efdeportes.com
Epistemologia da prática pedagógica na Educação Física nas séries iniciais do ensino fundamental

   
* Doutora em Educação/UFBA
Professora do Centro de Educação/UFSM
** Licenciado em Educação Física/UFSM
Aluno do curso de especialização em Atividade Física,
Desempenho Motor e Saúde do CEFD/UFSM
 
 
Profª. Dra. Ane Carine Meurer*
Profº. Érico Felden Pereira**

edfisicasm@yahoo.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    O presente artigo fala sobre epistemologia da prática profissional, abordando questões de formação e prática dos professores que trabalham com a Educação Física nas Séries Iniciais. Buscou-se aprofundar a questão a respeito dos saberes necessários à prática profissional e qual a realidade da disciplina no meio escolar. Para isso foram realizadas entrevistas, observações, participações em reuniões pedagógicas e atuação prática em duas turmas de séries iniciais em uma escola estadual de um bairro na cidade de Santa Maria - RS. A partir das ações realizadas percebemos que a educação física nas séries iniciais vem sendo negligenciada por muitos professores; sendo a formação deficitária e a desvalorização da disciplina no meio escolar, aspectos importantes a serem considerados. O trabalho corporal nessas séries exige do professor um grande repertório de saberes adquiridos tanto na educação formal quanto informal e pela experiência. Além disso, para que seja realizado um trabalho de qualidade de educação física nestas séries é necessário o envolvimento de toda a comunidade escolar no sentido de oferecer condições para a realização das atividades e também que os professores tenham a consciência da importância da disciplina para o desenvolvimento harmônico dos alunos.
    Unitermos: Epistemologia. Educação Física. Séries iniciais.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 10 - N° 84 - Mayo de 2005

1 / 1

Contextualização inicial

    Atualmente, diferentes práticas pedagógicas relacionadas ao saber da experiência, com base na ação docente, têm sido objeto de estudo de pesquisadores. Assim, diversos estudos procuram compreender os espaços-tempos educacionais, as práticas pedagógicas e as epistemologias que lhe fundamentam.

    A epistemologia da prática, neste contexto, apresenta-se como o conjunto dos saberes utilizados realmente pelos sujeitos, pelos profissionais, pelos docentes na sua própria realidade de atuação, para conseguir atingir os objetivos, utilizando-se de diferentes recursos e conhecimentos provindos da sua formação formal e não formal, vivências, valores a aspirações. Conforme Bombassaro (1992), no estudo das ações dos indivíduos deve-se buscar uma relação não dualista entre a racionalidade, a historicidade e a ética dos sujeitos para, a partir disso, buscar as razões para suas práticas.

    A ação docente deve ser muito mais que uma ação técnico-instrumental. Não é possível mais falar de verdades em educação, a escola como a sociedade possui uma organização dinâmica e as suas exigências estão cada vez maiores. As escolas formadoras, muitas vezes, não conseguem acompanhar esta dinâmica, preparando profissionais/educadores para trabalhar em uma escola idealizada. Assim, muitos educadores transformam suas práticas em uma imitação/repetição de ações pouco efetivas aprendidas durante sua formação.

...a prática profissional nunca é um espaço de aplicação dos conhecimentos universitários. Ela é na melhor das hipóteses, um processo de filtração que os dilui e os transforma em função das exigências do trabalho; ela é, na pior das hipóteses, um muro contra o qual vêm se jogar e morrer conhecimentos universitários considerados inúteis, sem relação com a realidade do trabalho docente diário nem com os contextos concretos de exercício da função docente (Tardif, s/d, pg 9).

    Quando falamos, especificamente, da prática pedagógica dos professores que ministram aulas de Educação Física acrescentam-se outras problemáticas. A atividade desenvolvida pela Educação Física vem sofrendo algumas modificações, apresentando diferentes focos durante a história, como a higiene, a disciplina, o desempenho esportivo e mais atualmente a saúde. O fato é que nenhuma dessas tendências voltou-se para o objetivo primordial da Educação Física na escola que deve ser tratada enquanto uma ação pedagógica. Aliado a isso, temos que considerar que a Educação Física ainda não é reconhecida como ciência, não possuindo um foco básico de estudo, valendo-se enquanto prática escolar de áreas como a pedagogia, filosofia, sociologia, psicologia, etc. Essas e outras questões fazem com que a disciplina de certa forma, ainda não tenha conseguido firmar seu lugar e importância na escola, fato observado por meio de vivências e pesquisas no meio escolar. Um ponto de partida para mudarmos estas questões referentes à profissão é superar a idéia de um indivíduo fragmentado em que as ações cognitivas apresentam-se independentes das motoras.

