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Revista de psicología (Santiago)

versión impresa ISSN 0716-8039versión On-line ISSN 0719-0581

Rev. psicol. vol.30 no.1 Santiago ene. 2021

http://dx.doi.org/10.5354/0719-0581.2021.56512 

Sección Regular

Adolescentes desinteressados? Reflexões de estudantes do ensino médio público sobre sua escola

Uninterested adolescents? Reflections of public high school students about their school

Aline Cristina Ferreira1 

Letícia Gonzales Martins1 

Juliana Soares de Jesus2 

Maura Assad Pimenta Neves3 

Guilherme Siqueira Arinelli1 

Vera Lucia Trevisan de Souza1 

1Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

2Centro Universitário Unimetrocamp YDUQS, Campinas, Brasil

3Centro Universitário UNIFAAT, Atibaia, Brasil

Resumo:

Ancorados nos pressupostos teórico-metodológicos da psicologia histórico-cultural, objetivamos discutir como estu-dantes do primeiro ano do ensino médio da rede pública estadual percebem a escola e analisar como essas percepções se relacionam com sua aproximação/afastamento dos processos de ensino-aprendizagem. Reunimos duas pesquisas de iniciação científica, uma realizada a partir das respostas de questionários aplicados a 86 alunos do período diurno e outra de dois encontros realizados com 57 alunos do período noturno. Resultados demonstraram que os adolescentes destacam as condições materiais e de organização da escola como aspectos que os afastam das atividades de ensino, assim como valorizam a relação dialógica com o professor como central para seu envolvimento com os conhecimentos. Evidencia-se que os adolescentes estabelecem uma relação de caráter pragmático e socializador com a escola, pois frequentá-la seria um meio de alcançar um emprego ou de convívio com os colegas. Concluímos que é preciso reconhecer os alunos como atores ativos no processo de transformação escolar e desconstruir a concepção de adolescentes como naturalmente desinteressados. Ressaltamos a importância de se construir espaços para maior participação dos alunos com a finalidade de favorecer novas reflexões sobre o contexto escolar e sua relação com a vida atual e futura dos jovens.

Abstract:

Anchored in the theoretical-methodological assumptions of historical-cultural psychology, we aim to discuss how freshmen high school students at a state public school apprehend their school and analyse how these perceptions relate to their approach/distance from the teaching-learning processes. We gathered two undergraduate research, one carried out from 86 questionnaires answered by morning class students, and the other from two meetings with 57 evening class students. Results show that these students highlight the school’s material and organizational conditions as aspects that distance them from teaching activities, as well as value the dialogical relationship with the teacher as central to their involvement with knowledge. It is evident that adolescents establish a pragmatic and socializing relationship with school, since attending to it would be a means of getting a job or socializing with colleagues. We conclude that it is necessary to recognize students as active actors in the school’s transformation process and to deconstruct the conception of naturally disinterested adolescents. We emphasize the importance of building spaces for greater student participation in order to encourage new reflections about the school context and its relation with the current and future lives of young people.

Keywords: high school; school dropout; school psychology; adolescence; historical-cultural psychology

Introdução

O presente artigo tem como objetivo discutir como os estudantes do primeiro ano do ensino médio da rede pública estadual de ensino percebem a escola e analisar como estas percepções se relacionam com o movimento de aproximação/afastamento dos alunos em relação aos processos de ensino-aprendizagem. Para tal, unimos os resultados de duas pesquisas de iniciação científica, sendo uma realizada com os alunos do período matutino e outra com os do período noturno, ambas desenvolvidas em uma mesma escola localizada em um município do interior do estado de São Paulo.

No Brasil, o ensino médio é a última etapa do período de escolarização, encerrando o que se denomina de educação básica. Contudo, apesar do movimento de universalização da educação ter ganhado força a partir da década de 1990, com a instauração da LDB (Lei Federal nº 9.394/96) que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional e garantiu a obrigatoriedade e gratuidade do ensino básico, foi somente a partir dos anos 2000, com a Emenda Constitucional nº 59 (2009), no artigo 208, que instituiu-se a obrigatoriedade da escolarização básica até os 17 anos, inclusive aos que a ela não tiveram acesso na idade própria.

Atualmente, os dados apresentados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) revelam um aumento significativo de matrículas no ensino médio —de 3.772.698 em 1991 para 7.930.384 em 2017—, entretanto os altos índices de evasão 1 vêm preocupando educadores e especialistas da área. Nos últimos anos, a taxa de evasão e abandono do primeiro ano do ensino médio foi de 12,9%, revelando-se a mais alta quando comparada aos anos anteriores (INEP, 2013, 2017, 2018).

Em pesquisas desenvolvidas recentemente sobre esse tema, percebemos ser frequente o apontamento de gestores e professores sobre o significativo desinteresse manifestado pelos alunos referente à escola e ao conhecimento nela veiculado, indicando a perda do sentido do espaço escolar (Andrada, Oliveira, Correia, Cruz, & Paiva, 2018; Barbosa & Souza, 2018; Grecco & Souza, 2017; Souza, 2016). As explicações difundidas pelo senso comum a esse fenômeno, apontam o adolescente como principal responsável pelo fracasso escolar, e atribuem ao abandono e à evasão escolar causas como gravidez e o ingresso no mercado de trabalho, as quais não condizem em completo com a realidade (Tartuce, 2015).

Em contrapartida, a psicologia histórico-cultural, da qual adotamos os fundamentos teórico-metodológicos, defende um movimento de despatologização da adolescência, compreendendo o adolescente enquanto sujeito constituído no e pelo social. Sendo assim, a adolescência é interpretada como um período marcado por crises resultantes de uma nova combinação de elementos biológicos e sociais que constituem a relação sujeito-meio. Essa relação não é harmônica, mas marcada por conflitos e dramas devido às novas demandas que o meio apresenta ao adolescente e que requerem recursos dos quais ele ainda não dispõe (Medeiros, Arinelli, & Souza, 2018).

