 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Conferência proferida por ocasião do concurso público para Professor Titular na FACOM/UFBA, Salvador, Bahia, em 21.09.1999. - 457 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 PAVLIK, John. Journalism and new media. New Youk: Columbia University Press, 2001. RESTREPO, Luis Carlos. O direito à ternura. 3a edição. Petrópolis: Vozes, 1998. SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006. . A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis: Vozes,2009. TUCHMAN, Gaye. Making News: a study in the construction of reality. New York: The Free Press, 1978. - 458 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 O Profissional da Informação e as contribuições sob o ciclo de vida políticas públicas de Informação e Tecnologia Thabyta Giraldelli Marsulo - UNESP Ângela Maria Grossi de Carvalho - UNESP 1 Introdução A preocupação com a estruturação, representação, organização, disseminação e uso de conteúdos informacionais acompanha o desenvolvimento cultural da humanidade há séculos. Contudo, é na contemporaneidade, com a ruptura das barreiras de tempo e espaço propiciadas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) que essa preocupação adquire importância ainda maior, principalmente, depois do aparecimento da Internet e do ambiente World Wide Web (WWW ou Web). Essas tecnologias, cujas interfaces computacionais interferem nos modos de produzir e acessar informação propiciando o surgimento de um novo sistema hibridizado, em que homens e máquinas, pelas suas formas de interação, modificam, o fluxo informacional aumentando-o exponencialmente, tornam prementes ações que favorecem o efetivo acesso à informação e ao conhecimento, bens indispensáveis para o desenvolvimento global da humanidade. Segundo Davenport e Prusak (1998) O conhecimento é a informação agregada, pois existe diante do contexto vivenciado por alguém, que deu a aquela informação sua interpretação e significado de modo a tornar-se mais valioso. A sociedade da informação abarca todas as ferramentas e todas as oportunidades que as tecnologias vem proporcionando as pessoas nos - 459 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 últimos anos, colocando à disposição uma grande quantidade de informações e múltiplas formas de acesso a elas. A mudança no modo como as pessoas se relacionam com a informação e seu impacto na sociedade se baseia na essência da Internet: sua dinâmica e sua capacidade de extinção das fronteiras para possibilitar o acesso global a diversos tipos de informação e onde encontrar a informação relevante é fundamental para que a mesma possa ser utilizada. Com o apoio das TIC é possível criar sistemas e serviços avançados de informação e de prevenção de riscos sobre o meio ambiente como alerta e suporte ás políticas públicas, estratégias empresariais e ações sociais. A sociedade do conhecimento se baseia no uso compartilhado de recursos, na construção coletiva de conhecimento, na interação livre de restrições de espaço e tempo e, na valorização do direito à informação, às tecnologias de informação e comunicação e à educação, como um bem comum, assim a população passa a ter mais poder diante da reivindicação de seus direitos, uma vez que, a informação e o conhecimento, matérias-primas indispensáveis para a construção da nova sociedade. Dziekaniak e Rover (2011, p. 7) apontam que a evolução das tecnologias da informação e comunicação e a sua invasão nos países periféricos, sem um compromisso sério dos Governos em repensar a nova economia, ou proposição e aplicação de novas formas de manutenção e gestão da sociedade como um todo, levando em consideração o grande impacto que as tecnologias da informação e comunicação trazem (principalmente na geração de empregos e desenvolvimento social), faz com que os inúmeros aspectos negativos ganhem terreno e coloquem a Sociedade da Informação em crise. Uma crise sem precedentes na história, dado que os aspectos que a desencadearam tendem a crescer exponencialmente e se desenvolverem. Enquanto por outro lado se percebe, senão a estagnação, pelo menos não a mesma preocupação dos governos frente à proposição de projetos e incentivos relativos à educação e à inserção da população neste novo contexto digital. - 460 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Nessa nova sociedade, as políticas públicas deviam traduzir em seu processo de elaboração e implantação e, sobretudo, em seus resultados as formas de exercício do poder político desta população, envolvendo a distribuição e redistribuição de poder (e do conhecimento), o papel do conflito social nos processos de decisão e a distribuição de custos e benefícios sociais. (TEIXEIRA, 