A Educação Física escolar, certamente, pode perder esse estigma de subserviente e tornar-se uma ação pedagógica fundamental na formação do ser humano como um ser corporal [...] o corpo deve não ser mais um instrumento, mas a razão de viver. Ser corpo implica a idéia de viver e não de usar (Santin, 2002, p. 68).

    Etchepare, Pereira e Zinn (2003) pesquisando a Educação Física nas séries iniciais do Ensino Fundamental verificaram que muitos professores não tiveram orientação para trabalhar com a Educação Física nessas séries. Isso faz com que não trabalhem a disciplina por não saberem agir com os alunos que nesta fase de desenvolvimento apresentam-se, muitas vezes, bastante ativos e em algumas realidades escolares violentos, ou quando trabalham o fazem em forma de recreação, deixando os alunos livres no pátio não propondo atividades com objetivos claros. Os pesquisadores verificaram ainda, que os professores mesmo não trabalhando a Educação Física nos anos iniciais reconhecem que este trabalho é muito importante para o desenvolvimento harmônico dos alunos.

    Assim, este estudo tem por objetivo investigar e discutir a prática da Educação Física nas séries iniciais do Ensino Fundamental buscando compreender a epistemologia da prática profissional dos educadores que trabalham a Educação Física nessas séries, o conjunto de saberes necessários para essa prática pedagógica. E, além disso, identificar nas falas dos professores o seu pensamento a cerca do papel da disciplina, seu espaço e valorização no meio escolar.


Como organizou-se a pesquisa

    Para realização dessa pesquisa houve a inserção direta no meio a ser estudado, ou seja na escola e atuação com algumas turmas de séries iniciais sendo ministradas aulas de Educação Física. Além disso, houve o acompanhamento de aulas ministradas por outros professores, discussões com professores a respeito da disciplina, entrevistas com professores das turmas das séries iniciais responsáveis pela unidocência, com a coordenadora pedagógica das séries iniciais e com a diretora da escola. Esses procedimentos tiveram o objetivo de identificar além do pensamento e dos valores que fundamentam a ação dos professores na escola, também como funciona, na prática, a atuação docente com essas turmas. Foram ministradas aulas para duas turmas de quartas series, totalizando 30 aulas com encontros duas vezes por semana, durante dois bimestres letivos da escola. Essas turmas foram uma sugestão da direção da escola, pois segundo os professores são as turmas que mais precisam da Educação Física devido à falta de disciplina dos alunos. Também, foram acompanhadas algumas aulas de Educação Física para as séries iniciais, porém durante o processo de pesquisa na escola, que durou dois bimestres, algumas turmas não tiveram aulas dessa disciplina. A pesquisa foi realizada em uma escola de estadual de Ensino Fundamental em um bairro de Santa Maria - RS.


Resultados e discussões

    Neste item, explicita-se questões referentes aos dados coletados nas observações, entrevistas e atuação prática que foram realizadas na escola durante dois bimestres da escola. Durante as entrevistas buscou-se identificar a pensamento dos professores a respeito da importância da Educação Física nas séries iniciais, bem como a realidade da escola e as dificuldades que se revelam com a prática. Com a coordenação pedagógica e direção da escola focou-se os questionamentos às questões de valorização da disciplina na escola e o seu papel no conjunto de disciplinas. Durante as observações buscou-se identificar questões relativas à estrutura da aula, atuação do professor e resposta dos alunos, identificando o perfil do trabalho nessas turmas. E na análise da atuação prática buscou-se identificar as dificuldades e possibilidades encontradas naquele contexto. A partir desses dados tentou-se identificar quais os conhecimentos realmente necessários para a atuação prática sugerindo caminhos para que esta seja mais reflexiva e verdadeiramente significativa para o desenvolvimento do aluno.


A escola onde foi realizada a pesquisa

    A escola pesquisada, caracteriza-se por possuir alunos de diversas classes sócio-econômicas e que apresentam hábitos, histórias de vida e costumes bastante diferenciados. A escola dispõe de poucos locais e materiais para a prática de Educação Física, porém em cooperação com a comunidade escolar tem buscado formas de minimizar este problema. Durante a coleta de dados desta pesquisa a escola não possuía professores de Educação Física nas séries iniciais, ficando a cargo dos professores da unidocência ministrar a disciplina. Quanto à metodologia de ensino a escola recomenda que os professores sigam uma linha de trabalho que oportunize o desenvolvimento global do aluno e respeita seu contexto sócio cultural, utilizando Temas Geradores para atingir esses objetivos.