Concomitante e dialeticamente, o psiquismo do adolescente amplia sua capacidade de abstrair e realizar generalizações, favorecendo a constituição de um sistema conceitual mais complexo em sua relação constante com o meio e a partir das significações configuradas nessa interação. Assim, ao partir do sincretismo característico da infância, passando pela formação de complexos e, finalmente, de conceitos, o sujeito alarga as suas possibilidades de apreender e se relacionar com o meio, criando diferentes formas de olhar e compreender a realidade (Vigotski, 2003). Esse processo promove, segundo Vigotski (2012), uma mudança de interesses que leva ao envolvimento com novas temáticas presentes na vida cotidiana, como por exemplo, política, economia, literatura, entre outras.

Tal transformação ocorre devido ao salto qualitativo das funções psicológicas superiores em que a imaginação e o pensamento assumem prevalência e possibilitam ao adolescente pensar o mundo e a própria vida por meio de conceitos abstratos (Vigotski, 2009). Isso porque a imaginação é uma função de substituição, ou seja, por ela o sujeito pode reproduzir atos e pensamentos, como se fossem reais, construindo, portanto, a partir dessa dinâmica, significações que regularão sua ação e pensamento, sem deixar de ser si mesmo. Compreendidos desta forma, imaginação e pensamento são funções fundamentais para a apropriação do conhecimento científico escolarizado, uma vez que ao se apropriar de conhecimentos complexos, ampliam-se as possibilidades do sujeito compreender e agir no mundo, resultando em um movimento não somente apreender o que faz/pensa, mas também de chegar às suas causas, condição necessária para que o sujeito tenha potência de ação (Souza & Arinelli, 2019) .

Concordamos com Libâneo (2012 ) em sua defesa de que a escola tem por função principal transmitir às novas gerações os conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade, de modo a favorecer a apreensão do legado da cultura humana pelos estudantes que dela tomam parte, impulsionando o seu desenvolvimento. Ao tomar contato com conhecimentos socialmente elaborados, o estudante, lançando mão da imaginação, realiza uma série de combinações dos elementos da realidade construindo novas significações, o que lhe permite ascender a modos mais elaborados de agir e pensar. Assim, ao desenvolver essas outras formas de acessar e de se relacionar com a realidade, o sujeito caminha em direção a ampliação de consciência de si próprio e de suas relações com o meio (Souza, 2016).

O meio, nesse sentido, é fonte de desenvolvimento do sujeito e se configura na relação dialética que este empreende com os outros que constituem o contexto em que está inserido e dessas relações depreendem as significações que serão atribuídas às experiências por ele vividas ( Vigotski, 2010 ). Diante desse quadro, nos questionamos e refletimos a respeito de quais relações o contexto da escola pública tem promovido entre seus estudantes e os demais atores escolares? Seriam relações favorecedoras de envolvimento e interesse ou afastamento e desinteresse? E quais significações têm sido configuradas pelos adolescentes a partir das relações empreendidas entre professor-aluno, professor-aluno-conhecimento, aluno-gestão, aluno-escola?

A nossa defesa é que a escola, enquanto instituição social, deve se configurar como espaço promotor do desenvolvimento de crianças e jovens e, portanto, como situação social de desenvolvimento (Andrada, Dugnani, Petroni, & Souza, 2019). Isso implica dizer que o investimento na interação com os adolescentes, através da criação de espaços dialógicos, mediados por elementos como a disponibilidade, a aproximação, o respeito e o reconhecimento do outro, pode favorecer práticas escolares que os afetem e possibilitem a promoção de novos interesses ( Arinelli, 2017 ; Neves & Souza, 2018).

Se aos alunos adolescentes é atribuída a representação de que não se interessam pelo conhecimento, caberia questionar: o que os manteria frequentando a escola? Se não pelo conhecimento escolarizado, pelo que se interessam? Como veem a escola que frequentam? Reside nessas reflexões a nossa intenção em discorrer no presente artigo a visão do aluno, com vias a entender o que está por trás deste aparente desinteresse e afastamento da escola.

Método

Partindo do aparente afastamento dos alunos para com o conhecimento escolarizado, esta pesquisa se direcionou a investigar os processos que envolvem este fenômeno, buscando compreender sua essência e sua historicidade, ao invés de se restringir à descrição daquilo que se manifesta como aparente. Para tanto, nos inspiramos no método materialista histórico-dialético (Vigotski, 2004), em consonância com os pressupostos teórico-metodológicos que sustentam nossas reflexões, para a construção da análise que será apresentada mais adiante. Assim, com os dados construídos a partir dos instrumentos e intervenções realizadas, formulamos discussões, sustentadas nos conceitos da psicologia histórico-cultural, acerca do movimento dialético de aproximação/afastamento dos alunos para com as atividades de ensino/aprendizagem.

Desta perspectiva, compreendemos que o método constitui uma unidade com os fundamentos teóricos e epistemológicos da pesquisa e configura-se como um modo de interpretar o mundo que se constrói no próprio ato de pesquisar, entre aproximações e afastamentos do pesquisador com o fenômeno investigado (Politzer, 1979). Desta forma, o método não se limita, portanto, à aplicação de uma sucessão de procedimentos, tampouco é determinado a priori, mas, ao contrário, está intimamente vinculado ao objetivo a que conduz e é, a um só tempo, caminho e instrumento de investigação (Vigotski, 1996) que não se separa do posicionamento e do compromisso ético-político do pesquisador.