2002) Entretanto, para que isso ocorra, Lévy (2010) aponta que na sociedade do conhecimento as pessoas devem ser preparadas e educadas para a interação com as informações, não se deve fabricar pessoas que consomem informação previamente empacotadas por terceiros. Para o autor, a população tem de ser formada e habilitada para a interação crítica, a fim de compreender qual informação possui fonte fidedigna e ser capaz de encontrar a informação que procuram enquanto produzem informação para ser consumida, através da inserção do material contida nas fontes em seu contexto social específico, resultando em um movimento de troca, colaboração e complementação de conhecimentos, que alimenta o sistema. Contudo, como o poder é uma relação social que envolve vários atores com projetos e interesses diferenciados e até contraditórios, há necessidade de mediações sociais e institucionais, para que se possa obter um mínimo de consenso e, assim, as políticas públicas possam ser legitimadas e obter eficácia. No âmbito da mediação o profissional da informação apresenta-se qualificado para atuar, sendo assim o presente projeto busca inserir o profissional da informação e suas habilidades mediadoras no processo de formulação e avaliação de políticas públicas, aproximando governantes e governados em uma discussão produtiva de melhoria da sociedade em que estão locados. 2 As políticas públicas e a ciência da informação. As políticas públicas vêm sendo definidas historicamente como um campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, cobrar ações de - 461 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 governos democráticos e constantemente avalia-las propondo mudanças e adequações sempre que necessário. Considera-se que este ramo do conhecimento contou com quatro grandes fundadores: H. Laswell (1958), H. Simon (1957), C. Lindblom(1959) e D. Easton (1965), que apresentaram conceitos norteadores dos estudos de ação do poder público; regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade, mediações entre atores da sociedade e do Estado, nesse caso, políticas explicitadas, sistematizadas ou formuladas em documentos (leis, programas, linhas de financiamentos) que orientam ações que normalmente envolvem aplicações de recursos públicos). Os objetivos das políticas têm uma referência valorativa e exprimem as opções e visões de mundo daqueles que controlam o poder, mesmo que, para sua legitimação, necessitem contemplar certos interesses de segmentos sociais dominados, dependendo assim da sua capacidade de organização e negociação. Para associar o profissional da informação ao contexto das políticas públicas é importante ressaltar que as formas de atuação do Estado com relação aos elementos estruturais da Sociedade são cruciais, uma vez que suas políticas podem traçar o horizonte e definir os modos de interação dos indivíduos, grupos, organizações e instituições públicas e privadas, tanto no interior do Estado quanto fora de seus limites institucionais. (MIRANDA, 2000,p.4). A Ciência da informação não nasce como uma ciência social, mas acaba adquirindo uma bagagem nesse contexto ao se importar com o registro e recuperação das informações. Entre os primeiros autores a destacar a posição social desse campo da ciência estão Borko (1968), Wersing e Neveling (1975), apontando que a melhora na transferência do conhecimento por meio de um processo de disseminação e compartilhamento preciso de conteúdo, auxiliando o desenvolvimento de outras áreas. - 462 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A partir das observações apontadas, tornar-se-ia necessária, sob o olhar da Ciência da Informação como ciência transdisciplinar que se propõe encontrar soluções aos conflitos sociais entre ciências e tecnologias, a elaboração de métodos que proponham modelos teóricos capazes de produzir resultados de arquiteturas da informação simples o bastante para serem compartilhadas por todos, dadas as características de interatividade presentes na Web, e que, assim, venham a ser úteis em sua aplicação e contribuam para uma melhor condução da informação, elemento precioso em uma sociedade em que o conhecimento interativo é o seu caracterizador e o poder efetivamente usufruí-lo constitui condição essencial para a construção dos saberes e para o desenvolvimento de indivíduos no poder. Nesse aspecto a atuação de um profissional capacitado para mediar informações e construir uma cultura para compartilhar conhecimento, criar ambientes para transferência de conhecimento tácito (Sveiby, 2000) de acordo com a necessidade de um público específico se torna essencial. Os profissionais da informação usam diariamente essas habilidades nas suas atividades, como esclarecem Tarapanoff, Suaiden e Oliveira (2002) ao afirmar que que o profissional da informação ou do conhecimento tem a habilidade de lidar com a informação e conhecimento, agregando valor aos mesmos, a fim de trabalhar com pessoas incentivando-as a participar da sociedade e exercer a cidadania. 