A prática pedagógica na Educação Física

    Buscou-se observar algumas aulas de Educação Física nas séries iniciais ministradas por outros professores. Isso foi possível em algumas turmas e em outras não, visto que no período da pesquisa não tiveram aulas de Educação Física. Também houve diversos momentos em que os alunos ficavam livres no pátio, porém sem atividades estruturadas pelos professores.

    Durante as observações é possível identificar situações bastantes contrastantes considerando que estamos em uma mesma instituição de ensino. Caminhamos em continuum em que em uma das extremidades vemos professores comprometidos, que planejam sua prática e parecem conhecer bem a realidade dos seus alunos propondo atividades estruturadas e coerentes. Infelizmente isso é a minoria. O que viu-se normalmente foi a relação viciosa - corda para as meninas e bola para os meninos - deixando os alunos soltos no pátio.

    As crianças a princípio possuem bastante criatividade e deixando-as "soltas" no pátio com alguns materiais dificilmente observaremos alguma criança parada, porém logo a pobreza de movimentos que fatalmente chegaremos, que por desconhecimento de outras atividades tornam o pular corda e o futebol as únicas e primordiais atividades de movimento. As aulas de Educação Física na escola foram mais comuns nas turmas de pré-escola, primeira e segunda série, e isso talvez aconteça pelo fato de as crianças dessas séries, de certa forma, serem mais fáceis de controlar que nas próximas séries, sendo que a formação e o comprometimento dos professores parece ser deficiente em alguns casos para o trabalho com a Educação Física nos anos iniciais, conforme depoimento abaixo:

Aqui na escola tem uns professores comprometidos e outros com muita resistência para a Educação Física, as nossas crianças tem muita dificuldade porque não é trabalhada a corporeidade, o movimento. Percebemos aqui que os alunos possuem lacunas no desenvolvimento motor, mas é uma dificuldade muito grande implementar uma prática coerente no currículo por atividade...o que eu vejo são as crianças soltas com bola ou com corda...e a prática foge bastante do que está no papel, a realidade nessa escola no currículo é deixar as crianças soltas, há falta de preparo de quem ministra as aulas de currículo por atividade, falta de formação, as gurias do magistério fazem milagre pela formação que tiveram, são preparadas mais para a alfabetização [...] (diretora)

    A formação profissional e a falta de propostas curriculares é apontada por alguns professores como um grande entrave para um trabalho mais qualificado com a Educação Física nas séries iniciais. Conforme Moreira (1995) uma situação problemática sobre os conteúdos da disciplina de Educação Física na escola é que, ao contrário das outras disciplinas, não existe uma seqüência dos conteúdos que acompanhem o desenvolvimento da atividade curricular do aluno nas diversas séries, acontecendo que os mesmos conteúdos, procedimentos de ensino e objetivos são vivenciados por alunos de diferentes faixas etárias e séries.

[...] tivemos pouca preparação para o trabalho das séries iniciais, os jogos não eram relacionados com o desenvolvimento infantil, até tivemos um pouco, mas agente acaba esquecendo. Falta uma proposta curricular e uma formação mais específica dos professores para trabalhar com a Educação Física nas séries iniciais. O trabalho que vem sendo feito aqui na escola deixa muito a desejar [...] há a necessidade de buscar mais, só a faculdade não te dá condições de trabalhar com a Educação Física nas séries iniciais adequadamente [...] (professora de Educação Física)

[...] no curso de magistério tive estágios e tive que ministrar várias aulas de Educação Física apresentando trabalhos. Português e matemática são os pré-requisitos, mas a Educação Física é importante porque as turmas de séries iniciais não têm noção de organização e por isso não consigo muitas vezes trabalhar com a Educação Física, muitas vezes juntamos as turmas de quarta série com materiais e eles fazem o que querem e eles criam várias atividades. (professora da quarta-série)

    Para que haja um trabalho de qualidade na escola, de acordo com Gallahue e Ozmun (2001) será necessário um planejamento e que este seja adaptado aos seus alunos. As atividades dos programas de Educação Física devem ser selecionadas baseando-se na contribuição para o desenvolvimento do indivíduo; incorporar a diversão neste programa serve como um instrumento de motivação e um objetivo importante em um bom programa educacional, porém quando a diversão torna-se para o professor o principal objetivo, o programa deixa de ser educacional e torna-se pouco mais do que um período de recreação. Assim o objetivo do aluno poderá ser a diversão mas o do professor deve ser de ensinar os indivíduos a se movimentar e a aprender pelo movimento.