A fim de transcender as aparências em busca da apreensão da totalidade, é preciso que o pesquisador conheça o fenômeno a ser investigado aproximando-se dele. Em um movimento dialético, ao colocar o fenômeno em movimento e fazer emergir as suas contradições, o pesquisador transforma e conhece melhor a si mesmo e o objeto de sua investigação (Delari, 2009).

A contradição, por sua vez, segundo Politzer (1979) é uma das mais importantes categorias do materialismo histórico-dialético, uma vez que tudo o que existe contém o seu contrário. Segundo o autor, é a contradição entre as partes de um todo —afirmação, negação e negação da negação— que promove o tensionamento necessário ao movimento e à mudança: “Há mudança, movimento, onde haja contradição. Esta é a negação da afirmação, e quando o terceiro termo, a negação da negação, se alcança, aparece a solução, porque nesse momento, a razão da contradição é eliminada, ultrapassada” (Politzer, 1979, p. 247).

A contradição, portanto, constitui toda a existência e, ao configurar-se como uma das categorias centrais da epistemologia que sustenta a perspectiva teórico-metodológica adotada no presente artigo, compreendemos que também se apresenta como elemento central para a construção da nossa análise. Em consonância com Gonzalez Rey (2002), adotamos o levantamento de indicadores de sentidos, que consiste em, após a realização de leituras sucessivas dos dados construídos nas intervenções, aglutinar os conteúdos semelhantes encontrados em diários de campo, transcrições, produções dos participantes, etc; a partir das palavras ou expressões previamente identificadas com base nos objetivos propostos. Essa organização pode ser feita por similaridade, complementaridade ou contraposição, justamente pelo fato de que, ao serem relacionadas, passam a indicar —tornam-se indicadores— categorias que sintetizam o todo.

Segundo Gonzalez Rey (2002), os indicadores são “elementos que adquirem significação graças à interpretação do pesquisador, ou seja, sua significação não é acessível de forma direta à experiência, nem aparece em sistemas de correlação” (p. 122). Entendemos que essa estratégia se alinha com o materialismo histórico-dialético visto que é possível abordar as partes a partir do todo em um movimento de tese, antítese e síntese, colocando em relevância as objetivações do todo, as contradições e as singularidades dos sujeitos, o que possibilita uma maior aproximação dos sentidos dos fenômenos investigados.

Procedimentos

A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, e aprovada sob o parecer nº 1.296.391/2015.

O estudo foi desenvolvido em uma escola pública da rede estadual de ensino que atende aos ensinos fundamental II e médio, com total aproximado de 1.500 alunos. A escola funciona em três períodos, sendo que o matutino atende os ensinos fundamental II e médio, o vespertino apenas o ensino fundamental II e o noturno o ensino médio. Sua estrutura física agrega 20 salas de aula, três banheiros femininos e três masculinos, um laboratório de informática, uma quadra poliesportiva, uma biblioteca e uma secretaria. A equipe conta com uma diretora, uma vice-diretora, dois professores orientadores pedagógicos, quarenta e três professores, dois agentes educacionais (inspetores) e funcionários responsáveis pela limpeza e pela alimentação (cantina e refeitório). A estrutura da sala de aula possui uma lousa, dois ventiladores, cerca de 40 cadeiras e carteiras, um armário utilizado para guardar livros didáticos e cortinas.

Como o grupo de pesquisa já desenvolvia intervenções com professores, equipe gestora e alunos, uma reunião apresentando os objetivos destes estudos foi realizada e após a aprovação da gestão escolar. Após o aceite, os objetivos e termos de consentimento livre e esclarecidos e de assentimento foram entregues e explicados aos alunos e responsáveis e os questionários aplicados por psicólogos-pesquisadores membros do grupo. Ao organizarmos os questionários, verificamos que haviam poucos questionários que derivavam do noturno, e, por este motivo, realizamos dois encontros com as turmas desse período para a construção dos dados.

Assim, no período matutino, foi utilizado como fonte de informações as respostas de 86 alunos a um questionário composto por complemento de frases, com 29 itens relacionados a temas do cotidiano escolar, aplicados pelos integrantes do grupo de pesquisa durante o ano letivo de 2016. Todas as respostas foram analisadas individualmente, agrupadas e classificadas para o levantamento de indicadores que, por sua vez, foram organizados por similaridade, complementaridade ou contraposição a partir da interpretação da pesquisadora (Penteado & Aguiar, 2018). Para cada item presente no questionário, foi feita uma organização por semelhança das respostas e um cálculo em porcentagem da incidência de cada grupo.

Para o presente artigo, com a finalidade de discutir as percepções dos alunos sobre a sua escola, foram selecionados 12 dos 29 itens, sendo eles: “O que minha escola tem de mais legal é”, “O que menos gosto na escola é”, “Meus professores são”, “Minha escola é”, “Em relação ao meu futuro a escola pode me ajudar se”, “Eu largaria a escola se”, “Me esforço para não faltar se”, “Para me interessar e me envolver a escola deveria ser/ter”, “Gostaria que na minha escola tivesse mais”, “E que nunca mais tivesse/E que tivesse menos”, “Presto atenção e me interesso quando o professor fala de” e “O que mais me atrapalha para aprender é”.

O outro conjunto de dados que compõe este artigo se refere à intervenção realizada em dois encontros com duração média de duas horas-aula, 1 hora e 40 minutos, com 57 alunos de duas turmas do período noturno. Ambos os encontros tiveram a mesma estrutura, a saber: inicialmente foram projetadas nas salas de aula dezenove fotografias de escolas de diferentes lugares do mundo registradas pelos fotógrafos Sebastião Salgado, Robert Doisneau e Julian Germain 2 . Após um período de apreciação guiado unicamente pela estética da imagem, foi apresentada aos alunos uma contextualização das fotografias e seus autores. Pedimos, então, para que os adolescentes representassem individualmente por meio de desenho ou escrita, a sua própria versão de escola vivida e da que gostariam de ter, ou seja, a escola imaginada. Os dois encontros foram gravados em áudio e, posteriormente, transcritos na íntegra.