2.1 Metodologia A pesquisa caracteriza-se como de tipo exploratória, descritiva bibliográfica e analítica, possuindo uma abordagem qualitativa, abordando investigações do campo teórico e metodológico da Ciência da Informação que contribui para as politicas publicas : teorias, princípios, processos da Ciência da Informação, em especial da Organização da Informação, Representação da Informação, Mediação da Informação, Estudo de Usuários e de Comunidades e das Tecnologias de Informação e Comunicação no contexto da World Wide Web. Com relação à pesquisa aplicada, serão - 463 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 analisadas e identificadas nos ciclos de desenvolvimento de políticas públicas de informação e tecnologia a as características e habilidades dos profissionais da informação que podem ser exploradas nesse contexto. 3 Resultados: Apresentação e discussão Diante do importante e desafiador momento que nos encontramos no cenário das mudanças nos setores econômicos, tecnológicos e políticosociais, inquietou-nos pensar a respeito das extensões das políticas científicas brasileiras para atender as demandas de novas produções optadas pelos pesquisadores. As atividades de produção de indicadores quantitativos em ciência, tecnologia e inovação vêm se fortalecendo no país na última década, com o reconhecimento da necessidade, por parte dos governos federal e estaduais e da comunidade científica nacional, de dispor de instrumentos para definição de diretrizes, alocação de investimentos e recursos, formulação de programas e avaliação de atividades relacionadas ao desenvolvimento científico e tecnológico no país. Na área de ciência e tecnologia, o maior desafio no Brasil é a elaboração e a implementação de uma política de longo prazo que permita ao desenvolvimento científico e tecnológico alcançar a população e que efetivamente tenha um impacto determinante na melhoria das condições de vida da sociedade. As políticas públicas são um processo dinâmico, com negociações, pressões, mobilizações, alianças ou coalizões de interesses. Assim as políticas públicas se desenvolvem através de um ciclo deliberativo, formado por vários estágios e constituindo um processo dinâmico e de aprendizado. O ciclo da política pública é constituído segundo Howlett e Ramesh em 1993, e tem como objetivo criar uma visualização e interpretação organizada da vida de uma política pública em fases sequenciais: identificação do problema, definição de agenda, identificação de alternativas, avaliação das opções, seleção das opções, implementação e avaliação. - 464 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Figura 1 – Representação do ciclo da política pública ( Howlett e Ramesh, 1993). O diagrama cíclico apresenta o processo político e sua realidade empírica, a separação em etapas se presta aos objetivos de evidenciar, ao longo do processo, ênfases diferenciadas no planejamento, operação ou avaliação dos programas. Talvez a principal contribuição da ideia do ciclo da política seja a possibilidade de percepção de que existem diferentes momentos no processo de construção de uma política, apontando para a necessidade de se reconhecer as especificidades de cada um destes momentos, possibilitando maior conhecimento e intervenção sobre o processo político. Já as desvantagens estão por conta da inevitável fragmentação que a ideia de fases provoca em qualquer análise a ser empreendida. Por - 465 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 mais que haja um cuidado do analista em não isolar uma fase e seus efeitos, há sempre o risco de tratá-la de forma estanque. Além disto, a aplicação deste (s) modelo(s) carrega consigo o perigo de se imaginar que a política se comporta de forma previsível. Imagina que é possível fazer um estudo das políticas que seja neutro ou que abstraia totalmente das disputas e intenções dos analistas. Ou seja, há dificuldade de se discutir as implicações políticas na afirmação deste ou daquele modelo. No entanto, esta é uma questão que se apresenta para todo o campo de análise da política e não apenas para o uso específico deste modelo. (RESENDE, 2011, p.3). Justifica-se ainda para fins didáticos e para orientar o recorte analítico na pesquisa acadêmica na área de forma heurística, ou seja, possibilitando a organização das ideias facilitando a comparação entre casos heterogêneos (RESENDE, 2011). A primeira fase focaliza os