    Quando questionadas sobre o que é preciso saber para trabalhar com a Educação Física nos anos iniciais e qual a sua importância no meio escolar as professoras entrevistadas deram as seguintes respostas:

[...] é preciso ter jeitinho com eles saber as qualidades físicas, despertar a criatividade neles [...] (professora da segunda série)

A Educação Física para o aluno é a melhor aula, deve-se identificar os alunos como seres únicos, respeitar as individualidades, ter a sensibilidade de ver o que está por traz dos gestos, um grande conhecimento de psicologia, sociologia, filosofia, e vontade de ensinar [...] (diretora)

Acho muito importante a Educação Física nas séries iniciais, acho importante que um profissional específico trabalhe com Educação Física nas séries iniciais porque vai trabalhar mais especificamente com a disciplina e não vai ter aquele "roubinho" de cinco minutos para matemática ou hoje está chovendo não vamos fazer nada, ou hoje os alunos estão muito inquietos. Daí tendo um professor específico naquele horário vai ter aula, porque se for por conta do professor de unidocência muitas vezes a disciplina é deixada de lado, Educação Física, Ensino Religioso, Educação Artística nem sempre tem...uma porque nem todos os professores gostam de trabalhar com a Educação Física daí fica uma lacuna [...] (professora da quarta série)

[...] acho que é super importante, a Educação Física melhora a atenção, concentração...podemos relacionar vários elementos das outras disciplinas com a Educação Física, por exemplo, os alunos escrevem melhor os textos quando vivenciam com o corpo uma situação (professora da terceira série)

    Segundo Canfield (2000) não se pode negar a importância do aspecto motor ser trabalhado no decorrer da infância do ser humano e desta forma a escola, enquanto meio educacional, é responsável por oferecer a oportunidade de uma ótima vivência motora, pois ela será determinante no processo de desenvolvimento da criança. Para Soares et al. (1992) é fundamental para essa perspectiva da prática pedagógica da Educação Física o desenvolvimento da noção de historicidade da cultura corporal. É preciso que o aluno entenda que o homem não nasceu pulando, saltando, arremessando, balançando, jogando, etc. todas essas atividades corporais foram construídas em determinadas épocas históricas, como respostas a determinados estímulos, desafios ou necessidades humanas.

    A escola pesquisada parece estar começando a apoiar a Educação Física, porém nota-se que esta valorização é baseada em trocas, ou seja, a Educação Física serve para melhorar o comportamento do aluno, ou então para ajudar as outras disciplinas. Objetivos louváveis, mas que não representam uma real valorização em a disciplina tenha contribuições efetivas ao desenvolvimento e que não sirva como apoio a outras situações.

[...] estamos caminhando para uma valorização da Educação Física nas séries iniciais, os professores estão vendo que a Educação Física faz parte do currículo e que ela deve ser respeitada [...] o trabalho da Educação Física reflete depois na sala de aula, na minha experiência os alunos que tiveram Educação Física específica com o professor de Educação Física quando chegam nas séries finais eles têm uma noção muito maior sobre as relações do movimento-corpo-espaço [...] (professora de Educação Física)

Aqui na escola estamos pedindo para os professores observarem os horários da Educação Física, é importante para as outras disciplinas, agora eu não sei se todos os professores valorizam, mas a direção quer, estamos fazendo campanha para comprar materiais para a Educação Física nas séries iniciais, porque não dá para deixar uma turma de unidocência esperando por muito tempo porque é capaz de acontecer uma "catástrofe" (coordenação pedagógica).

    Para Neto (2001) a educação motora na infância tem um lugar fundamental na escola, esta deverá ter um trabalho organizado e programado. A atuação do professor principalmente nas séries iniciais deverá ser planejada e coerente, já que, especialmente nesta fase a criança sofre grandes influências do seu meio social principalmente no que diz respeito à prática de atividades físicas.