Para o presente artigo selecionamos apenas os dados que contribuíram diretamente para a reflexão sobre como os estudantes percebem a escola e como essas percepções se relacionam com sua aproximação/afastamento dos processos de ensino-aprendizagem.

A seguir, apresentamos os resultados das intervenções realizadas com as turmas de ambos os períodos, seguido da discussão e conclusões.

Resultados

Como forma de organização, com a finalidade de apresentar os dados das pesquisas de maneira clara e concisa, optamos por separá-los em dois eixos. No primeiro eixo “A percepção dos adolescentes do ensino médio diurno” serão apresentados os resultados da pesquisa realizada com os alunos desse respectivo período, a partir do complemento de frases preenchidos por eles acerca de seu cotidiano escolar. E no segundo eixo, intitulado “A percepção dos adolescentes do Ensino Médio noturno”, apresentaremos como os alunos do período noturno significam o espaço físico da escola e suas relações com os pares e os professores a partir das intervenções realizadas. No tópico de discussão, aprofundaremos as reflexões com uma análise conjunta dos dados apresentados.

A percepção dos adolescentes do ensino médio diurno

Em uma primeira aproximação com os dados, percebemos um significativo direcionamento das respostas dos adolescentes indicando o desejo de que a instituição oferecesse um ensino de "maior qualidade": bons professores, melhor estrutura e infraestrutura —como laboratórios de ciências e informática— e que ela promovesse mais atividades extracurriculares. Além desses aspectos, também se destacavam elementos de incômodo e desconforto, como a “bagunça”, “desorganização da escola” e a “pichação”. Constatamos que a percepção dos alunos sobre o ensino se caracterizava por qualificações às aulas como "comuns" e/ou “chatas” ao mesmo tempo em que declararam ter mais interesse se a escola oferecesse um “ensino melhor e conteúdos diferenciados”. Nesse último grupo de respostas, concentraram-se ideias que variaram entre: "poder escolher qual matéria quero estudar", “aulas mais práticas”, “aulas que poderíamos interagir com os professores”, “aulas de música, canto ou desenho”.

Apesar das respostas indicarem que as aulas precisavam fugir do currículo comum, os adolescentes declararam prestar atenção e se interessarem por conteúdos escolares específicos, como “matemática”, “literatura”, “animais”, e outros assuntos relacionados à política e atualidades, referindo-se a “governo”, “assuntos polêmicos”, “assuntos atuais”. Apesar das críticas à instituição e ao corpo docente, grande parte dos alunos avaliou seus professores como “bons” ou “excelentes” e a escola como “boa” ou “importante”. Porém, uma contradição se fez evidente nesse conjunto de respostas, visto que os professores foram fonte de destaque não só no item que diz respeito ao que os alunos mais gostam na escola, como, também, os consideraram um dos fatores prejudiciais ao aprendizado em sala de aula.

A insatisfação com o modelo tradicional de aula expositiva, presente de forma hegemônica no ensino médio público, também ficou evidente nos dados que revelaram que o que mais atraía os alunos à escola eram as aulas que ocorriam em espaços externos, como educação física, e outras atividades como encontrar os amigos na cantina e no refeitório durante o intervalo ou praticar esportes, principalmente futebol, na quadra poliesportiva.

Por fim, no item “Em relação ao meu futuro a escola pode me ajudar se”, destacou-se nas respostas dos alunos o posicionamento pragmático que relacionava a escola a um espaço responsável por preparar os adolescentes para conseguirem se inserir no mercado de trabalho e conquistar um emprego. Seguido dessa relação, ressaltaram-se as respostas direcionadas à “adquirir conhecimento” e à continuação dos estudos, como “entrar na faculdade” e “preparar para o vestibular”. A mesma relação pragmática também se revelou na relação entre os itens “Eu largaria a escola se” e “Me esforço para não faltar se”, uma vez que apesar da maior parte das respostas indicar a intenção dos adolescentes de jamais abandonarem a formação escolar, mais da metade revelou que o maior motivo que os levavam a se esforçar para não faltar às aulas referia-se aos dias em que havia atividades para nota.

No tópico a seguir, apresentaremos os dados construídos a partir das intervenções com os alunos do período noturno e, em seguida, aprofundaremos as reflexões a partir da análise conjunta de ambos os eixos.

A percepção dos adolescentes do ensino médio noturno

Como percepção inicial do que seria a escola na vivência direta dos adolescentes, ficaram evidentes as queixas das condições materiais da instituição, a organização do espaço e a má conservação dos lugares da escola mais utilizados por eles, como o banheiro, o pátio e as salas de aula. O incômodo manifestado pelos alunos pode ser percebido na imagem e nos relatos abaixo ( figura 1 ).

Banheiro é uma coisa séria, é higiene, aonde se viu um banheiro sem tampa na privada? E papel higiênico que não tem? Se alguém quiser fazer o número 2 como faz?; Banheiro fedido e pombos no bebedouro; A parte da estrutura da escola também não é muito boa tem muitas rachaduras, quando chove molha aonde é para nós ficarmos no intervalo; A higiene não é a das melhores, diversas coisas que podia estar citando, mais apenas isso; A minha escola é suja por conta de ser ‘pública’ (manifestação, verbal e escrita, dos alunos quando questionados sobre a escola que tem).