problemas, isto é, problemas entram na agenda quando se assume que algo deve ser feito a respeito destes. O reconhecimento e a definição dos problemas afetam a definição da agenda, apresentada como a segunda fase. A terceira fase se baseia na formulação de alternativas que o governo local aceita como provável solução para os problemas apontados, a quarta fase focaliza a política propriamente dita, ou seja, como se constrói a consciência coletiva sobre a necessidade de se enfrentar um dado problema. Essa construção se daria via processo eleitoral, via mudanças nos partidos que governam ou via mudanças nas ideologias (ou na forma de ver o mundo), aliados à força ou à fraqueza dos grupos de interesse. Segundo esta visão, a construção de uma consciência coletiva sobre determinado problema é fator poderoso e determinante. A quinta fase se pauta nos possíveis efeitos que essa política apresenta, através da avaliação de sua eficiência e eficácia. Enxergamos assim, nesse projeto a intensa participação do profissional da informação nas fases de identificação do problema (1ª fase), onde verifica-se a necessidade de habilidades de inteligência competitiva - 466 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 para perceber os focos de conflitos e transformar dados avulsos em informação, assim apontando a direção a ser seguida. Na fase do ciclo sociais no momento de finalização e implementação desta política (4ª fase) emprega-se a gestão da informação e suas capacidades e recursos informacionais para que o Estado administre as informações como um recurso estratégico fundamental para uma eficaz adaptação às mudanças, já no processo de avaliação (5ª fase), o monitoramento informacional é de extrema importância para o processamento de informações na forma de experiências e práticas documentadas e explicitadas, tanto no ponderamento de processos quanto no de resultados concretos alcançados tais etapas necessitam da mediação entre os agentes formadores das políticas e a população beneficiada Figura 2 – Representação da atuação do profissional da informação no ciclo de política pública. - 467 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 Entendem-se aqui como partes envolvidas as profissões que procuram tratar a informação, ou seja, bibliotecários, arquivistas, cientistas da computação, engenheiros de softwares dentre outros. A organização de serviços de informação para fazer frente a requisitos específicos é, na verdade, o ponto crucial do manejo da informação, e é de responsabilidade básica dos especialistas da informação constantemente inovar produtos e serviços para prover o conhecimento de direito a todo cidadão. 4 Considerações Finais O crescimento da área de políticas públicas na pesquisa acadêmica que se realiza atualmente no Brasil é evidente. Várias áreas do conhecimento, e não só a ciência política, vêm realizando pesquisas sobre o que o governo faz, ou deixa de fazer. Portanto, a academia, juntamente com órgãos governamentais e centros de pesquisa, estes últimos com tradição mais antiga na área, têm ampliado sua presença nos estudos e pesquisas sobre políticas públicas. Ao entender as políticas públicas como diretrizes, princípios norteadores de ação do poder público; regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade, mediações entre atores da sociedade e do Estado é necessário um caminho de mão dupla entre os discursos de ambos os interessados o que, porém, nem sempre ocorre, devido a incompatibilidade entre as intervenções e declarações de vontade e as ações desenvolvidas. Observa-se que o desenho de muitas políticas públicas são verdadeiras caixas pretas, no sentido de abstração. Para se entender como certos bens e serviços são obtidos e como os atores estão envolvidos no processo é necessário que opere uma transparência para que a população entenda como os produtos e serviços anunciados correspondem as transformações do meio. - 468 - Narrativas Imagéticas, Diversidade e Tecnologias Digitais 2016 A atuação do profissional da informação no planejamento das atividades de gestão pública e na avaliação permite essa ponte, trazendo consigo a presença cada vez mais ativa da sociedade civil nas questões de interesse geral, tornando fundamental a necessidade do debate público, da transparência, da sua elaboração em espaços públicos e informacionais e não somente nos gabinetes governamentais. Referências BORKO, H. Information Science: What is it?. American Documentation, v. 19, n.1, p. 3-5, Jan. 1968. Disponível em: http://aprender.unb.br/course/view.php?id=3530 Acesso em 20 jul. 2015 DAVENPORT, T. H., PRUSAK, L.. Conhecimento empresarial. Rio de Janeiro: Campus, 1998. 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