    A viabilização de aulas de Educação Física, de uma forma comportamental de estímulo-resposta fica clara no depoimento abaixo:

Queremos usar a Educação Física como a principal ferramenta pra trazer o aluno para aula, pra trabalhar a disciplina do aluno pra conquistar o aluno, criar escolinhas, trazer o máximo de atividades físicas para este colégio [...] o aluno de colégio também tem um comportamento diferenciado fora da escola, quero usar a Educação Física como um resgate social, como troca em resposta de uma postura, de um comportamento [...] (diretora)

    Discutindo as abordagens comportamentais na educação Woolfolk (2000), diz que vários estudiosos colocam que as pessoas aprendem melhor em um ambiente que os recompense de alguma forma, porém muitos pesquisadores trazem críticas a essas abordagens principalmente quando a recompensa se torna a base do trabalho do educador, já que, recompensar os alunos por toda a aprendizagem os faz perder o interesse pela própria aprendizagem e quando a premiação cessa o comportamento também tende a cessar não criando assim um compromisso duradouro do aluno com um conjunto de valores ou com a aprendizagem e além disso trata-se de uma técnica para controlar as pessoas.

    Segundo Waller apud Coulon (1995), as atividades esportivas, são particularmente eficazes como meio de controle social de crianças e adolescentes pela escola: inculcam-lhes determinados valores, ensinam-lhes a respeitar certos rituais e, sobretudo, chamam sua atenção para o que é socialmente desejável; enfim, permitem regular as tensões que surgem entre os grupos de modo que sua ausência, em determinados períodos do ano, implica inevitavelmente problemas de disciplina.

    Discordando dessa idéia "serviçal", Santin (2001), aborda a Educação Física como uma disciplina que ainda não encontrou sua própria identidade de forma autônoma. A história da Educação Física parece arrastar-se de maneira secundária, recebendo de outras instâncias o aval de suas funções, dado este motivo a Educação Física precisa ser "inventada", pois, atualmente, possui um perfil deficiente, parcial, instrumental e serviçal e até agora foi encarregada de desenvolver corpos saudáveis, fortes, higienizados, disciplinados, dóceis e submissos. A Educação Física deve ser "inventada" a partir da própria Educação Física.


A atuação do pesquisador nas aulas

    A atuação prática ocorreu com duas turmas de quarta séries, sendo ministradas aulas de Educação Física duas vezes por semana durante dois bimestres letivos. A escolha das turmas foi uma sugestão da direção, porque segundo as professoras eram as turmas que mais precisavam de um trabalho de Educação Física devido a grande agitação dos alunos. Na visão da direção, a Educação Física serviria para os alunos extrapolarem suas energias e criar mais disciplina ajudando o professor de classe. As turmas até então não tinham tido Educação Física de forma mais estruturada em nenhum dos anos escolares.

    Nas turmas encontramos uma diversidade de idade, constituição física, motivações. Os alunos desde o início das atividades, demonstraram-se bastante motivados para a prática de Educação Física, já que não possuíam uma prática mais sistematizada até então. Na turma há alguns alunos que demonstram um sobrepeso e, alguns deles, algumas dificuldades motoras, mas isso não representa uma regra, ou seja, não há na turma uma correlação entre sobrepeso e desempenho motor. As meninas são bastante carinhosas e demonstram grande afetividade. Os meninos, também, no geral demonstram bastante afetividade em relação ao professor, porém são extremamente agitados, apresentando-se violentos com os outros colegas em algumas situações. Essas características são típicas da idade, porém em alguns casos conforme informação da professora e coordenação, alguns alunos se tornam bastante hiperativos comprometendo a prática do professor a também a integridade moral e física dos colegas. Em cada uma das turmas há, também uma criança com necessidades educativas especiais. No geral das turmas as dificuldades motoras são bastante visíveis como pode-se perceber pelo seguinte depoimento: "vemos muitos alunos na quarta série que não conseguem pular, correr, fazer movimentos básicos (professora de Educação Física da escola)".

    Buscou-se durante as atividades valorizar essas diferenças bem como o contexto sócio-cultural em que as crianças estão inseridas, bem como atender as peculiaridades da proposta pedagógica da escola e das teorias de desenvolvimento infantil, aprendizagem motora e pedagogia do movimento e o tema gerador. A participação e a motivação dos alunos são qualidades das turmas, porém a falta de atenção e a desorganização são também características marcantes dessas e de outras turmas de séries iniciais da escola, e assim desde os primeiros contatos houve a certeza que a Educação Física poderia contribuir efetivamente para um desenvolvimento saudável dos diferentes aspectos, motores, afetivos, sociais e cognitivos.