Já no segundo momento, sobre a relação aluno-professor, observamos nas falas manifestadas pelos alunos durante o desenvolver da atividade o modo como estes compreendem a relação que estabelecem com os professores no processo de apropriação do conteúdo escolarizado no cotidiano escolar:

Pouco professor em sala de aula com 30, 40, 50 [alunos], etc.; Para mim a escola muita das vezes é chata porque o ensino não é muito bom, não por ser uma escola problema, mas sim pelos professores ensinarem por obrigação e não por gosto; A escola é chata por não ter nada além de alguns professores chatos que ensinam por obrigação; O ensino é ruim porque os professores não se empenham e não tem ânimo para passar as matérias e ensinar na escola ( figura 2 ).

Frente aos dados que se relacionam aos motivos para estarem na escola, percebemos que as manifestações que mais se destacam relacionam-se à obrigatoriedade imposta pelos pais/responsáveis ou, ainda, à socialização com os amigos e colegas.

“Estou aqui por causa da cinta. A cinta porque se eu não venho, meu pai briga”; “Eu venho por obrigação”; “Dona, a maioria do pessoal só vem aqui por causa dos amigos”

Por fim, quanto a percepção dos alunos sobre o conteúdo escolarizado, identificamos a crítica principal dos alunos direcionada à forma como o conteúdo é veiculado nas aulas, o engessamento das atividades realizadas por causa do conteúdo programático, o afastamento da relação com os professores e a falta de momentos de compartilhamento e efetiva troca no processo de ensino-aprendizagem.

“Queria também que os professores passassem mais matérias. Por exemplo, se o professor tem uma aula eles são 'obrigados' a passar só uma lousa, acho isso super errado. Essas coisas que me chamam mais atenção”; “O que [eu] queria da escola, aliás dos professores, é que eles perguntassem pros alunos que se perderam da matéria para que os alunos não parassem de fazer lição e enjoassem de estudar”; “Parasse de passar muita lição na lousa e explicasse mais”; “Eu queria que a escola representasse um lugar onde todas as pessoas são ouvidas e que o que os alunos pensam fosse mais ouvido pelos responsáveis da escola.”; “Uma escola que olhasse para os seus alunos como pessoas que querem ser alguém na vida”

Figura 1 Representação de um aluno sobre a estrutura física da escola. 

Figura 2 Representação de um aluno acerca da prática pedagógica vivida na escola. 

Discussão e conclusões

Quando nos aproximamos das falas dos estudantes do primeiro ano acerca de sua escola, nos deparamos com três grandes aspectos que se revelam como mobilizadores da produção do afastamento e da aproximação ao conhecimento escolarizado, sendo: as condições materiais e organização da escola; a relação com o professor; a função da escola como instituição de conhecimento.

A análise da relação dos estudantes com estes aspectos se apresenta abaixo.

As condições materiais e organização da escola

As falas dos alunos apontam o espaço físico da escola como uma estrutura que permeia a interação dos estudantes com o meio. No período noturno, essa interação é pautada pelo desconforto, estranhamento e aversão, uma vez que o ambiente retrata, para eles, odores desagradáveis, falta de higiene e ausência de cuidado. Já no período diurno, um desconforto semelhante ao apresentado pelo noturno é apontado pelos estudantes, entretanto, prevalece uma insatisfação com a infraestrutura da escola, como a indisponibilidade de laboratório de ciências, acesso à informática e o desejo de que a instituição promovesse mais atividades extracurriculares.

Segundo Vigotski (2012), o desenvolvimento dos interesses se dá nas relações estabelecidas entre o sujeito e o contexto em que está inserido, e a depender de como cada um significa sua experiência, se darão as diferentes formas de relação com o meio. Nesse sentido, não é algo inerente ao sujeito, mas produzido nas relações em um movimento dialético, no qual as mudanças internas também promovem modificações nas relações estabelecidas pelo sujeito com o mundo. Ao que nos parece, a relação dos alunos do noturno com a escola é permeada por significações que se relacionam à “falta de cuidado”, seja no sentido material ou simbólico da expressão. A longo prazo, essa significação parece conduzir a manifestações de indiferença, principalmente quando se mantém a percepção do espaço escolar como um ambiente de não acolhimento, o que compõe como os adolescentes agem e se apropriam desse espaço e dos conhecimentos que nela são veiculados.

Os adolescentes do período diurno, por sua vez, indicaram não estar satisfeitos com a estrutura física da escola, porém, de uma forma mais elaborada —possivelmente devido ao instrumento utilizado—, elencaram alguns fatores que enriqueceriam o seu processo de ensino-aprendizagem, como o acesso ao laboratório de informática e de ciências. Notamos, também, que ao contrário dos alunos do noturno, alguns espaços físicos da instituição aparecem como pontos positivos, como a quadra e a cantina. Tais constatações nos levaram a refletir sobre os motivos que sustentariam a diferença de percepção que alunos de uma mesma escola, porém frequentando períodos diferentes, possuem sobre a instituição.

Arinelli (2017 ) nos oferece alguns pontos de reflexão interessantes ao evidenciar manifestações semelhantes em sua pesquisa. O autor apontou, sobretudo, a diferença na caracterização e organização estética entre os períodos escolares. Sobre o período noturno, diferente das atividades da manhã, o espaço era mal iluminado, com lâmpadas queimadas nas salas e poucos focos de luz no pátio. A quadra permanecia trancada durante todo o período e os alunos, ao chegarem na escola, aguardavam do lado de fora da mesma até poucos minutos antes do início das aulas pelo fato dos portões ficarem fechados a cadeado. Às 19 horas, horário que anunciava o começo do período, todos os alunos se encaminham diretamente para as salas de aula, não havendo tempo ou espaço para socialização ou exploração do espaço.

Ao analisarmos o relato de Arinelli (2017 ) e o contrapormos às falas dos alunos participantes das pesquisas aqui apresentadas, percebemos que há em comum a configuração de um espaço físico que deixa de organizar-se como mediador para os processos de ensino-aprendizagem e culmina como violência simbólica (Takara, 2016), pela repreensão e controle sinalizados pelo excesso de muros, grades, portões, cadeados, regras e má conservação do espaço. Ocorre, dessa forma, que essas representações abrem prerrogativa para discursos presentes no senso comum que vinculam as condições relatadas pelos alunos ao fato da escola ser pública. Tal relação compreende o público como aquilo que ninguém se responsabiliza e que é malcuidado, promovendo ainda mais distanciamento do aluno e das famílias. O que nos parece é que o aluno não considera que o que é público lhe pertence, logo, não se vê participante na construção daquele espaço e responsável pela manutenção do mesmo.

O material produzido pelos estudantes de ambos os períodos demonstra a insatisfação dos adolescentes com o espaço físico da escola. As significações presentes remetem a uma instituição que carece de recursos materiais necessários para a efetiva aprendizagem. É fato que nenhum recurso físico por si só produz processos de ensino-aprendizagem, no entanto, é legítima a reivindicação dos estudantes por uma escola com melhores condições físicas de permanência. Porém, essa insatisfação não mobiliza ações concretas dos estudantes, mas significações de falta de pertencimento, e de sentido da instituição escolar para eles.

Outro fator que nos chama atenção é que a construção da relação dos alunos de ambos os turnos com a escola se inicia fora da sala de aula, nos pátios, nos corredores, e se perpetua, se aglutina e se desenvolve em diferentes encontros, o que constitui o processo de aproximação ou afastamento para com a instituição.

É interessante pontuar que, embora possamos identificar elementos que produzem o distanciamento dos alunos para com a escola, estes não se constituem como aspectos impeditivos de frequência às aulas e, na maioria dos casos, abandono total à instituição, o que nos leva a pensar sobre as relações que são empreendidas nesse espaço.

No item a seguir, nos aprofundaremos na discussão sobre um dos aspectos mais presentes na fala dos alunos: a relação aluno-professor.

A relação com o professor

Ao analisar as falas dos alunos, notamos que o professor se destaca como um ator importante em sua relação com o conhecimento escolarizado tanto nas respostas das turmas do diurno quanto nos relatos das turmas do noturno. Contudo, notamos algumas contradições nas manifestações dos alunos a respeito de seus professores. Se por um lado, em alguns momentos, estes aparecem como bons profissionais e como um dos quesitos que mais atraem os alunos à escola, por outro, os relatos também apontam a necessidade de mais professores bons e trazem a sua figura como um dos fatores que dificulta o processo de ensino-aprendizagem. Essas contradições nos fazem refletir sobre o que os alunos julgam ser um bom professor: quais fatores permeiam esse julgamento de bom/ruim? O que esperam de seus professores? Seria pela forma como ministram uma aula ou por terem um relacionamento permeado de afetos positivos?

Entre os alunos do período noturno, a relação com o professor aparece como algo distante, caracterizada pela ausência do diálogo, da reflexão e interação. Esse modo de relação parece produzir no aluno a sensação de desprazer do professor e, logo, a percepção de um desinteresse em lecionar. Essa relação se apresenta com certo cunho afetivo negativo, principalmente no que diz respeito aos modos como o professor demonstra prazer/desprazer em estar na sala de aula e em transmitir seu conhecimento. Nesse sentido, a relação estabelecida entre aluno-professor, parece estar limitada aos modos de compartilhamento do conhecimento por parte do professor. Conforme apontou Arinelli (2017 ), o interesse e a participação dos alunos é tanto maior quanto forem presentes elementos como respeito, curiosidade, implicação, disponibilidade e aproximação na relação, o que pode nos ajudar a compreender o modo como representam a relação que estabelecem com os professores, sobretudo na atividade de ensino-aprendizagem, e como isso parece justificar a produção do desinteresse deles pelo conhecimento escolarizado.

Enquanto no período noturno é explicitado um desinteresse pelo conteúdo escolarizado produzido, em parte pela relação com o professor, no diurno seu distanciamento se dá pela falta de alguns conteúdos específicos de interesse dos estudantes. Apesar de demonstrarem se interessar pelos conteúdos escolares previstos na estrutura curricular, demandam mais contato com questões sociais cotidianas dentro da sala de aula, vinculadas à política e atualidades. Os adolescentes demonstraram ter diversos objetos de interesse que parecem transbordar os conteúdos escolarizados, como os conceitos sobre democracia, sociedade e direitos civis e outros temas políticos contemporâneos.

Nos dados referentes ao período noturno, há uma relevância quanto à dimensão estética dos modos como o professor se apresenta em sala de aula, não somente no que tange à sua aparência, mas também sua postura, como seu tom de voz, vocabulário, preparação para a aula, relação com os alunos em sala de aula, entre outros. Por outro lado, com os adolescentes do matutino, se evidenciou a insatisfação com os modelos tradicionais de ensino, os quais se configuram em sua maioria com aulas expositivas, falta de espaço para participação e atividades que exigem apenas uma ação mecânica de cópia dos conteúdos expostos na lousa ou no Caderno do Aluno.

As respostas nos fazem perceber, portanto, que existe um anseio por parte dos alunos para a criação de espaços de participação ativa, com maior interação com os professores e discussão de temas que se relacionem com a realidade vivida e imaginada dos jovens. Segundo Vigotski (2012), há uma relação imbricada entre o pensamento e a imaginação de forma que, quando o primeiro se complexifica, ampliam-se as possibilidades do sujeito de imaginar e, dialeticamente, quando esta é ampliada, há o favorecimento da apropriação e a apreensão de novos conceitos. Assim, quando observamos as falas dos alunos do período diurno, percebemos que há um tipo de pensamento mais generalizado —com maior abstração— ao imaginarem novos temas que podem ser abordados em sala de aula. Por outro lado, a concentração de respostas dos alunos do noturno focaliza, majoritariamente, a figura do professor, o que parece reproduzir uma lógica já presente na experiência empírica destes e demonstra um processo imaginativo mais próximo da realidade vivida.