    Os objetivos da Educação Física para as quartas séries nessa escola são:

  • Desenvolver atividades de caráter formativo, corporal e estimular o gosto pela prática da Educação Física;

  • Desenvolver atividades físicas que oportunizem a participação em grupo, conscientizando os princípios democráticos e sem preconceito;

  • Proporcionar atividades lúdicas como forma de lazer e socialização, respeito mútuo, buscando solucionar os conflitos civilizadamente.

    Assim, buscou-se dentro desses objetivos desenvolver atividades diferenciadas das que os alunos tinham até então, como, a utilização de materiais alternativos, dança, capoeira, vídeos entre outros. As aulas de dança e de capoeira demonstram-se especialmente atrativas aos alunos. Essas aulas permitiram realizar conversas sobre alguns assuntos referentes à cultura como, por exemplo, a origem da capoeira onde foi realizada uma contextualização da colonização portuguesa no Brasil e das tradições afro-brasileiras. As danças oferecerem muitas oportunidades de diálogo com os aluno e permitem explorar uma infinidade de assunto relacionando com sua própria cultura. O jazz, o samba, as danças folclóricas, o rip hop o street dance, etc. Esse trabalho permitiu uma interação entre os aspectos psicomotores citados no último item e formação humana e de cidadão críticos dos alunos.

    O trabalho foi baseado na prática psicomotora, considerando os pressupostos contidos na Proposta Pedagógica da escola. São propostas atividades corporais que desenvolvam a consciência corporal, os jogos recreativos e esportivos, a compreensão dos aspectos fisiológicos básicos, o lúdico e a socialização estimulando uma atitude de cooperação, respeito, amizade e fraternidade, despertando o interesse pela prática permanente.

    Buscou-se dar um sentido a prática de cada atividade fazendo relações com o mundo dos alunos dentro e fora do contexto escolar. A turma no geral sempre foi bastante participativa porém a dificuldade de atenção foi um grande entrave na realização do trabalho. O desenvolvimento motor de algumas crianças é bastante prejudicado pela falta de atividades de Educação Física nas séries anteriores apresentando dificuldades. Estudos referentes a psicomotricidade ajudaram a compreender e trabalhar alguns aspectos importantes dos alunos como coordenação, consciência corporal, ritmo, equilíbrio entre outros.

    A ginástica artística permitiu trabalhar alguns aspectos motores importantes dos alunos que foram desenvolvidos com essa prática e algumas dificuldades motoras minimizadas. As atividades coletivas foram as mais difíceis de serem realizadas porque além da grande falta de atenção os alunos não possuem uma capacidade mínima de organização e qualquer atividade em grupo torna-se difícil de ser realizada. Essa questão foi trabalhada em diversas aulas e houve uma grande melhora da turma na capacidade de se organizar.

    Ao final do trabalho pode-se observar nitidamente o desenvolvimento de aspectos importantes dos alunos como a atenção, a capacidade de organização, o respeito além de um desenvolvimento motor geral. Noções mais teóricas como as partes do corpo humano e o funcionamento de alguns sistemas foram passadas em sala de aula com a ajuda de algumas brincadeiras. Esse conhecimento foi construído junto com os alunos considerando o conhecimento anterior deles e a partir disso foram acrescentadas mais algumas informações. Buscou-se uma base teórica para a compreensão do processo educativo em autores de aprendizagem motora, desenvolvimento humano, psicomotricidade, pedagogia entre outros, resignificando a própria prática educativa e pensando os alunos enquanto seres produtores de cultura

    Os saberes profissionais dos professores conforme Tardif (s/d, 1996) são adquiridos com o tempo, provem de sua própria história de vida sendo os professores, trabalhadores que foram mergulhados em seu espaço de trabalho durante muitos anos enquanto alunos. Esses saberes provêm de diversas fontes, de sua cultura pessoal sendo que o professor utiliza diferentes técnicas, para atingir seus objetivos mesmo que pareçam contraditórias para os pesquisadores universitários. Também são permeados pela história de vida, emoções, corpo, personalidade, cultura e pensamentos do educador. E por fim os saberes dos professores carregam as marcas do ser humano, pois o objeto do trabalho docente é o trabalho com seres humanos, e conseqüentemente, os saberes trazem consigo as marcas de seu objeto de trabalho e comporta um componente ético e emocional.