Todavia, as falas de alunos de ambos períodos marcam a importância do professor em sua trajetória escolar, o que nos leva a crer que compreendem que ele desempenha um papel central para sua efetiva aprendizagem, sobretudo quando citam como a postura e as diferentes maneiras de expor um conteúdo interferem em seu interesse. Compreendemos, portanto, que a ação do professor com vias a criar as condições necessárias ao processo de ensino-aprendizagem é um dos aspectos relevantes de se considerar quando discutimos a produção do interesse/desinteresse e do envolvimento/não envolvimento dos alunos.

Vigotski (2009) postula que a imaginação possui origem na realidade e nas experiências do sujeito, portanto, quanto maior for a experiência, maiores as possibilidades de desenvolver novas formas de significar e agir no mundo. Entendemos, assim, que não há ação sem imaginação e nem imaginação sem ação. Faz-se necessária, portanto, a criação de um ambiente escolar no qual o adolescente se sinta parte, promovendo o acesso deste a novas formas de interpretar e se relacionar com a realidade, mobilizando sua imaginação. O que destacamos é que quando há a mediação, as contradições emergem e podem ser criadas condições necessárias à transformação do meio.

Cabe ressaltar que o conceito de mediação em Vigotski (1995) não se trata apenas de algo entre duas coisas, mas um processo psíquico permeado por signos para a apropriação da cultura ocorra. O autor postula que o desenvolvimento ocorre no plano interpsicológico, ou seja, toda e qualquer FPS constitui-se no social, na relação com o outro. No contexto escolar, o professor assume papel fundamental para apropriação do conhecimento, pois atua enquanto agente do desenvolvimento que promove a mediação. Nesse processo, a emoção é função que se mobiliza, necessariamente, para que a apropriação se efetive.

O que fica claro na análise das respostas dos alunos é que a forma não se descola do conteúdo, pois o que os atrai é a possibilidade do diálogo, da discussão, da troca de experiências, da reflexão e das diversas perspectivas possíveis em relação a um conhecimento ou informação —aspectos essenciais para a mobilização da emoção, para que a mediação ocorra. Por isso que não se trata de culpabilizar o professor e vitimizar o aluno, mas observar que apesar das condições dificultosas intrínsecas à conjuntura educacional no país, faz-se necessário evidenciar como as relações estão estabelecidas e de que modo podem ser transformadas. A demanda dos alunos é de serem vistos pelos professores como sujeitos potentes, que têm perspectivas de futuro, e não como sujeitos desinteressados.

Sendo assim, para melhor compreender as demandas expostas pelos adolescentes participantes das pesquisas aqui descritas, discutiremos a seguir sobre o que compreendem como ‘escola’, qual função ela tem para eles e o que esperam desse espaço.

A função da escola como instituição de conhecimento

Percebemos nas falas dos adolescentes do diurno que eles compartilham um discurso muito frequente na comunidade escolar, o de que a escola é importante e é necessário frequentá-la. Porém, notamos a prevalência de uma relação pragmática com a instituição, pois essa importância é dada, principalmente, quando entendem ser necessário frequentar a escola para conseguir o que desejam no futuro. Para os alunos participantes, a aprendizagem, o conhecimento e o desenvolvimento, aspectos inerentes ao cotidiano escolar, fazem sentido na medida em que servem a algum fim, sobretudo quando relacionados a vantagens futuras no mundo do trabalho.

Compreendemos que esse modo como se relacionam é permeado pela lógica utilitarista, própria da experiência pragmática, em que a relação estabelecida com o meio se sustenta na pergunta “para que serve?”, sobrepondo a razão à sensibilidade (Ordine, 2016). Esse pragmatismo se destaca quando notamos que o maior motivo que os leva a se esforçar para ir à escola refere-se às atividades para nota, o que nos indica que frequentar a escola está associado às obrigatoriedades para conseguir uma aprovação e não às possibilidades de se apropriar dos conhecimentos escolarizados. Nos preocupamos com este raciocínio, pois a partir dele conhecimentos como arte, filosofia e literatura, são vistos muitas vezes como inúteis para a vida dos sujeitos. Deixa-se de lado o conhecimento intrínseco inerente a eles, pois aparentemente não têm valor para o desenvolvimento de habilidades aplicáveis que geram lucro (Ordine, 2016).

É interessante notar que nossos próprios documentos oficiais de educação acompanham esse mesmo movimento, principalmente após a “Conferência Mundial sobre Educação para Todos” realizada em 1990, a partir da qual diversos documentos norteadores para educação foram elaborados de forma que a escola pública passou a ter como objetivo o desenvolvimento de “competências e habilidades mínimas para a sobrevivência e trabalho” ( Libâneo, 2012 , p. 20), o que indica um horizonte comum àquele indicado pelos alunos: a inserção no mercado de trabalho. Assim, a escola assume uma função majoritariamente pragmática, torna-se uma etapa obrigatória que deve ser cumprida para poder aumentar as chances de se conseguir um emprego no futuro, deixando de lado o valor essencial da educação, ou seja, a possibilidade de promover o desenvolvimento de formas mais ampliadas e complexas de pensamento.

No período noturno, a relação com a escola também é permeada majoritariamente por motivos que não se relacionam ao interesse pelo ensino escolarizado. É necessário ressaltar que isto não significa que não existe manifestação dos interesses pela escola, porém estes não estão direcionados ao conhecimento científico, mas sim ao campo das relações: por obrigação imposta pelos pais/responsáveis e/ou para conversar com os amigos e socializar. Dessa forma, o interesse se aproxima de uma escola cuja função está em proporcionar um espaço de caráter assistencialista e de socialização ( Libâneo, 2012 ).