    Além desses saberes a prática do professor dependerá dos valores que este dá ao ensino, assim como certas idéias formalizadas e explícitas em relação aos processos de ensinar e aprender que norteiam a proposta de cada escola e professor. A sociedade atribui à educação a função de formar os melhores em relação à sua capacidade para conseguir sucesso profissional. Os professores se vêem emparedados de um lado por uma formação deficiente do outro pelas exigências muitas vezes equivocadas da sociedade e por último pela própria relação professor/aluno, que precisa ser repensada constantemente para que não se repitam ações equivocadas das próprias vivências escolares e da formação do professor.

    A prática docente nessas turmas é bastante difícil. É preciso ter um repertório muito grande de saberes, paciência e muita perseverança. A atuação na escola faz-nos refletir sobre a real utilidade dos conteúdos da graduação, sobre a atuação de certos professores da universidade que não conseguem colaborar para a formação dos acadêmicos devido ao descaso e também pela falta de conhecimento de como realmente esta funcionando a escola hoje em dia.

    A grande heterogeneidade dos alunos, o fato de terem poucas vivências corporais, a grande agitação típica da idade, a falta de espaços e materiais são dificuldades que quem pretende trabalhar com Educação Física nas séries iniciais na escola pública vai encontrar. Por isso é necessário um comprometimento da escola como um todo e principalmente que o professor acredite que a Educação Física é importante e busque forma para viabiliza-la. Ainda é preciso ter ética no sentido de respeitar as diferenças dos alunos e reconhecer que as práticas de movimento na escola são um direito dos alunos. De acordo com Freire (1996) o preparo científico do professor deve coincidir com sua rentidão ética, na prática educativa, enquanto prática especificamente humana é fundamental o respeito e a lealdade com que um professor analisa as posturas dos outros.

    O conflito de interesses devido à diversidade sócio cultural dos alunos também é nítida. Horta (1985), justifica que em relação à educação os problemas sociais-educacionais são vistos como técnicas ineficazes da administração de recursos humanos e financeiros. A elite dominante fez com que se acredite que a solução para todos os males da educação, são reformas em métodos e conteúdos curriculares muitas vezes esquecendo-se do próprio professor enquanto ser humano dotado de valores singulares, angústias e pressões e que sua atuação depende de suas própria vivências e valores.

[...] por isso a renovação profunda da educação é hoje uma tarefa social extremamente prioritária. Escolas atrasadas significam aumento da exclusão e escolas que se renovam e atualizam significam salvar vidas humanas (Assmann e Sung, 2000, p.92).

    Podemos analisar isso devido ao fato que o professor de Educação Física é difícil de atuar nas séries iniciais devido à unidocência.

No currículo é mais difícil porque com a unidocência o professor não pode abrir para o professor de Educação Física, e as gurias não têm conhecimento, habilidade para trabalhar com a Educação Física (diretora).

    O professor deve ainda saber ler nas entrelinhas das atitudes dos alunos. É necessário mostrar aos alunos que através da Educação Física ele irá construir conhecimentos importantes na sua vida. A Educação Física, ao aceitar inspirar-se na visão de corpo humano como um ecossistema, que se autoconstitui baseada em sua capacidade de aprender construindo o saber, estará a caminho de superar as aporias que a impedem de se transformar na arte de cultivar não só o corpo físico, mas o homem inteiro (Santin, 2001).


Considerações finais

    As análises realizadas até o momento permitem que se faça as seguintes considerações: o trabalho da Educação Física para as séries iniciais vem sendo negligenciado por vários professores, por diversas razões como, por exemplo, a falta de formação e de experiência profissional com os conteúdos, a desvalorização da disciplina no meio escolar, a falta de objetivos claros nas propostas curriculares, entre outros. Todos os professores quando entrevistados e mesmo em outros momentos manifestam acreditar que a Educação Física nas séries iniciais é realmente importante no meio escolar e pode contribuir efetivamente no processo de desenvolvimento dos alunos, porém em situações práticas pode-se perceber que a disciplina ainda precisa conquistar seu espaço na escola e os professores precisam realmente por em prática seu discurso.

    A atuação nas séries iniciais é bastante difícil, a falta de espaços e materiais da escola e a falta de vivências corporais das crianças, que chegam à escola com grandes déficits motores, são elementos agravantes. Os professores mais comprometidos com a disciplina e porque não dizer com o desenvolvimento da corporeidade dos alunos, afirmam que somente com muita criatividade é possível realizar um trabalho de qualidade. Nas observações e aulas ministradas percebeu-se que as atividades com materiais, músicas, objetos, dão um retorno maior ao professor, visto que, uma grande dificuldade ao se trabalhar com crianças é a atenção que está em fase de desenvolvimento nessa idade.