Essas informações nos levam a concluir que os alunos não compartilham, em grande medida, da função social da escola como instituição responsável pela socialização do conhecimento escolarizado e a promoção do desenvolvimento, sendo que no diurno observa-se a escola como meio para se atingir a um fim e no noturno como um espaço de convivência. Dessa forma, observamos que o estudante frequenta a escola, porém não vivencia seu processo de escolarização de forma prazerosa no que se refere ao conhecimento apropriado nesse espaço. Sobre isso, é interessante notar os efeitos da educação bancária nas significações dos estudantes.

Freire (2013) explica que a educação bancária é aquela em que há uma relação vertical entre educador e educando: pressupõe-se que o professor detém todo o conhecimento e deve transmiti-lo, depositá-lo em seus alunos, que aguardam, obedecem, assistem, copiam, repetem, memorizam. Neste formato, o educando deve se adaptar e não questionar. De acordo com o relato dos estudantes, é possível fazer aproximações com a educação bancária e a educação que vivenciam em sua escola.

Sendo assim, o estudante não compartilha a função social da escola como espaço de desenvolvimento e apropriação de conhecimentos, pois a forma como ela está constituída não o coloca como parte de seu processo de aprendizagem, não está próxima de sua realidade concreta, logo não é promotora de interesse. Mesmo assim, alguns alunos do diurno ainda citam que a escola é importante para adquirir conhecimento e os alunos do noturno expressam exemplos de como gostariam de aprender em sala de aula.

Nesses momentos, observamos que os estudantes desejam estar na escola para aprender e se relacionar, aspectos essenciais para o desenvolvimento ocorrer. Os estudantes desejam um lugar de apropriação do conhecimento científico, um espaço coletivo e de interações, o que remete a importância de ser um espaço dialógico no qual as singularidades tanto do professor como do aluno são potentes, uma vez que quando o aluno consegue acessar o conhecimento científico e generalizá-lo em sua realidade, se mobiliza e se envolve nas atividades propostas da escola e, o professor por outro lado, vivencia a sua prática sendo efetivada.

Considerações finais

Compreendemos que a ausência de participação e o desinteresse dos alunos é uma temática complexa a ser superada por envolver questões multifacetadas e que vão muito além do ambiente escolar e de sala de aula. Contudo, para nós, o desinteresse é um afeto que mobiliza o sujeito e é produzido no social e, portanto, necessita da presença do outro para se manifestar (Barbosa & Souza, 2018).

De modo geral, nos parece que em alguns momentos os alunos apenas reagem às condições da escola e, não compreendendo as situações, não ascendem aos “por quês?”, reflexão possibilitada justamente pela imaginação e pensamento por conceitos. Deriva disso o que é percebido como desinteresse, falta de ação, de atenção, a dificuldade de aprendizagem, no abandono, distanciamento e evasão da escola.

Ao que nos parece, esse conjunto de respostas vai contra à postura frequentemente esperada do aluno na sala de aula: rígida, de assimilação passiva do conteúdo. Sendo assim, compreendemos que é preciso nos afastar da concepção do adolescente naturalmente desinteressado, e retomar o que postula Vigotski, de que nos constituímos a partir das relações que estabelecemos com o meio e assumir que o interesse não é algo inato e natural, mas construído.

As dificuldades no processo ensino-aprendizagem, do interesse e/ou desinteresse são construídos/desconstruídos nas relações estabelecidas. É necessário, portanto, aproveitar o anseio dos alunos por maior participação para construir espaços de reflexão sobre o papel da escola e reconhecê-los, efetivamente, como atores com voz ativa no processo de transformação escolar. Em suma, é preciso compreender o aluno como sujeito ativo de seu processo de formação e assumi-lo como parte integrante da escola, produzindo novas possibilidades de se construir propostas de enfrentamento ao desinteresse em conjunto com os demais atores escolares. É importante que futuras pesquisas continuem a dar voz aos estudantes das escolas públicas, contribuindo para a reflexão sobre o que eles compreendem como “bons professores” e um “ensino de qualidade”, aspectos que foram evidenciados na presente pesquisa, mas que poderiam ser melhor aprofundados, com vias a nos aproximar cada vez mais dos processos de produção de interesse para eles.

Para atingir essas novas possibilidades, ressaltamos a importância e o espaço para a atuação do psicólogo escolar crítico em parceria com a equipe escolar para a construção de espaços de diálogo, como profissional que atua nas relações para promover o desenvolvimento e, consequentemente, a ampliação da consciência dos sujeitos e seu poder de agir. Na fala de um dos alunos participantes: “escola não deveria ser um lugar chato, deveria ter coisas interessantes para podermos ocupar a mente. Somente assim podemos garantir um futuro melhor”.

Apreciação

Agradecimento ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e à Pontifícia Universidade Católica de Campinas, que concederam as bolsas para a realização desta pesquisa.

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1Conforme o Anuário Brasileiro de Educação Básica, publicado em 2017 pelo movimento “Todos pela Educação”, o abandono escolar se refere ao aluno que deixa de frequentar a escola durante o andamento do ano letivo e a evasão escolar se configura quando o aluno, após ter sido matriculado em determinado período escolar, não se matricula no ano seguinte, independentemente de seu rendimento (ter sido aprovado ou reprovado).

2A escolha dos trabalhos desses fotógrafos se deu por terem como tema central a escola e seu cotidiano, buscando fazer emergir questões acerca das relações dos alunos com a instituição e com o ensino.

Recebido: 30 de Janeiro de 2020; Aceito: 18 de Março de 2021

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