    Para a atuação neste contexto, ainda destaca-se a necessidade de se saber reconhecer vários elementos como desenhos, gestos, olhares, falas, gritos, etc, que servem para o professor orientar as suas práticas a avaliar sua própria atuação. Para que isso ocorra é necessário uma formação bastante ampla e consistente dos professores, tanto nos cursos de Pedagogia, Magistério e Educação Física. A atuação de professores formados em Educação Física sofre limitações legais pela questão da unidocência não podendo atuar nas séries iniciais principalmente em escolas públicas. É preciso que os professores percebam que para o aluno desenvolver harmonicamente os diferentes aspectos do ser humano (afetivos, cognitivos, sociais, motores), estes devem ser trabalhados juntos e que o desenvolvimento de um está associado ao desenvolvimento do outro. Acredita-se também que, dois períodos semanais dedicados às atividades corporais de forma mais sistematizada é insuficiente para desenvolver aspectos importantes do desenvolvimento infantil, especialmente o motor.

    Um aspecto importante a ser abordado é o incentivo a formação continuada dos educadores. Com isso os professores terão maior embasamento em questões importantes na prática da Educação Física como as teorias de desenvolvimento e aprendizagem motora, fisiologia, psicologia, entre outras e que junto com a valorização da questões históricas dos alunos e da comunidade no geral e as questões éticas contribuirão para uma prática pedagógica de mais qualidade e de forma mais reflexiva.

    Por fim, destacamos que é necessário que haja um comprometimento da comunidade escolar no geral, professores, coordenação pedagógica, direção, alunos, pais e funcionários para a prática pedagógica, pois todos possuem um papel importante no processo educacional. É necessário que sujeitos envolvidos com a escola como um todo compreendam e reconheçam o valor da Educação Física para as crianças, viabilizando locais e materiais para a prática, não substituindo as atividades da Educação Física por outras disciplinas e também não tratando as atividades corporais apenas como um meio de conseguir um melhor desempenho em sala de aula ou um comportamento mais disciplinado.


Referências bibliográficas

  • ASSMANN, H.; SUNG, J.M. Competência e Sensibilidade Solidária: Educar para a esperança. Petrópolis: Vozes, 2000.

  • BOMBASSARO, L.C. As fronteiras da Epistemologia: como se produz o conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1992.

  • CANFIELD, M. S. A Educação Física nas Séries Iniciais: paralelo entre 15 anos. Kinesis, Santa Maria nº 23, p. 87-102, 2000.

  • COULON, A. Etnometodologia e educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

  • ETCHEPARE, L.S.; PEREIRA, E. F. & ZINN J. L. Educação Física nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Revista da Educação Física/UEM. Maringá. V. 14 n. 01, p. 59-66, 2003.

  • FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

  • GALLAHUE, D. L. & OZMUN, J. C. Compreendendo o desenvolvimento motor: bebês, crianças, adolescentes e adultos. São Paulo: Phorte, 2001.

  • HORTA, J.S.B. Planejamento educacional. In: SAVIANI, D. Filosofia da Educação Brasileira. Ed. Civilização Brasileira - Rio de Janeiro, RJ 1985.

  • MOREIRA, W. W. Educação Física: uma abordagem fenomenológica. 3 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995.

  • NETO, C. A motricidade como expressão do desenvolvimento da criança: algumas notas históricas e pedagógicas. Livro anual da Sociedade Internacional para Estudos da Criança. Florianópolis: UDESC, 2001.

  • SANTIN, S. Educação Física: temas pedagógicos. 2 ed. EST Edições, Porto Alegre, 2001.

  • ________. Textos malditos. EST Edições, Porto Alegre, 2002.

  • SOARES, C.L.; TAFFAREL, C.N.Z.; VARJAL, E.; FILHO, L.C.; ESCOBAR, M.O.; BRACHT, V. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez, 1992.

  • TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. Petrópolis: Vozes, 1996.

  • TARDIF, M. Saberes Profissionais dos Professores e Conhecimentos Universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências em relação à formação para o magistério. (mimeo), s/d.

  • WOOLFOLK, A.E. Psicologia da Educação. 7ed. Artmed Editora. Porto Alegre, 2000.

Outro artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
http://www.efdeportes.com/ · FreeFind
   

revista digital · Año 10 · N° 84 | Buenos Aires, Mayo 2005  
© 1997-2005 Derechos reservados